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O assobio

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Depois de examiná-lo escrupulosamente, botando a sua orelha cabeluda em seu peito, o médico lhe disse: “ O senhor tem um sopro no coração”. E ele perguntou: “Dá para assobiar um samba de Noel Rosa?” De fato assobiou:

 

                              “Tenho passado tão mal…

                              A minha cama

                              É uma folha de jornal…”

 

Já não ouço, nem vejo, pelas ruas, as pessoas passarem assobiando. Antes, a cidade era cheia de assobios. E havia aqueles que eram mestres no assobio, como o meu cunhado, que assobiava canções como se tivesse um instrumento na boca. Também se assobiava para as moças que vinham e iam. Elas não, mulheres não assobiam, achavam que era falta de educação.

E lembro-me de Camões, ao final da sua epopeia:

 

                              “No mais, Musa, no mais, que a lira tenho

                              Destemperada, e a voz enrouquecida;

                              E não do canto, mas de ver que venho

                              Cantar a gente surda e endurecida”.

 

Desde cedo, os meninos começavam a aprender a assobiar. Havia também, entre eles, aquele assobio estridente e longo, para o qual era necessário botar os dois polegares dentro da boca. Assobiava-se até para chamar o vento. E os cães atendiam imediatamente ao assobio do dono, chamando-os.

Tarde da noite, ouvia-se alguém passar pela rua, assobiando uma canção.

De um quintal para outro (ainda havia quintais) os meninos assobiavam um para o outro, mandando-lhes recados, em seu código próprio.

Do assobio, muitos passavam a usar um instrumento musical, como a flauta, ou a gaita.

Agora, aqui na minha casa, quem assobia de manhã e de tarde, é o meu papagaio Horácio, o Hino Nacional. É um patriota verde.

Também eu, indo pelas ruas a levar o meu cachorrinho Pichorro, assobio para ele. E, se não o vejo, aqui em cima, assobio, chamando-o, e ele rapidamente sobe a escada e chega aos meus pés.

E havia ainda os pios para chamar pássaros. A família de Rubem Braga era especialista na fabricação de pios. E ele mesmo conta que um dia, em Cachoeiro de Itapemirim, pegou um pio para chamar macuco e foi para o mato, com uma espingarda. Piou, piou, até que veio vindo, lentamente um macuco. Ele engatilhou a espingarda, mas o macuco lhe disse: “Não atire não, moço… Eu só vim ver quem piava tão mal para chamar macuco”.

Assobiai, moços e cavalheiros! O assobio é um recado para a vossa própria melancolia.

 

assobiando 2

 

 

 

 

NO

 

              Alfredo Fressia (aqui)

Alfredo Fressia

 

 

 

 

 

 

                                                           NO

 

                                                                                               Alfredo Fressia

 

(…)

Reverrai-je le clos de ma pauvre maison

Qui m’est une province, et beaucoup davantage?

Joachim du Bellay

 

 

                                    Ni cuando se olviden todos mis poemas

                                    esqueletos del alzheimer,

                                    secos como los tamarindos de la playa, el año

                                    que los encontramos hechos pasto de termitas,

                                    y porque el tiempo hace girar lenta la cuchara

                                    en el plato de sopa de los viejos,

                                    y son 26 letras impasibles de alfabeto.

                                    Y cuando acabe de morir el mártir que me habita

                                    atravesado por el venablo cierto

                                    del que cambió los años por monedas

                                    y registra los segundos que me restan

                                    y aunque el ángel pertinaz de mi pobreza

                                    vuelva otra vez como los mitos

                                    o el perdón y la sangre

                                   por la mano extendida con que espero.

                                   Ni aun así.

 

 

No

 

 

                                               NÃO

 

                                                                                  Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

                        Nem quando  forem esquecidos todos meus poemas

                        esqueletos do alzheimer,

                        secos  como os tamarindos da praia, o ano

                        que os encontramos  feitos pasto de cupins,

                        e porque o tempo faz girar lenta a colher

                        no prato de sopa dos velhos,

                        e são 26 letras impassíveis do alfabeto.

                        E quando acabe de morrer o mártir que me habita

                        atravessado pelo dado certeiro

                        daquele que trocou os anos por moedas

                        e registra os segundos que me restam

                        e ainda que o anjo obstinado de minha pobreza

                        volte outra vez como os mitos

                        ou o perdão e o sangue

                        pela mão extendida com a qual espero.

                        Nem mesmo assim.

 

 

 

A base é uma só: être heureux

 

        Selma Barcellos

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não bastasse me deparar com a safira que reverberava no espelho d’água da Lagoa, almoçar na icônica Nascimento Silva, visitar a “Toca do Vinicius” – pequeno e charmoso templo da Bossa Nova, repleto de livros, songbooks, DVDs, CDs, camisetas, vinis, com um dono enciclopedicamente informado sobre música, ótimo papo – , a tarde ainda me reservava conhecê-lo.

Ça va, Pierre! exclama o dono para um senhor que entra e caminha até nós. Somos apresentados. Era Pierre Barouh. Até tentei segurar a onda que se ergueu no mar. Mas não deu, gente. O homem faz parte da trilha sonora da minha biografia e me concedi o mico de cantarolar “être heureux c’est plus ou moins ce qu’on cherche” … Ganhei o maior sorrisão e na fotografia estamos felizes.

Só esqueci de comentar com Pierre (sentiram a intimidade?) que moro em Itacoatiarrá, praia onde ele passava temporadas em priscas eras (a casa hoje é um clube), recebia Tom Jobim… Quem conta é minha vizinha, uma das mais antigas moradoras. “Itacoatiara era deserta e à noite acendíamos lamparinas. Até Antonio Maria teve casa aqui, Selminha!”.

Saí da Toca nas nuvens e com (mais) um livro do Ruy Castro sobre a Bossa Nova. Delícia de leitura. Já cheguei no Descobrimento de Búzios por Brigitte Bardot, em fotos deslumbrantes. À certa altura, lá está:

“No dia em que se reescrever a Constituição, um dos novos artigos dirá: Todo brasileiro tem direito a um cantinho e um violão. Tem direito também a cidades saudáveis, matas verdes, céus azuis, mares limpos e seis meses de verão. E tem direito a andar na praia, namorar gente bonita e ser feliz.”

Amém, Ruy. É impossível ser feliz sozinho.

  

Houve uma vez dois verões em Búzios e BB aprendeu a cantar “Maria Ninguém”, um clássico da Bossa Nova. Como Deus estava inspirado quando criou essa mulher… Confiram:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=zRCu23SYnrk[/youtube]

 

 

 

Acontecimento

 

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                                                ACONTECIMENTO

 

 

                                               Só o inesperado ocorre,

                                               canastra de surpresas.

                                               O previsível é uma ilusão,

                                               canastra de enganos.

                                               Inútil desejar,

                                               atroz carícia

                                               Inútil.

 

                                               O mundo caminha

                                               rematando calúnias e possibilidades.

 

                                               Somos sem dúvida uma peça

                                               desmascarada e caprichosa

                                               dessa grande máquina e

                                               dela não se sabe o vil calendário

                                               que a move.

 

                                               Participamos

                                               vislumbrando miragens

                                               avidamente

                                               quase sempre.

 

sol 3

 

 

 

A bruma e a broma

 

           Annibal Augusto Gama

 Annibal

 

 

 

 

 

Quando vier o inverno, teremos possivelmente alguns dias e algumas noites de bruma. A bruma não apenas esconde as pessoas, transformando-as em vultos, mas também desfaz as arestas, deixando quase tudo sem contorno. Suponho que os mortos, durante algum tempo, vivam dentro da bruma, esbarrando-se uns nos outros, a perguntarem: Onde estou? Qual é o caminho? Tanto quanto nós outros, ainda vivos, que fazemos as mesmas perguntas. Mas, nas quatro estações, vivemos antes dentro da broma. Somos permanentemente embromados, e também embromamos. Os dicionários definem primeiramente “broma” como “inseto ou verme que rói a madeira”. Só ao fim do verbete é que definem “broma” como “gracejo, chalaça, troça”.

Na broma, neste último sentido, vivemos, passa ano entra ano, neste país das arábias. É a broma geral dos políticos, dos governantes, dos comerciantes, dos publicitários. A broma também e principalmente que toma o significado de trapaça, de engodo, de tapeação. E a broma rói, como o inseto ou verme.

Que são afinal essas cúpulas em que se reúnem periodicamente os governantes dos muitos paises, os economistas, os planejadores? Broma. Prometem auxiliar-se uns aos outros, a confraternizar-se, a acabar com as barreiras e as fronteiras, a diminuir os impostos, a trazer a felicidade para todos. Bromas. Tudo continua e continuará do mesmo jeito.

As eleições sucedem-se, e são as mesmas bromas. De vez em quando, alguns se irritam, e promovem as guerras, as revoluções. São outra espécie de broma 

O homem é o animal que embroma. A mulher embroma o marido, e o marido embroma a mulher. As religiões e as seitas, não raro, também embromam. As utopias não passam de bromas.

Eis porque prefiro a bruma.

 

 

 

La génesis de la vendimia

 

La génesis de la vendimia (Sergio Couri)

 

 

 

                                                 LA GÉNESIS DE LA VENDIMIA 

 

 

                                        Desde la Cordillera,  Afrodita exclama:

                                        ¨!Adornaré  el piedemonte  con viñedos,

                                        Y tantos, que  racimos,  saltando  los dedos

                                        Sobre la tierra caerán como en derrame!”

 

                                       Surge entonces Baco, y, ebrio, aterra:

                                       ¨Que sea,  pero  de las uvas,  en mi honor,

                                       Se haga el néctar más sabroso y  embriagador

                                       Bajo la línea de equinoccio de la Tierra! ¨

 

                                       Venus se suma, y, vanidosa,  dictamina:

                                       ¨!Que anime  esa fertilidad  y ese vino

                                       La mujer bella y joven,  cuál su endorfina!¨.

 

                                       ¨Amén, – dice  la Virgen de la Carrodilla-

                                       ¡Pues ante el Poder Supremo del Divino,

                                       Lo fértil, bello, el vino – todo se arrodilla!¨

 

                                                                                                                   Sergio Couri

                                                                                                                   Mendoza, enero 2014

 

 

Nota da Redação: Sergio Couri, poeta e diplomata, como Vinicius de Moraes  ─ cuja cadeira na Academia de Letras de Brasília ocupa e honra ─ é autor de diversos livros, entre os quais “Timós” (Editora 7 Letras), que reúne as obras “O vento e a vela”, “Luz e sombra” e “Pós-poesia”. Nascido em Niterói, estado do Rio de Janeiro, tornou-se cidadão do mundo não apenas em virtude da sua carreira diplomática, mas sobretudo pela virtude do poeta que se abre à vida e às pessoas de todos os cantos. Reside e trabalha atualmente em Mendoza, Argentina, onde se farta das belezas da vindima à borda da cordilheira. Após a colheita, bebemos nós dos seus versos e nos embriagamos de poesia. Não bastasse, é irmão de Selma Barcellos, levando-nos a concluir que o talento, pelo menos no caso, é genético.

 

 

O que é

 

      Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                         COMO É

 

                                               O cinza da paisagem.

                                               A renda da chuva.

                                               O morno da temperatura.

                                               A espera.

                                               O cansaço e

                                               a ansiedade.

                                               A instabilidade fatal.

                                               Por que tudo ocorre

                                               De uma maneira

                                               E não de outra?

                                               É possível que tudo

                                               Seja como deveria ser

                                               E não de outro modo.

 

cinza

 

 

 

O papagaio de Flaubert

 

            Annibal Augusto Gama

 Annibal

 

 

 

 

 

Quem não leu o admirável conto de Flaubert, “Un Coeur Simple”?  Se ainda não leu, não sabe o que está perdendo.

Felicité era uma criada, que teve a sua história de amor frustrada. Acabou apegando-se a um papagaio chamado Loulou. Afinal, o perroquet morre e ela, também, ao morrer, vê “um vapor azul”, em seu quarto. “Ela avançou suas narinas, aspirando-o com uma sensualidade mística; depois, cerrou as pálpebras. Seus lábios sorriam. As batidas de seu coração diminuíram uma a uma, cada vez mais vagas, mais doces, como uma fonte que se esgota, como um eco que desaparece; e quando exalou sua derradeiro suspiro, creu ver, nos céus entreabertos um gigantesco papagaio, plainando em cima de sua cabeça”.

Fui visitar o meu amigo Germano, que não é muito confiável e, muito imaginoso, conta histórias incríveis. Também eu as conto, e dizem-me: “esta eu não engulo”. Mas engolem.

Na casa de Germano, vi um papagaio no poleiro. Era no inverno e fazia um frio desgraçado. Ao aproximar-me do poleiro, o papagaio, que estava todo arrepiado, disse-me: “Il fait un temps de chien! Quel froid!”

Voltei-me para Germano, exclamando: “O seu papagaio fala francês!” E ele confirmou:

— Pois é… É um papagaio que Flaubert deu ao meu tio-avô, em sua casa, em Ruão.

Ora, Flaubert havia falecido há mais de cem anos e, portanto, o papagaio, ainda que viva sessenta anos, ou mais, não podia ser o que o seu tio-avô recebera de presente de Flaubert.

Mas Germano me explicou:

— Voltando para o Brasil com o papagaio, meu tio-avô arrumou uma papagaia para fazer companhia ao outro. Daí, o casal se apaixonou, e a papagaia botou e cuidou dos ovos que geraram outros papagaios. Este aí é um descendente do casal. 

A explicação era convincente, e aceitei-a.

Retornando para minha casa, contei a história a meu papagaio Horácio, que a admitiu como verídica. E também me disse: 

— Eu mesmo sou descendente direto de um papagaio que D. Pedro I deu à Marquesa dos Santos. Mas não me gabo. Sou republicano, se bem que a república vai mal, muito mal das pernas…

 

flaubert 

 

 

Pois

 

 

           Selma Barcellos

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                           Que melancolia é essa

                                                           Na Lisboa em que me encontro

                                                           Como se naus inda partissem

                                                           Do velho cais, d’algum ponto.

                                                           E essa névoa que insiste

                                                           Em adormecer a paisagem.

                                                           Onde os reis, descobridores

                                                           Fidalgos, navegadores

                                                           Poetas e trovadores?

                                                           Eis que subo a colina

                                                           ─ a mais alta dentre elas-

                                                           E num clarão, num lampejo

                                                           Vislumbro todos, afinal:

                                                           São manto por sobre o Tejo

                                                           A guardar, como encantados,

                                                           A bela senhora dos mares.

                                                           Mulher que recende a alecrim

                                                           E sabe a cravo encarnado.

 

 

lisboa 

 

 

Da arte de suportar o próximo

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Você suporta o próximo e ainda tem de suportar o longínquo, porque de vez em quando vem a notícia nos jornais, ou na televisão, de que na Índia, ou na África, estão morrendo de fome milhares de crianças. O distante não é difícil de suportar, ainda que você tenha pena dele e remorso. O duro mesmo é suportar o próximo. Daí a arte de suportar o próximo, que lhe vou ensinar.

O próximo mais próximo está dentro da sua casa, se é que você tem casa. Se você mora debaixo de um viaduto ou dentro de um tonel, há sempre um próximo no mesmo viaduto ou dentro de outro tonel. Mas vocês então são mendigos, e o jeito é ir levando, já que não levam nada, mas catam nas latas de lixo.

O próximo mais próximo de você é sua mulher, que até dorme na sua cama. Ou não dorme e exige de você o que você não tem vontade, porque trabalhou o dia inteiro e está cansado. De qualquer maneira, é preciso satisfazê-la, para depois você conseguir dormir. Satisfaça-a.

Mas você também terá na sua casa os filhos e as filhas. Eles e elas estão sempre exigindo. E você tem de arcar com as despesas deles, com o colégio, com o carro que eles esbarrondam a cada ano, com o dentista, com o médico, com a roupa, com a alimentação sobre a mesa, com o televisor ligado alto, com o estrondo do som em seus quartos, com as suas brigas e palavrões. E vem também a sua sogra, e você terá de a cumprimentar, dizendo-lhe: “Como está, Dona Emerenciana?” E ela lhe faz cara de raiva, indo ainda dizer à sua mulher: “O seu marido é um traste, não sei como você foi casar com ele”. O seu sogro é que é tolerável, embora lhe dê algumas facadas de vez em quando.

Se você é velho, terá os netos e os bisnetos, e é a mesma coisa. Vá aguentando, e servindo-os. A sua vingança é que, mais tarde, eles terão também os seus próximos.

O mais próximo de você mesmo, agarrado em você mesmo noite e dia, é você mesmo, e você tem de se suportar, o que não é nada fácil. Há até dias em que você terá vontade de se enforcar.

Há ainda os cachorros, o papagaio, os bichos domésticos que você suporta.

Suporta ainda o chefe da sua repartição, que lhe passa descomposturas, suporta o Delegado de Polícia, o Juiz de Direito, e o duro, duro mesmo de suportar é o Luiz Inácio, o Sarney e outros como eles.

Também há que suportar as filas nos Bancos, as filas de ônibus, a espera nos aeroportos, as buzinadas dos carros nas ruas, o vizinho que bate prego na parede às duas horas da madrugada.

Com o tempo, você aprende a suportar os desaforos, as doenças e a canalhice geral. Suportará o Brasil, os Estados Unidos da América do Norte, a China e o Afeganistão, e até o tango argentino.

Ame o próximo, ainda que ele feda.

Suporte a coceira, o calo que dói, as caspas, o dente que dói (se é que você ainda tem dentes)

Suporte, suporte, porque a vida é suportar. E ainda por cima, você vai para o inferno e tem de suportar o Diabo que o carregue.

 

“Conversa de Botequim” (Noel Rosa / Vadico), com Ivan Lins

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=JHfPMBhoduw&hd=1[/youtube]