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Da arte de pentear os cabelos

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Em primeiro lugar, para pentear os cabelos é preciso ter cabelos, salvo se você for calvo como um ovo; então, você pode pentear a sua cabeleira postiça. Pode-se pentear com os dedos, com um pente ou com a escova. Se você for rico, prefira um pente de marfim. Se for remediado, ou pobre, um pente de qualquer massa de plástico serve. Ah, há também o pente fino, geralmente preto, para pentear os cabelos de quem está com piolhos neles ou na cabeça. As mulheres de antigamente eram muito prevenidas porque, depois de penteadas, feito um coque atrás, deixavam nele, fincado, um pente.

Não é usual pentear os cabelos dos sovacos, porque o costume é depilar os sovacos, e sovacos sem pelos como é que poderiam ser penteados?

Não sei se também se penteiam os pentelhos, mas acho que sim. O difícil é pentear os petelhos, porque eles são sempre sujeitos desgrenhados.

É claro que também se pode pentear a barba. Convém, não obstante, penteá-la depois de a botar de molho. Os que usam apenas um bigodinho, como eu, devem penteá-lo com um pentinho; já os sujeitos com bigodões, com um pente de bom tamanho.

Penteia-se melhor mirando-se no espelho. Então, o cara pode repartir os cabelos bem no meio da cabeça, ou num dos lados, numa risca certa. Sem espelho, todavia, o sujeito ou a sujeita conseguem pentear-se. E há as mulheres que trazem, na bolsa, um espelhinho, para isso. Aqui em Ribeirão Preto, onde há muitas poças dágua nas ruas, que são viveiros de pernilongos, consegue-se pentear abaixando-se e olhando a sua imagem refletida numa poça.

Quando o ônibus estaciona num ponto da estrada, isto é, diante de um grande restaurante, os passageiros saem depressa dele, e correm para o que chama de toalete, e ali, depois de verter água e aliviar-se, podem lavar as mãos e pentear-se diante dos espelhos na parede. E é claro, as mulheres também. O que não aconselho é o motorista, dirigindo o carro, ao mesmo tempo pentear-se, olhando para o espelho retrovisor do veículo. Mas há quem o faça, e esbarronda o carro na traseira de um caminhão. Neste caso, vai em seguida pentear-se no quinto dos infernos, ou no céu.

Para pentear-se, depois de lavada a cabeça, enxugados e secados os cabelos, convém usar um fixador qualquer, brilhantina, gumex, glostora, laquê, ou coisa semelhante. Goma arábica não é indicada.

Atualmente, as moças não se penteiam. Ao contrário, metem os dedos na cabeleira e a afofam, de tal modo que se tornam ninhos de guaxo.

O que também se usava antes, para manter os cabelos no lugar, era uma redinha. E as mulheres usavam papelotes, e agora bóbis. Uma mulher de papelotes ou de bóbis, fica parecendo um extra-terrestre. E talvez seja.

Havia cabeleiras de mulheres (e ainda há, creio) que caiam até os pés. Não era fácil para elas pentearem tais cabeleiras. Elas chamavam as mucamas, que então as penteavam muito bem, e ainda lhes faziam cafuné. Uma delícia.

Eu não sou mulher, mas tenho a minha mucama. Chamo-a:

— Josefa, vem pentear os meus cabelos e fazer-me cafuné.

Ela vem.

Lamento se você não tem uma mucama. Trate de arranjar uma.

E vá penteando-se, até que não lhe reste nem um fio de cabelo.

 

 Millôr

Ontem hoje e amanhã

O homem o cabelo parte

Parte o cabelo com arte

Até que o cabelo parte.

(Millôr Fernandes)

 

 

 

As ovelhas tosquiadas

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Há sempre dois lados (quando não há quatro, cinco, ou mais), e quem tirar conclusões ou fizer julgamentos vendo apenas um lado, pode incorrer em erro grosseiro e ser temerário.

Um objeto deve ser olhado de baixo para cima, de cima para baixo e examinado de todos os seus lados. Devemos aproximar-nos dele, afastarmos, sopesá-lo, cheirá-lo, apalpá-lo, para ter uma noção aproximada do que verdadeiramente é. E, ainda assim, erramos muito.

Vale, para o caso, aquela anedota de dois ingleses que viajavam no vagão de um trem, sentados um diante do outro. Olhavam ambos, através da janela, a paisagem, o campo, lá fora. E um deles disse ao outro, vendo um rebanho de ovelhas: “Aquelas ovelhas foram tosquiadas”. Ao que o outro retrucou: “Pelo menos do lado de cá”.

O bom sendo indicaria que as ovelhas haviam sido tosquiadas inteiramente. Mas, quem sabe? Para os passageiros não havia prova absoluta de que elas tivessem sido tosquiadas dos dois lados do corpo.

Quando não podemos ter certeza, o melhor suspender o julgamento.

O fato é que somos chamados a tomar decisões, a cada momento. E decidimos pelo que já vimos antes, pela experiência, pelo que nos parece mais certo ou justo. Manter-se isento, imparcial, sufocar a piedade, a emoção, diante disso ou daquilo, é muito difícil.

Fala-se em objetividade, em ser objetivo. E é quase impossível ser objetivo. Os nossos valores não são iguais. Apela-se então para as máquinas, para o diagnóstico feito pelas máquinas. Mas atrás da máquina está o homem que a manobra e que interpreta o que resulta dela.

Talvez seja melhor aceitar as inclinações do nosso coração. Já dizia Pascal: “Le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas”.

Afinal, todos os homens, os que julgam e os que são julgados, serão um dia também julgados.

E o mais difícil é julgar-se a si mesmo.

 

 maioria-ovelina

 A Maioria: foto de René Maltête (1960)

 

 

Da arte de sair do buraco

 

                    Annibal Augusto Gama

 Annibal

 

 

 

 

 

Para sair do buraco é preciso antes estar dentro do buraco, o que é muito singular, porque buraco não tem dentro. Como os senhores sabem, o buraco é uma coisa da qual se tirou tudo o que havia nele, e se se tirou tudo o que havia nele, o buraco não existe, é um vazio. Apesar disso, grande maioria das pessoas entre nós estão dentro do buraco, e cada vez mais se afundam. Tais pessoas querem sair do buraco, mas não sabem como. Só sabem gritar “socorro!” “me acudam! Se são poliglotas, também berram “au secours! au secours!”, ou “help! help!”. A tais pessoas aconselho desde logo que decidam: querem socorro ou que as acuda? Além disso, como o Brasil é um enorme buraco, estamos todos dentro dele (se é que há dentro no buraco), e sair para onde?

De qualquer maneira, vamos supor que efetivamente o buraco existe, o que é uma contradição em termos, ou um oximoro. E se você não sabe o que é um oximoro procure no dicionário, porque não se deve cair no buraco sem levar antes um dicionário, o Aurélio, por exemplo. Com o dicionário, você pode passar a vida toda no buraco, confortavelmente, aprendendo as palavras. E quando acabarem todas, de “a” a “z”, você estará pronto para sair do buraco e fazer palavras cruzadas.

As pessoas são quase sempre desprevenidas, por isso não caem no buraco levando consigo uma corda, uma escada, uma enxada ou uma picareta. Se levassem, seria fácil sair do buraco subindo pela corda amarrada… amarrada onde? Isto eu não sei, afinal eu não sei tudo. O melhor é a escada, embora, se o buraco for profundo, e a escada pequena, não adiante nada. Leve, portanto consigo uma escada gigante, destas dos bombeiros. A enxada ou a picareta também servem para cavar buracos no buraco (o que é outra contradição), de modo tal que o sujeito pode enfiar os pés e as mãos nesses buracos e ir subindo. Além disso, a enxada ou a picareta servem também para você cavar cada vez mais o buraco, aprofundando-o, até varar do outro lado, no Japão. Aí, você estará salvo, porque o Japão é muito melhor do que aqui, a sua economia é próspera, o país é seguro, e lá, quando um homem público é acusado de ser ladrão suicida-se, o que não acontece com os nossos deputados, senadores e governadores.

Há ainda aqueles que caem sozinhos no buraco, e outros que levam consigo a mulher e a sogra. Se você levar sua mulher e sua sogra e cair com elas no buraco, por que sair dele? Fora do buraco, você já estava no buraco, com elas. Neste caso, permaneça tranquilo no buraco, relaxe e goze, como sugere a Marta Suplício.

Veja os defuntos: eles estão no buraco e não se queixam. Aprenda com eles.

Nosso país tem a vocação do buraco. Os Prefeitos mandam abrir buracos por toda parte e insistem durante anos e anos que eles permaneçam como estão, até que venham outros Prefeitos e mandem afundar ainda mais os buracos. Nossas estradas são um buraco só. Não obstante, continuamos rodando por aí, não se sabe para onde, isto é, para outro buraco. E quando se cava um buraco para fazer a estação de um metrô, previamente estacionam dentro dele dez ou quinze pessoas, que lá ficam para sempre. De tal sorte que a bandeira nacional não devia trazer uma bola em campo verde, mas um tatu, que é o nosso verdadeiro símbolo e vive sossegadamente dentro do buraco.

Portando, meu amigo, ainda que eu lhe tenha fornecido alguns rudimentos da arte de sair do buraco, aprenda outro: rebole-se dentro do buraco.

 

buraco (Alice) 3 

 

 

Da arte de dar com uma mão e tirar com a outra

 

        Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Esta arte não é equivalente à “Lei de Gérson”, que gostava de tirar vantagem em tudo. Felizmente, porém, Gérson só tirava vantagem das equipes estrangeiras de futebol que jogavam contra o Brasil.

A arte de dar com uma mão e tirar com a outra, não é dar mamão com uma mão e tirar mamão com a outra mão. Mas algumas vezes pode ser que sim. Você dá um mamão com uma mão e tira um mamão com a outra. Nestes casos, convém tirar o mamão maior. Próxima desta arte é a outra de uma mão lava a outra, e as duas lavam a cara.

Dar com uma mão e tirar com a outra é o que fazem quase sempre todas as pessoas, mas algumas fazem mais do que as outras, e poucas não dão nem com uma mão nem com as duas, mas tiram com ambas, e tirariam com uma terceira, se tivessem uma terceira mão. É uma espécie de troca. Para dar com uma mão e tirar com a outra, você precisa ser lento com uma mão e rápido com a outra. Só assim o sujeito que recebe de uma mão não percebe que se está lhe tirando com a outra. Quando ele se dá conta disso, você já deve estar longe, abanando-lhe a mão.

Se você for canhoto, convém dar com a mão direita e tirar com a esquerda, porque evidentemente a mão esquerda é mais esperta e ligeira do que a direita. E vice-versa, se você for destro. Se então for ambidestro, pode deitar e rolar.

Também é costume dar com os pés, e tirar com as mãos ambas. De qualquer maneira, não dê o braço a torcer, nem a mão à palmatória.

Há comerciantes que são muito hábeis em dar com uma mão e tirar com as duas. Para isso, eles falam em custo e benefício, e esses trecos de engabelar os trouxas. Quando vão vender uma mercadoria nunca dizem que a tal mercadoria custa quinhentos reais, mas sim quatrocentos e noventa e nove reais. Se for à prestação, eles espicham a prestação em sessenta vezes, e você paga cinco ou dez vezes mais o valor da coisa, que em geral não tem valor nenhum. Porque os juros estão embutidos. Os banqueiros então não dão nem com uma mão nem com a outra. Ao contrário, tiram com as quatro, porque os banqueiros têm quatro mãos, são quadrúmanos.

Quando se usava balança, a arte era botar os dedos, ou a mão, disfarçadamente, num dos pratos da balança, para o freguês ver que a mercadoria pesava mais do que os pesos no outro prato. Eram as balanças “Fiel”, fiel para o negociante. Por isso também se fala em “dois pesos e duas medidas”. A Justiça também pesa na balança, mas pesa menos para os ricos do que para os pobres. E se os pobres reclamam, ela está com a espada na mão para cortar qualquer reclamação.

Os manetas têm muita dificuldade em dar com uma mão e tirar com a outra. Mas podem valer-se das mãos ou dos braços ortopédicos. Ou de um gancho, como o Capitão Gancho.

Dando com uma mão e tirando com a outra, pelo menos você empata. Porém, se for hábil em dar com uma mão e tirar com a outra, usando de todos os recursos desta arte que lhe estou ensinando, ganha sempre. Empatar não é bom negócio.

Não ande com uma mão atrás e outra adiante. Ande com as mãos à frente para poder dar com uma e tirar com a outra, ou com ambas. Andar então com as duas mãos para trás é péssimo. Você fica indefeso, e tudo lhe é tirado.

É dando que se recebe, dizem alguns. Recebe o quê, depois de dar? Geralmente, você recebe um coice. Daí porque os motoristas costumam dizer: “Ou dá ou desce”.

Você pode dar uma volta, que é de graça. Mas se você der uma volta e voltar fica no mesmo lugar, e não vai em frente. Trate de dar com uma mão e tirar com a outra. E não tire a mão daí. Elas gritam, as mulheres nas quais você bota uma mão, ou as duas, mas acabam deixando.

E já que lhe ensinei essas regras de dar com uma mão e tirar com a outra, vou comer o meu mamão. Coma você também o mamão que tirou com uma mão para dar em troca um limão azedo.

 

dar com uma mão

 

 

Horário de Verão

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Embora todos houvessem adiantado uma hora nos relógios, ele manteve no seu o horário de sempre, isto é, passou a ter uma hora a menos do que os demais.

Por isso, chegava sempre atrasado aos encontros e compromissos, sua vida passou a ser um desencontro permanente. Mas já era, antes.

Ao enterro do amigo, chegou quando o defunto já havia sido enterrado. Limitou-se a olhar para a cova e dizer “por que esta pressa?”

O Verão tem três meses, como as demais estações, e suprimiam-lhe uma hora, avançando para o Outono. Explicavam-lhe que aquilo representava uma economia de energia elétrica, e ele retrucava: “Economia foi no dia 20 de outubro, em que desligaram a energia do meu bairro durante mais de seis horas”.

Era um homem de princípios e não admitia que através dessas manobras indecorosas alterassem o calendário gregoriano.

Continuou a fazer as suas refeições no horário habitual, ainda que isso provocasse discussões com a cozinheira. “Na minha casa e na minha vida mando eu!”

Os outros, porém, obedeciam as ordens que vinham do governo, ou seja lá do que fosse.

A uma audiência em que devia comparecer em juízo à uma hora da tarde, chegou ao meio dia e, como não visse ninguém, deu uma banana a todos que ali não estavam e foi embora. O resultado é que foi marcada nova audiência para que ele comparecesse debaixo de vara, como se diz, para sua indignação.

E como faleceu às quatro horas da tarde, em seu relógio, exigiu, do outro lado, que lhe restituíssem mais uma hora. Restituíram-lhe e, por milagre, foi socorrido a tempo, sobreviveu ao ataque cardíaco que tivera, e continua vivendo, com a hora certa, isto é, atrasada de uma hora no relógio.

Quando, afinal, passou a hora do Verão e todos atrasaram uma hora em seus respectivos relógios, ele ainda disse: “Gente mais besta. Comigo não mexem”.

 

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Uma mulher em todas as outras

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

 

            Hesitei em ir-lhe dizer que tudo estava acabado entre nós, mas afinal fui. E ela me respondeu:

            — Nada acaba, tudo continua e se transforma.

            Ignoro se ela sabia disso através de Lavoisier.

            — Se tudo continua e se transforma, eu me transformei e, por isso…

            Ela me interrompeu:

            — Eu vou continuar, ainda que transformada, em você.

            Era justamente isso que me aborrecia, ou perturbava, nela: essa competição filosófica que nos acompanhava até na cama.

            — Margarida, por que você não é simplesmente Margarida? — perguntei-lhe.

            — Eu sou Margarida e todas as mulheres — ela rebateu.

            E tinha razão. Cinquenta anos depois, ela permanece, transformada ou não, em mim.

            Que raio de mulher persistente, que é a mesma e todas as outras!

 

margaridas

 

 

 

Olhando da janela

 

               Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Da janela, fico olhando o céu, de dez em dez minutos. Céu cinzento, nublado, céu de verão. Parece que mais tarde irá chover, sei não. Já não chove como antigamente, com trovoadas e raios, chuva aos potes estralando na calçada, até que, amainando, surgia o arco-íris. Então, os urubus vinham pousar na cumeeira dos telhados, e abriam as asas, para secar. 

Hoje, até os bem-te-vis estão mudos, são três horas da tarde. A preguiça se espicha no sofá, neste calorão dos diabos, que nem o ventilador ligado refresca.

Calor demais é indecência. Frio demais é chato. A vida é chata.

Acendo um cigarro, e logo mais acenderei outro.

Não quero estar com amigos, nem inimigos, afetos ou desafetos.

Ler jornal, neste dia, faz mal para a saúde. Assistir à televisão é aborrecer-se.

Torno a espiar o céu. Ele não muda, parece a Cena Muda, uma revista, também de muitos outroras.

Se o telefone tocar, dou um tiro nele.

Já me aconselharam um banho de cheiro, de ervas aromáticas. Mas eu não sou pernil em vinha d´alho.

Um cachorro late ao longe, outro cachorro late mais longe.

O que eu queria mesmo, aqui, no meu quintalejo, era um galo que cantasse.

Sento-me diante do tabuleiro de xadrez e jogo uma partida de xadrez com um fantasma. O fantasma ganha.

Espio de novo o céu.

Chegará a noite com a sua rima de açoite.

Na rua, não passa ninguém, graças a Deus.

A última vez em que li Virgílio, ele quadrupedava num charco.

Camões anda de carrinho de rolimã, na Mouraria.

O domingo é chato como carrapato.

 

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Instruções para ler um livro

 

             Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Achei muito interessantes e úteis as “instruções para ler o livro”, que estavam nas primeiras páginas de uma obra do renomado Rolando Barates, e lembrei-me de que elas, mutatis mutandis (1), talvez pudessem ser aproveitadas por você, que há anos vem tentando ler o livro que está em sua mão esquerda (2). Vou, portanto, transcrever algumas das instruções:

Em primeiro lugar, abra o livro da direita para a esquerda, na folha de rosto (3). Este livro foi escrito em português e, portanto, deve ser lido da esquerda para a direita, o que não acontece com os livros escritos em árabe, ou em japonês. Vá lendo a primeira linha e, quando ela acabar, salte para a segunda, e assim sucessivamente.

Em segundo lugar, o que foi indicado (“salte para a segunda linha”), não impede que você salte da primeira para décima oitava linha, ou vire logo a página para outra, se você estiver com pressa, ou não lhe interessar a segunda linha nem as demais. Só faço uma observação: Como é que você vai saber que não lhe interessa a segunda linha ou as demais, se não as leu? Não interessa, pronto, e você está com pressa.

Em terceiro lugar, não engula muitas vírgulas. As vírgulas têm a tendência de ser enjoativas e, se você engolir todas, é certo que o seu estômago se embrulhará, e você terá de ir até a pia mais próxima, para as vomitar. Dispense também os pontos de exclamação e os de interrogação, pois alguns autores são muito admirativos e interrogativos, e você não é. As reticências, ou três pontos seguidos, são também dispensáveis, para quê esta mania de esbanjar pontos?

Em quarto lugar, se você encontrar parentes, ou parênteses, bote-os logo para fora, porque parente só os dentes, ou parente é serpente, como alerta aquele filme italiano.

Prossigo:

Se encontrar adjetivos, você que é jurista e sabe o que é “pacto adjeto”, e não ignora que o objeto é que leva a carga, dejete-os.

“Asteriscos” são sinais em forma de estrelas que remetem para baixo, para o rodapé, a explicação que o autor já devia ter dado antes e não deu. Se não deu antes, por que dar depois? Além disso, você não é barata para estar se enfiando nas frestas dos rodapés, nem astrônomo, para estar olhando o céu.

Todo livro traz, em cima de cada página par, o nome do autor e, em cima das páginas ímpares, o seu título. Ora, se o nome do autor já está na capa e no frontispício, por que o repetir centenas de vezes? Só se o autor for sujeito muito vaidoso, e está sempre com o próprio nome da boca. Se assim é, não merece a leitura do livro que escreveu (4).

No princípio do livro, você encontrará um índice, ou um sumário. O índice é aquele ovo que sempre se deixa no ninho da galinha, para que ela volte ali a botar outro ovo. Mas você, leitor, não é galinha nem bota ovo. Ou é, e bota? Aconselho-o a dispensar sumariamente o índice e o sumário.

Alguns livros trazem, ao fim, outro índice, denominado “índice onomástico”. Este sim, é útil, se você estiver à procura de um nome para dar ao seu filho recentemente nascido. Embora os nomes do tal índice onomástico sejam quase sempre estrangeiros, e não sirvam para você, que é brasileiro.

As páginas de iconografia ou de ilustrações (principalmente de mulheres peladas) são as melhores do livro. Detenha-se nelas atentamente.

No fim do livro você pode encontrar a palavra FIM. Arre! Você chegou até o fim, ainda que tenha saltado muitas páginas.

 

(1) “Mutatis mutandis” é latim, e significa “montado no mutango. – (2) Talvez você seja canhoto. Se não for, não importa, segure o livro com qualquer uma das mãos, a menos que você seja maneta. – (3) “Folha de rosto” é aquela folha que você encosta no rosto. – (4) “Que escreveu”, em termos. Há autores que são analfabetos, e alguém escreve por eles.

 

livros (think) 

 

 

A falecida

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

A falecida acabara de ser enterrada quando seu Genésio, voltando para casa, deu com ela no banheiro, lavando o pescoço e os sovacos. Ele não se apavorou, porque sabia que sua mulher não iria deixar a casa sem a pôr em ordem e lhe preparar o jantar. Todavia, timidamente, lhe disse:

— Mas Leocádia, você não precisa se preocupar comigo, eu me arranjo, vou comer um sanduíche…

Então, a falecida, depois de enxugar o pescoço com a toalha, olhou para ele, e respondeu:

— Sanduíche? Você sabe que sanduíche lhe faz mal, não se lembra daquela dor de barriga que teve, quando comeu o sanduíche de pão e mortadela? Vou fazer uma sopinha de legumes.

Dali, ela foi para a cozinha, e começou a tirar as panelas do armário.

Seu Genésio ficou embaraçado, porque estava na hora de chegarem as visitas de condolências, e se elas encontrassem ali a Leocádia, o que haveriam de dizer

Nem ele pensou nisso, e teve de abrir a porta da rua, porque a Luisinha com o marido já chegavam, muito compungidos e lhe diziam:

—Nossos sentimentos, seu Genésio… Nós sabemos a falta que ela lhe faz, mas Deus há de lhe dar consolação…

Mal eles diziam isso, e a Leocádia perguntou, da cozinha:

— Genésio, quem é que está aí?

Luisinha e o marido escafederam-se imediatamente pela porta, embora seu Genésio tentasse lhes explicar:

— Não é nada não, é só uma gravação que eu fiz da voz da Leocádia, e estava ouvindo.

Nos outros dias, porém, correu pela vizinhança que a Leocádia retornara. Aquilo foi um espanto. Então, não a tinham visto no velório, deitada no caixão, e não haviam testemunhado o seu sepultamento? Só podia ser artes do Diabo.

Foram falar com o Padre Túlio, porque não tinha cabimento aquela convivência do viúvo com a falecida.

O Padre Túlio, por descarga de consciência, embora não acreditasse no que lhe contavam, veio ver seu Genésio. Entrou, e foi-lhe dizendo:

— Genésio, meu filho, eu sei a falta que a Leocádia lhe faz… Mas é preciso ter fé, e conformar-se com os desígnios de Deus.

Ele falando isso, e a Leocádia vindo lá de dentro e pedindo-lhe a bênção.

Padre Túlio arrepanhou a saia da batina e partiu dali feito uma bala.

Leocádia, espantada, indagou de seu Genésio:

— Que é que está acontecendo? Essa gente anda muito esquisita.

Seu Genésio então avisou:

— Olhe, Leocádia, é preciso você se prevenir, se resguardar. Para mim, você pode aparecer, e até fazer o feijãozinho com arroz, mas evite o pessoal, que é muito besta.

E, desta maneira, portas e janelas fechadas, os dois passaram a ter paz.

 

tarde gris 4

 

 

O colecionador

 

 

             Annibal Augusto Gama

 Annibal

 

 

 

 

 

Era um colecionador de extravagâncias, algumas absolutamente incríveis, como, por exemplo, um relógio de parede que, ao bater as horas e quartos de hora, dizia insultos terríveis a quem estivesse perto ou o consultasse.

Máquinas estúpidas que deslizavam guinchando atrás das pessoas e lhes mordiam doloridamente os pés, cachorros que vinham mijar na barra de nossas calças. Ele ria, e ligava todas essas máquinas para se divertir e divertir os seus amigos.

Por último, adquiriu uma boneca de plástico, de fabricação exclusiva e apenas sob encomenda, de uma fábrica japonesa, que lhe custara uma nota. Era realmente belíssima a boneca que me mostrou, mas eu lhe disse: “Isso jamais substituirá uma mulher de verdade”. “Substitui sim, e com vantagem”, ele afirmou.

Dois meses depois, ele me convocou, indignado, dizendo-me que haviam matado a sua boneca de plástico. “Será que não foi ela mesma que praticou haraquiri?”, eu lhe disse, gozando-o. “Não brinque, respondeu, “ela foi esquartejada”. Fui ver a boneca e vi que ela de fato fora esquartejada, provavelmente por uma serra elétrica.

― Eu lhe pago o que você quiser para você descobrir quem fez isso com minha boneca.

Não lhe disse nada, mas a minha primeira suposição foi a de que aquilo era serviço de alguma mulher. Mas mulher não usa serra elétrica. Mulher adota antes veneno.

Sou investigador particular, e já havia antes lhe prestado alguns serviços.

Fiz as perguntas de praxe, quem tinha acesso livre à sua casa, onde ele guardava a boneca, para quem a exibira, quando é que estivera ausente, se suspeitava de alguém, etc. Ele me respondeu que suspeitava de todo mundo. “É melhor você suspeitar de uma mulher”, eu lhe disse. “Uma mulher ciumenta, sei que você tem amantes e é um depravado”. Aconselhei-o também a ir à Polícia e denunciar o assassinato da boneca de plástico. “Não brinque”, ele me respondeu, “o caso é grave”.

― Será que a sua boneca não o estava traindo com outro? ― sugeri.

― Impossível ― ele explicou. ― Ela tem garantia de fidelidade absoluta, da fábrica.

Fui entrevistar as amantes dele, e elas admitiram que tinham ciúmes da boneca, mas seriam incapazes de manejar uma serra elétrica. Uma delas disse-me que não gostava nem de ligar o ferro elétrico. Demais disso, disseram, nenhuma boneca as superava, elas faziam coisas que nem uma boneca japonesa saberia fazer.

No meu escritório, refleti: Se não fora uma mulher a esquartejadora, fora um homem. E lembrei-me do Padre Zózimo, que ia à casa dele para pedir esmolas para os pobres e para as obras de igreja. Provavelmente, por deboche, ele exibira a boneca ao Padre Zózimo.

Fui procurar o padre e, de supetão, lhe disse: “Sei que foi o senhor que esquartejou a boneca”.

Ele não titubeou:

― Fui eu mesmo, e não me arrependo. Aquilo era obra do Diabo, e precisava ser exterminado. Já pensou se os padres ricos começam a comprar bonecas de plástico, como aquela?

Não denunciei a ele o Padre Zózimo e, passados uns meses, informei-o de que desistia da investigação. Não havia achado nenhuma pista. E aconselhei-o a comprar outra boneca, mas não a exibir a ninguém.

É uma imprudência exibir as nossas mulheres.

 

boneca de plástico 3