Posts by Antonio Carlos A. Gama

Há de haver algum lugar

 

 

 

 

 

 

Estou abandonando aos poucos a minha velha conta de e-mail (acgama@netsite.com.br) por outra, mais moderna e eficiente (antonicogama@gmail.com). Valho-me do ensejo para pedir aos distintos amigos e leitores que passem a usar esta última para se comunicar comigo.

Sou apegado às minhas coisas, não por avareza, mas por razões outras, sentimentais. Avareza sentimental, talvez.

Aquela velha conta foi a minha primeira, e a gente nunca se esquece da primeira, seja lá o que for. Para o bem e para o mal.

Como as mensagens que recebo estão sendo encaminhadas automaticamente para a nova conta, esqueço-me com frequência de acessar a velha (sem malícia, por favor) e limpá-la do que já não interessa, ou nunca interessou.

É um martírio. Outro dia havia mais de duas mil mensagens esquecidas, a grande maioria propagandas de toda espécie, pps edificantes ou metidos a engraçados, correntes ameaçadoras caso sejam quebradas e outras chateações do gênero.

Passei um tempo enorme deletando tudo.

Enquanto me dedicava a essa operação de extermínio, com a frieza pragmática de um Capitão Nascimento, súbito o coração sentimentaloide me falou mais alto: “Para aonde vão essas pobres palavrinhas e imagens desprezadas?” 

O universo cibernético continua para mim um mistério tão insondável e profundo quanto o universo propriamente dito. Quem sabe mais intrincado ainda.

Os dois, por exemplo, têm “nuvens”, mas as do universo celeste eu posso ver, quase tocá-las quando viajo de avião (outro absurdo de lata que avoa que nem passarinho), e de vez em quando até me despejam água na cabeça para me despertar das minhas tontices.  Já as nuvens do ciberespaço não tenho a mínima ideia de como são, onde ficam e o que fazem.

Quando os seres físicos morremos, nossas almas vão para o céu, inferno, purgatório ― se cremos ― ou simplesmente nos decompomos, somos consumidos por outros seres e viramos pó ― se cremos apenas naquela outra entidade mítica, a Ciência.

E no mundo cibernético? 

O que acontece com as palavras e imagens desterradas?

Haverá um cemitério para elas, ou uma espécie de máquina fragmentadora virtual para torná-las pedacinhos coloridos de saudade?

Ou elas pairam eternamente por aí como almas penadas, até que um cracker as incorpore tal um pai de santo num terreiro de umbanda?

Saravá!

 

 

 

Por que Poesia em tempos de indigência?

 

 

 

 

 

Os que costumam orbitar por aqui certamente já conhecem e admiram Selma Couri Barcellos pelos seus comentários deliciosos, pela sua sensibilidade e cultura, por sua delicadeza e irradiante luz.

Agora essa luz passará a aquecer e rebrilhar esta Estrela com intensidade ainda maior, pois consegui convencê-la (quase obrigá-la) a se tornar colaboradora permanente do blog.

Conhecemo-nos pela internet, no Bloghetto da Maria Helena, do qual, após o encerramento, ela e o blog que mantinha havia algum tempo tornaram-se os únicos sucessores possíveis, com a benção da própria Maria Helena. 

Desde o primeiro encontro, muitas têm sido nossas conversas, trocas e parcerias, afinidades surpreendentes e complementares.

É ela a minha Estrela Binária, que doravante passamos a dividir e reduplicar.

Assim, singelamente, ela se apresenta no seu adorável Bloghetto:

 

 

“Fui menina em  Niterói (RJ), cidade à beira-mar plantada.

Desde sempre me fascinou a palavra, a redação a partir daquelas imensas e coloridas gravuras postadas à frente da classe (ainda as guardo, todas, na retina e na memória), a leitura do texto pronto em voz alta…

Moleca ainda, mal chegavam as visitas,  vestia correndo a bailarina e recitava poesias. A bem da verdade,  algumas visitas nunca mais voltavam, mas eu ficava em estado de graça…

Formei-me em Jornalismo e Relações Públicas pela PUC/RJ e UnB/DF.

Porém, seguindo um pensamento de Confúcio, escolhi um trabalho que amei. E não precisei trabalhar um só dia de minha vida.

Sim, exerci o magistério por mais de 25 anos.  Por puro prazer, de forma apaixonada, respirando poesia porque lidei com crianças, criaturas poéticas em sua essência, viajando e acreditando na força encantatória e transformadora da palavra.

Em 2004, fui agraciada com o 1º lugar no Concurso de Redação para Professores da Academia Brasileira de Letras e do jornal Folha Dirigida. O tema, sugerido pelo poeta Ivan Junqueira, então presidente da ABL, foi “Por que Poesia em tempos de indigência?”.

Atualmente, enquanto aguardo os netos que me darão os dois filhos, seres adoráveis, tão diversos quanto únicos, escrevo crônicas, ensaios, poemas, pinto quadros…

E agora, com este blog, irei partilhar memórias, experiências, reflexões.

Vem comigo?”

 

 

Vamos todos…

 

 

 

Por que Poesia em tempos de indigência?

 

 

“Repetir, repetir – até ficar diferente.”

(Manoel de Barros)

 

 

Porque precisamos, mais que nunca, de lirismo que é libertação, delírio do verbo. De tocar tango argentino e dançar sobre um palco iluminado até o sapato pedir pra parar. De ser gauche na vida e ouvir estrelas, que felicidade aparece mesmo é em horinhas de descuido.

Porque temos visto demais o beco. E no meio do caminho, pedras. E rostos assim tristes, assim magros, olhos tão vazios. Temos tido febre, dispnéia, suores noturnos. Diante de nossas retinas fatigadas, o horizonte é apenas o da fotografia na parede. Isso dói. Navegar é preciso e nosso barco, estranho barco, navega a remo, a dor de braço; de vela é rico, de vento é escasso.

Porque nos têm sufocado a mediocridade pachorrenta; a miopia displicente das elites, mudas telepáticas; o vazio absoluto das ideias, falácias que não sabem de rima, nem de solução.

Porque José nunca tivera querido dizer palavras tão loucas a sua Fulô. Mas a mão que afaga também apedreja. E agora José, sem carinho, em total solidão, fim de quem ama, vai viver da poesia que entorna no chão, inventar o cais, se lançar. Ainda que o Tejo não seja o rio de sua aldeia. O resto é mar.

Porque é mentira que basta de lero-lero, vida noves fora zero e um dia estaremos mudos – mais nada. A alquimia do verbo sempre irá nos lembrar de nunca morrer assim, num dia assim, de um sol assim! Pois para isso fomos feitos: para a esperança no milagre, para vermos a face da morte e, de repente, nunca mais esperarmos. Apenas nascermos, imensamente. E, na medida do impossível, renascermos. A cada dia, Fênix. A cada dia. Vida é para ser reinventada.

Assim, que poesia é voar fora da asa, migrando ao sabor dos voos e vertigens das redondilhas, pedirei à cotovia que leve aos céus este avigrama redentor:

Senhor, poupai os poetas! Eles abriram janelas, salvaram afogados. Teceram as palavras em poesia, oráculo pelo qual rompestes Vosso silêncio. Deixai que flutuem para o Amanhã, livres de correntes, remidas, suas almas nuas!

Em tempos de carências, bem-vinda a poesia, louvados os magos-poetas que nutrem nosso espírito e nos afagam os sentidos. Jamais seres acima do bem e do mal. Tampouco o novo homem. Apenas vetores de sentimentos, emoções e ideias e por isso mesmo, de mudanças onde toda indigência se dilui.

Seja-lhes sempre fontana a inspiração, pois daqueles a quem deu o dom de conceber ideias ou emoções especiais e exprimi-las de forma estética, parece claro que Deus espera algo. Quem dá os meios, dá a missão. 

“Não me acorde, se estou sonhando” ─ disse Dom Quixote, o maior dos sonhadores, ensinando-nos que a utopia, da qual nasce a esperança, é parte da condição humana, assim como transcender, superar ou modificar essa mesma condição é necessidade indispensável ao homem, justo porque essa condição é imanente.

A cada um de nós é dado ver as coisas como são e perguntar-nos: por quê? E sonhar como as queremos ver e perguntar-nos: por que não?- refletiu Bernard Shaw.

Assim também, em tempos tais que vivemos, sejam abençoados os magos-professores, esses desdobráveis de pés no chão e olhos nas estrelas, a quem cabe o cotidiano desafio de soltar amarras, romper margens, dissipar sombras e conduzir barcos a ultramares onde a Educação, plasmada em novo código genético, há de diluir indigências e tecer mais luminosas manhãs.

 

 

 

Os últimos gentlemen (por Bell Gama)

 

 

 

 

Quando decidir vir sozinha para Londres, Edimburgo e Dublin um dos meus objetivos era conhecer novas pessoas. Escolhi o roteiro por não conhecer nenhum desses lugares. Em Londres eu acabei contando com a ajuda da minha querida amiga Londoneer Cris Degani ( escrevi aqui que nos reencontramos depois de mais de 15 anos), e em Edimburgo contei com a força do meu adorado primo Felipe (foi nossa segunda viagem ao exterior juntos, mas a primeira sozinhos).

Ficar com alguém que você gosta em uma viagem é como um escudo para conhecer gente nova. Eu amei estar com os dois e além de redescobri-los, tive que descobrir toda Londres e Edimburgo e por isso não me restou  muito tempo  novas amizades. 

Já em Dublin eu fiz reserva em um hostel (quarto individual, obviamente) porque queria conviver com pessoas de outras partes do mundo. No final, está sendo fundamental estar aqui. Sem eles, o draaaama da mala seria ainda maior.

Mas não vou falar de amizade neste post. Vou falar de uma coisa que vem antes dela: a educação. O que mais me chamou a atenção em Edimburgo e Dublin é o cavalherismo dos homens. Diferente do Brasil, aqui abrir a porta  é o mínimo. Hoje passei por uma situação que só me reforçou a certeza de que eu deveria escrever esse texto.

Tirando a Aer Lingus (companhia aérea em que jamais viajarei outra vez) todas as pessoas são excepcionalmente educadas. Mas os homens são um capítulo a parte! Desculpem-me os rapazes brasileiros mas vou enumerar motivos pelos quais as garotas têm que vir para cá (quem sabe vocês não reaprendem?).

1 – Em Edimburgo eu coloquei o pé para fora do Pub e puxei um cigarro do maço e já havia um cara lá com isqueiro e um sorriso a postos.

2 – Eu dei um sorriso na beira do balcão do Pub e o bartender imediatamente veio solícito me atender. (sim, porque no Brasil muitos fingem que você não está ali).

3 – Quando fui ao aeroporto resgatar minha mala e a minha amiga australiana conseguiu recuperar a dela, pegamos um ônibus. A mala dela estava super pesada e antes que cogitássemos a hipótese de erguê-la para colocar no local destinado já surgiu um irlandês (lindo de morrer) e se antecipou. Pegou a mala, pôs no lugar e sorriu (simples assim). Antes de descer do ônibus, ele perguntou se iríamos mais adiante. Confirmamos que sim. Ele novamente tirou a mala do lugar, colocou numa posição mais próxima de nós e se desculpou (SIM, SE DESCULPOU) dizendo que teria que descer. Achou pouco?

4 – Fiquei perdida. Fui pedir informação. O cara andou 50 metros (sim, 50 metros!) para me levar até a esquina para que pudesse me explicar melhor como eu deveria chegar no lugar.

5 – Estava de bicicleta e perguntei onde era o parque. O senhor de 87 anos fez questão de me contar a história do parque e os cuidados que eu deveria ter. Amarrou minha bolsa na cestinha da bike e me desejou bom dia.

6 – Eu e Michelle (a australiana) estávamos sozinhas no bar do hostel pra o nosso tradicional drink das 17h. Em menos de 1h já estávamos com 7 caras (um irlandês, um inglês, dois australianos e três austríacos)  ao nosso lado querendo saber onde iríamos e participar do programa. E durante todo o pub crawl eles cuidaram da gente sem nenhuma segunda intenção. Foi casaco emprestado, cigarro aceso, porta se abrindo, tudo que a gente merece…

7 – Ao fim do pub crawl quis vir antes para casa. Óbvio que um deles saiu na chuva, me arrumou um táxi, me colocou dentro do carro e falou com o taxista onde ele deveria me deixar.

8 – Sabe há quanto um cara não paga um drink para mim no Brasil? (Claro, exceto os amigos…) Não sei! Aqui, todos os dias que saí fui surpreendida com drinks.  Mas tudo de maneira muito gentil e delicada. Por exemplo, acabou meu drink e fui no banheiro. Quando volto, tem outro já pago. O Michael foi buscar um drink  para ele e a  fila era enorme. Não pedi nada. Quando ele volta, tem uma vodca na mão e me entrega com um sorriso. Eu sorri sem graça e fiquei pensando como iria beber aquilo puro. Quando menos espero, ele tira do bolso de trás da calça um red bull. Isso porque o meu drink (vodca + red bull) é o mais caro em todos os bares. E muito mais caro do que o que ele estava bebendo.

9 – Todos os homens que conheci elogiaram meu inglês e disseram que pareço ter 24 anos. Enfim, coisas que meus ouvidos não ouvem há tanto tempo que nem lembrava mais que existiam. Não, os homens daqui não querem te comer (pelo menos inicialmente) e isso foi o que me chamou atenção. Aqui você pode ser feia, bonita, gorda, magra, careca ou cabeluda. Os caras vão ser educados com você.

10 – Mas a décima e última situação de cavalheirismo que eu vivi foi além do imaginado. Precisava pegar o Luas (um tipo de bonde elétrico) e estava no guichê eletrônico para comprar o bilhete (aqui não tem catraca). Fui apertando os botões do meu destino e colocando as moedas. Atrás de mim, estava um homem (uns 40 anos do tipo George Clooney) pacientemente esperando a minha trapalhada. Desisti de tentar pois o Luas estava chegando e deixei o cara comprar o bilhete dele (não ía fazer ele perder a viagem porque eu não conseguia comprar o bilhete). Ele foi lá, apertou uns botões e comprou o dele. Ao final, disse: você não está conseguindo comprar pois está colocando moedas inferiores a um euro. Toma a minha! Sim, ele me deu DINHEIRO para a passagem.

Sem mais,

Bell Gama

setembro/2012

 

 

É preciso deixar sempre um pouco de desejo

 

 

 

 

 

            É preciso deixar sempre um pouco de desejo na ponta dos dedos

            para tocar o corpo da mulher amada quando ela se foi

            mas ficaram o cheiro do seu suor nas dobras do lençol,

            seu sorriso que espia do espelho, a escova e o batom na pia

            esquecidos para nos lembrar.

 

            É preciso deixar sempre um pouco de desejo na ponta dos dedos

            para beliscar as cordas do violoncelo adormecido no canto da sala

            e arrancar seus gemidos plangentes e outonais

            que não são olvidos nunca mais.

 

            É preciso deixar sempre um pouco de desejo na ponta dos dedos

            para na ilha naufragada afagar a capa de couro do livro

            levado na algibeira, cheirá-lo, repassar suas folhas uma a uma

            e não ler a última jamais.

 

            É preciso deixar sempre um pouco de desejo na ponta dos dedos

            para alçar voo do chão cativo, palmilhar um pedacinho de inferno

            e um pedacinho de paraíso.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=LY08poPk7mU[/youtube]

 

 

Ruy, Celso e Gilberto

 

 

 

 

 

 

                                   Gilberto de Mello Kujawski

 

 

 

RUY BARBOSA, O VERBO EM AÇÃO 

 

 

         Se Ruy Barbosa fosse vivo e estivesse presente entre nós, qual seria sua reação face ao julgamento do mensalão, que empolga e arrebata a expectativa do país inteiro? Ficaria congelado na atitude do tecnojurista, como mero expectador dos acontecimentos, sem nenhum envolvimento pessoal nesta hora em que o STF decide do destino da nação?

         Ruy jamais agiu como frio expectador dos acontecimentos, retirado em seu gabinete, distante do cenário tormentoso no qual está em jogo a integridade moral, política e histórica da nação. Muito pelo contrário, mais do que simples participante, seu projeto sempre foi alçar-se em protagonista do drama de construção de nossa nacionalidade. Temperamento passional, incapaz de resistir aos reclamos da hora, ele sempre tomou partido, sempre esteve na trincheira, não a reboque e sim à frente das circunstâncias.

         Nunca antes, nem depois, o Brasil conheceu um fenômeno de popularidade como Ruy Barbosa. Sem nenhum dos recursos modernos de publicidade, sem rádio nem televisão, Ruy era ouvido e conhecido pela nação inteira, de norte a sul. Onde aparecia, a pequena figura do lidador baiano eletrizava as multidões, sem distinção de classes nem de cultura, nem de partido. Explicar sua acústica nacional pelo poder oratório é pouco e insuficiente. Oradores dos mais eloqüentes sempre brilharam em nosso país.

         A melhor explicação talvez seja a de caráter histórico. Finda a monarquia, escorraçado o imperador para fora, começou o domínio republicano. A monarquia, aos olhos do povo, desde o primeiro até o segundo reinado, foi personificada pela figura do próprio imperador. Seria preciso colocar-se alguém no vazio do imperador destronado. Afinal, proclamada a nova ordem de coisas, quem era a República, onde estava ela, quem respondia pelo novo regime? O Estado precisa de visibilidade para legitimar-se aos olhos da população. Pois essa figura tutelar foi Ruy Barbosa. Não um jurista, não apenas um ideólogo (como Benjamim Constant, por exemplo), não um orador tonitroante com seu verbo inflamado, e sim o verbo associado à ação instauradora. Este verbo em ação foi encarnado por Ruy Barbosa. O lugar vazio deixado pelo imperador foi preenchido pela figura de um homem que não era somente um republicano, mas a própria República, ou seja, o projeto republicano ocupando o território geográfico e institucional da pátria, abalada pelo choque da transição. Afinal, conforme a frase de Aristides Lobo, “o povo assistiu bestificado à proclamação da República”.

         O papel histórico de Ruy Barbosa foi corporificar a República, emprestando-lhe seu sangue e sua carne para que ela deixasse de ser uma fantasmagoria ideológica e se transformasse em realidade palpável. Ruy Barbosa, legítimo representante da classe média ascendente, o físico franzino, a cabeçorra enciclopédica, a vontade de ferro, e aquela eloqüência vernacular, torrencial, inesgotável, exprimindo todo o titanismo republicano em tensão máxima. Onde estava Ruy, ali estava a República. Ele era a República, assim como o imperador era a Monarquia, em configuração nada retórica, mas cosubstancial à história da pátria.

         Este condestável da República é Ruy de corpo inteiro. Homem da lei, mas que ao mesmo tempo tomava partido, empunhava bandeiras, assumia causas com bravura e denodo, tudo em nome da lei e do império da lei. Para ele a justiça era o eixo da democracia, “eixo não abstrato, não supositício, não meramente moral, mas de uma realidade profunda” (Oração aos Moços).

         O grande idealista encerra esse monumento de maturidade e sabedoria que representa sua Oração aos Moços, com aquela conclusão surpreendente: “Idealismo? Não: experiência da vida.”

         Creio bem que por amor à justiça, o eixo da democracia, e nutrido na experiência da vida, Ruy estaria aplaudindo o voto dos magistrados independentes e intrépidos do Supremo. Dirigindo-se aos futuros juízes da Faculdade de Direito, proclama o ilustrado advogado das grandes causas:

         “Nem receeis soberanias da terra: nem a do povo, nem a do poder. O povo é uma torrente, que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas. A intrepidez do juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam, e fascinam.”

 

 

 

MINISTRO CELSO DE MELLO

 

 

         O ministro Celso de Mello , com seu voto, anunciado nesse dia primeiro de Outubro de 2012, ao proferir seu duro discurso contra a corrupção, protagonizou o momento de grandeza no julgamento do mensalão.

         Surpreendeu quem dele esperava um foguetório de erudição jurídica, ou a análise gelada e minuciosa das provas, ou o discurso sonolento e arrastado de alguns de seus ilustres pares.

         Celso de Mello foi o primeiro e o único ministro do STF a derivar do aspecto exclusivamente técnico e jurídico da causa, para ferir, com a indignação dos justos, o conteúdo escandaloso da transgressão ética e institucional que abalou o País. A linguagem do seu discurso inovou: “vergonhosos atos de corrupção governamental”, “marginais do poder” e outras expressões introduzem a mudança do estilo impassível e regimental até agora usado pelos senhores ministros.

         Sob a aparência do juiz impecável e do estudioso diuturno do fenômeno jurídico, transpareceu o homem de carne e osso, capaz de justa indignação, apto a aplaudir, a condenar, a amar e repudiar. Sob sua palidez de pesquisador debruçado sobre os livros, vibraram seus nervos de homem de bem e gritou seu coração de patriota. O magistrado se humanizou, sem pudor de parecer menos isento, porque tem provado na vida e no trabalho sua imparcialidade insubornável.

         O nome de Celso Lafer, citado pelo ministro, engasta-se como uma pérola no seu discurso. Lafer é militante histórico da ética, na tríplice tribuna do magistério, das relações exteriores e da imprensa.

         A citação de Cícero foi, certamente, o ponto especulativo mais alto alcançado no Supremo pela palavra de algum ministro. Ressaltando-se que em Cícero a idéia de “concórdia” social não é a paz dos cemitérios, e sim uma conquista que passa por muitas dissenções até atingir o ponto de equilíbrio do povo com os poderosos. E isso graças à criação  dos tribunos da plebe, saudada por Ortega como “genial irracionalidade”, da qual só os romanos eram capazes.

         Conheci Celso de Mello ao tempo em que ele era modesto Promotor de Justiça, já então integralmente dedicado ao estudo jurídico. A ponto de, no rápido percurso de elevador, do térreo ao décimo andar, ser capaz de proferir uma rápida e elucidativa aula de direito. Agora, de sua tribuna no Supremo, Celso de Mello fala para o País inteiro. Mais do que isso, fala para a consciência moral de todos os brasileiros, com a sabedoria do estudo e da reflexão, e com a eloquência inspirada pela tensão do seu caráter de varão e guardião impoluto da República.  

 

 

 

Por linhas tortas

 

 

 

 

                                   Com quantas linhas se escreve um conto?

                                   Com quantos contos me conto?

                                   Em que ponto dessa tortuosa linha

                                   paralela do infinito me encontro?

 

                                   Só quando saio da linha

                                   e salto fora da pauta

                                   é que sinto o sobressalto da vida

                                   ao compasso de mim mesmo.

 

                                   Passo a passo me repasso

                                   traço a traço me escrevo

                                   até que a linha se apague

                                   e acabe o conto sem ponto final

 

 

 

  

 

 

Mala suerte, a saga dublinense de Bell Gama

 

 

 

Nenhum lugar é melhor do que a sua casa

 

Sair de Londres foi fácil. Viver um fim de semana em Edimburgo com o meu primo foi mais fácil ainda. Não tem nada melhor do que a gente encontrar alguém da família, que fala a sua língua, que tem o mesmo sobrenome, o mesmo jeito, as mesmas piadas… Encontrar meu primo em um país que jamais imaginei conhecer como a Escócia foi algo inesquecível. A cidade de Edimburgo é mínima e bastam algumas horas para você conhecê-la por inteiro. Por isso, parecia que estávamos tirando férias na casa da avó. Todos os escoceses são muito gentis e parecem que te conhecem de longa data. A noite é super animada. Pubs com música ao vivo, bares incríveis… É uma cidade tão tranquila que até pudemos conhecer outra, Stirling, que não tem muita coisa além de um castelo.

Deixei o Felipe dormindo no hotel e parti para o terceiro trecho na minha viagem na segunda-feira. Já saí de lá com saudade dele e preocupada com a minha mala que estava muito pesada. Ao chegar com antecedência no aeroporto senti que dali em diante mais nada seria fácil. Diferente do que li no site da companhia aérea (23 kg permitidos), só pude levar 20 kg. Ou seja, tive que pagar 2kg excesso de bagagem, desfazer de algumas coisas. Enfim, encarei como um momento de desapego necessário da viagem.

Chegando em Dublin tive a ingrata surpresa de não ver a minha mala na esteira. Outros dois passageiros também estavam na mesma situação. Me juntei a eles e fomos conversar com um representante da companhia aérea que rodou o aeroporto e não achou as malas. Ele disse que não tinha mais nada a ser feito, que se as malas tivessem ficado em Edimburgo elas poderiam chegar em um voo do mesmo dia, mas que teria que checar. Vou poupá-los do calvário que tem sido até então. Hoje é quarta-feira. Minha mala está em algum lugar da Inglaterra. Depois de duas negativas , eles “esperam” que ela chegue hoje a noite. Não sei mais o que esperar.

Em uma viagem, a mala é sua casa. É onde você se encontra. Quando cheguei em Dublin choveu três dias sem parar. Quando digo sem parar é sem parar mesmo. Um frio infernal. O vento aqui é impressionante. E eu só tinha uma roupa molhada. Depois de chorar, chorar e chorar, tomei coragem e comprei outra. Mas não adiantou. Continuei me sentindo triste e abandonada em um lugar cinza que não fala a minha língua. Tentei pedir ajuda para várias pessoas que apesar de serem super simpáticas não tem muito o que fazer. Ainda estou lutando contra uma sensação estranha de abandono.

Não entendo as regras em Dublin. Tem carro na mão esquerda e na mão direita. Tem castelo medieval mas tem pixação. Aqui, se você está muito bêbado, não pode entrar no bar. A perda da minha mala parece ter sido minha culpa. A companhia aérea nem sequer pensa em me ressarcir. É difícil tentar entender tudo isso junto sem ter completo domínio da língua. Não dá pra brigar em inglês. Pra xingar com vontade, tem que ser na nossa língua materna.

O único local onde fiz bons amigos é onde não se precisa falar muita coisa: o bar. A linguagem universal da cachaça domina por aqui. Foi no bar do hostel que conheci uma australiana que estava passando pela mesma situação que eu. Desolada, ela também teve as malas perdidas pela mesma companhia aérea. Isso nos aproximou e nos ajudamos. Assim conhecemos um outro cara de New Castle, um local de Dublin, dois outros de Melbourne e três da Áustria. Foi com essa trupe louca e sedenta que saí ontem. Fizemos um Pub Crawl só nosso liderado pelo menino de Dublin. Fizemos mais amigos no caminho e no final parecíamos uma família estranhamente bêbada em que um cuidava do outro. Perdi a conta de quantos Pubs entrei. Lembro até o oitavo. Depois, decidi ir embora.

Eu era a única latina. Eles não tem a menor noção do Brasil. É como se eu fosse um ET. Por isso, me adotaram. Tentei passar várias referências. Me peguei várias vezes defendendo enfaticamente o Brasil como nunca fiz. Disse que gosto de caipirinha, que amo futebol, que sei sambar, que no Brasil o cigarro custa praticamente 2 euros, a cerveja também. Disse que a Copa será incrível e as Olimpíadas um sucesso. Falei da Amazônia, do Pré-Sal e até da Dilma Roussef. Disse que reciclo lixo, me importo com o carbono zero e que as pessoas andam com carro movido a cana-de-açúcar. Nada disso os convenceu de que o Brasil é o melhor lugar do mundo. Hoje, para mim, é.

Bell Gama

setembro/2012

 

 

 

St. Patrick, Arthur e São Longuinho

 

Seria impossível começar o dia de hoje sem escrever no blog. Ontem postei um texto contando da minha saga sem a minha mala em Dublin. Depois de publicá-lo recebi mensagens lindíssimas. Quando o fiz me senti até um pouco infantil de ficar sofrendo pela minha mala. Meus queridos Allex Colontonio, Marcel Gomes e Marina Menezes me relataram seus episódios quando passaram pela mesma situação. Meu coração ficou mais calmo. Eu não estava mais sozinha e sabia que tinha gente torcendo por mim e indignada com a situação. Por isso escrevo para contar o próximo episódio do capítulo da novela “Cara, cadê minha mala?”.

Decidi levar o conselho de alguns adiante e fui tentar conhecer Dublin. “Não deixe que isso estrague sua viagem”, muitos disseram. Pois bem, apesar de achar impossível levá-lo em frente porque a sua cabeça só fica pensando “eu to aqui passeando e minha mala tá em algum lugar do mundo”, decidi dar uma volta. Como já disse, o primeiro lugar que vou é sempre em uma igreja. E se era para apelar para um santo, fui direto ao St Patrick. Ele é o padroeiro da cidade e em sua homenagem é feita a maior festa de Dublin no mês de abril. Todo mundo veste verde e enche a cara. Fui lá na bela Catedral meio gótica, meio medieval que tem quase 1.000 anos (erguida em 1192). Fui direto para o altar. Abaixei a cabeça e pedi pela minha mala. Enquanto pedia, também vinha outro pensamento. “Se a minha mala não voltar, me ajude a lidar com a situação”. Pedi para que ele não me fizesse odiar a cidade que era dele. Pedi intervenção imediata. Eu estava me sentindo muito fraca e indefesa e chorei muito na igreja.

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Olhei as lindas esculturas por lá. Caminhei pelo jardim e … juro, o céu que estava cinza e chuvoso desde que eu cheguei abriu. Pensei que talvez pudesse ser a única oportunidade de ver a cidade sem chuva e decidi que era um sinal e precisava continuar. Fui andando pelos arredores da área Viking Medieval, passei pela Christ Church Cathedral (1030), pelo Dublin Castle (1204), Chester Beaty Library Galleries e o City Mall. Comi um crepe (graças a Deus, um crepe!) nas proximidades do Temple Bar e voltei para a Jervis, um shopping que fica numa rua comercial onde tem sido o meu destino diário para comprar roupa, escova de dente, calcinha, essas coisas. Lá, vi um vestido florido e alegre. O sol já estava a pino. E pensei, quer sabe? Cansei de vestir roupa velha e suja aqui. Estava me sentindo um lixo. Provei o vestido, ficou lindo. Levei. Voltei para o hostel (nada da mala). Fiquei no quarto por um longo tempo pensando em não descer mais. Apesar de ter curtido o passeio, a mala não saia da minha cabeça. Depois, quando não aguentei mais ficar no quarto, desci e encontrei meus amigos gringos (nosso acordo é sempre estarmos as 17h no bar do Hostel). Lá estavam Michelle (Australia) e Andy (New Castle). Eles me perguntaram se eu não gostava mais deles e eu disse que estava cansada, estressada, desiludida, de saco cheio. Para Michelle, motivos suficientes para encher a cara. Me fizeram tomar um Guinness e alguns shots de sei lá o que. Tomei.

Tentei dormir, não consegui. Chorei. Pensei no que poderia fazer. Repensei por que estava me sentindo tão fragilizada. Pensei em tanta coisa que minha cabeça entrou em parafuso. No Brasil, todas as terças-ferias, meus queridos Murilo, Gill, Lau e Vina se encontram em casa para a nossa “uísqueterapia”. Eles me mandaram fotos, disseram que estavam pensando em mim e minha vontade era pegar um avião e correr para os braços deles. Como isso seria impossível, bolei um plano doido. Pensei em acordar o mais cedo possível e ligar para a companhia aérea. Se eu não tivesse uma resposta satisfatória, procuraria o consulado. Se não conseguisse nada, procuraria a imprensa. Pensei: sou jornalista, vou escrever para algum colega falando do descaso da Aer Lingus com seus passageiros. Procurei matérias referentes ao assunto e encontrei. Já fui pauteira e pensei em associar ao Arthur´s Day, que é hoje. Fiz o lead todo na minha cabeça. Já pensei na tradução Depois pensei em fazer um flash mob no aeroporto para chamar a atenção. Enfim, achei que estava enlouquecendo. Era 4h da manhã, tomei um Frontal e capotei.

Me arrastei para a recepção hoje de manhã (fruto do remédio). Perguntei por minha mala, ela não havia chegado. Liguei na companhia, a mulher pediu para esperar. Caiu a ligação. Liguei novamente, outra disse que me retornaria. Mas não retornou. Liguei para o consulado. Eles pediram para eu mandar um e-mail para ver o que poderiam fazer, mandei. Decidi ligar de novo na companhia aérea. MILAGRE! Minha mala havia chegado. Já estava no aeroporto e seria encaminhada pra mim hoje a tarde! Chequei se era verdade no meu site e CONFIRMADO. Minha mala já estava em Dublin. Minha vontade era gritar no meio do lobby do Hostel. Fiquei paralisada. Não sabia o que fazer. Saio? Fico aqui? Vou para o aeroporto? Acordo todo mundo no Brasil? Enfim, o que se faz nessa hora é fumar um cigarro. Fui fumar e de repente vejo uma MIRAGEM. Um senhorzinho com a minha mala na mão vindo em direção ao Hostel. Corri para ele e disse que era minha. Ele perguntou meu nome e se eu era do Brazil e eu disse: YES!

Como a Marina Menezes disse, a vontade é de abraçar a mala, abraçar todo mundo! Subi, tomei um bom banho com todas as minhas coisinhas. Passei todos os cremes. Arrumei minha roupa e agora estou aqui de vestido florido. Esperando para erguer um(s) copo(s) de Guinness e agradecer ao Arthur´s Day, St. Patrick e especialmente São Longuinho!

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Cheers!

Obrigada a todos!

Bell
(setembro/2012)