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Instruções para ler um livro

 

             Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Achei muito interessantes e úteis as “instruções para ler o livro”, que estavam nas primeiras páginas de uma obra do renomado Rolando Barates, e lembrei-me de que elas, mutatis mutandis (1), talvez pudessem ser aproveitadas por você, que há anos vem tentando ler o livro que está em sua mão esquerda (2). Vou, portanto, transcrever algumas das instruções:

Em primeiro lugar, abra o livro da direita para a esquerda, na folha de rosto (3). Este livro foi escrito em português e, portanto, deve ser lido da esquerda para a direita, o que não acontece com os livros escritos em árabe, ou em japonês. Vá lendo a primeira linha e, quando ela acabar, salte para a segunda, e assim sucessivamente.

Em segundo lugar, o que foi indicado (“salte para a segunda linha”), não impede que você salte da primeira para décima oitava linha, ou vire logo a página para outra, se você estiver com pressa, ou não lhe interessar a segunda linha nem as demais. Só faço uma observação: Como é que você vai saber que não lhe interessa a segunda linha ou as demais, se não as leu? Não interessa, pronto, e você está com pressa.

Em terceiro lugar, não engula muitas vírgulas. As vírgulas têm a tendência de ser enjoativas e, se você engolir todas, é certo que o seu estômago se embrulhará, e você terá de ir até a pia mais próxima, para as vomitar. Dispense também os pontos de exclamação e os de interrogação, pois alguns autores são muito admirativos e interrogativos, e você não é. As reticências, ou três pontos seguidos, são também dispensáveis, para quê esta mania de esbanjar pontos?

Em quarto lugar, se você encontrar parentes, ou parênteses, bote-os logo para fora, porque parente só os dentes, ou parente é serpente, como alerta aquele filme italiano.

Prossigo:

Se encontrar adjetivos, você que é jurista e sabe o que é “pacto adjeto”, e não ignora que o objeto é que leva a carga, dejete-os.

“Asteriscos” são sinais em forma de estrelas que remetem para baixo, para o rodapé, a explicação que o autor já devia ter dado antes e não deu. Se não deu antes, por que dar depois? Além disso, você não é barata para estar se enfiando nas frestas dos rodapés, nem astrônomo, para estar olhando o céu.

Todo livro traz, em cima de cada página par, o nome do autor e, em cima das páginas ímpares, o seu título. Ora, se o nome do autor já está na capa e no frontispício, por que o repetir centenas de vezes? Só se o autor for sujeito muito vaidoso, e está sempre com o próprio nome da boca. Se assim é, não merece a leitura do livro que escreveu (4).

No princípio do livro, você encontrará um índice, ou um sumário. O índice é aquele ovo que sempre se deixa no ninho da galinha, para que ela volte ali a botar outro ovo. Mas você, leitor, não é galinha nem bota ovo. Ou é, e bota? Aconselho-o a dispensar sumariamente o índice e o sumário.

Alguns livros trazem, ao fim, outro índice, denominado “índice onomástico”. Este sim, é útil, se você estiver à procura de um nome para dar ao seu filho recentemente nascido. Embora os nomes do tal índice onomástico sejam quase sempre estrangeiros, e não sirvam para você, que é brasileiro.

As páginas de iconografia ou de ilustrações (principalmente de mulheres peladas) são as melhores do livro. Detenha-se nelas atentamente.

No fim do livro você pode encontrar a palavra FIM. Arre! Você chegou até o fim, ainda que tenha saltado muitas páginas.

 

(1) “Mutatis mutandis” é latim, e significa “montado no mutango. – (2) Talvez você seja canhoto. Se não for, não importa, segure o livro com qualquer uma das mãos, a menos que você seja maneta. – (3) “Folha de rosto” é aquela folha que você encosta no rosto. – (4) “Que escreveu”, em termos. Há autores que são analfabetos, e alguém escreve por eles.

 

livros (think) 

 

 

Primeira Chuva

 

 Brenno Augusto Spinelli Martins

 Brenno 4

 

 

 

 

 

 

                                                 PRIMEIRA CHUVA

 

                                       Quero te ver agora

                                       limpa e branca

                                       branca como a folha

                                       de papel em branco

                                       onde os versos

                                       ainda não foram escritos.

 

                                       Quero te ver agora

                                       branca e limpa

                                       limpa como a primeira gota

                                       de chuva que chove

                                       na nuvem

                                       e evapora antes

                                       de tocar o chão.

 

                                       Quero te ver branca e limpa

                                       e feita de agora

                                       que o agora é puro

                                       e branco e limpo

                                       e não traz nada

                                       do ontem ou do amanhã

                                       para embaçar seu brilho.

 

                                       Quero te ver assim

                                       como primeira vez

                                       e escrever verso novo

                                       no papel em branco

                                       e lavar dos olhos

                                       as lágrimas contidas…

 

                                       com a água pura

                                       da primeira chuva.

gotas de chuva

 

 

 

Upgrade

 

 Brenno Augusto Spinelli Martins

 Brenno 4

 

   

 

 

 

                                                                       UPGRADE

 

                                                                                                          Brenno Augusto Spinelli Martins

 

 

                                               Como hei de amar uma mulher já amada?

                                               Como haverei de seduzi-la mais

                                               se seduzida está e apaixonada-

                                               mente me arrebata de amor e paz?

 

                                               Como esquecer essa moça esquecida

                                               que se esqueceu pra se lembrar de mim?

                                               Como prender essa mulher cativa

                                               que me prendeu no seu olhar sem fim?

 

                                               Como adoçar essa mulher tão doce

                                               que me enfeitiçou como se eu fosse

                                               seu derradeiro e inevitável cais?

 

                                               Como farei para aumentar o afeto?

                                               Pois se o amor já atingiu o teto…

                                               como haverei de amá-la ainda mais?

 

upgrade

 

 

 

A falecida

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

A falecida acabara de ser enterrada quando seu Genésio, voltando para casa, deu com ela no banheiro, lavando o pescoço e os sovacos. Ele não se apavorou, porque sabia que sua mulher não iria deixar a casa sem a pôr em ordem e lhe preparar o jantar. Todavia, timidamente, lhe disse:

— Mas Leocádia, você não precisa se preocupar comigo, eu me arranjo, vou comer um sanduíche…

Então, a falecida, depois de enxugar o pescoço com a toalha, olhou para ele, e respondeu:

— Sanduíche? Você sabe que sanduíche lhe faz mal, não se lembra daquela dor de barriga que teve, quando comeu o sanduíche de pão e mortadela? Vou fazer uma sopinha de legumes.

Dali, ela foi para a cozinha, e começou a tirar as panelas do armário.

Seu Genésio ficou embaraçado, porque estava na hora de chegarem as visitas de condolências, e se elas encontrassem ali a Leocádia, o que haveriam de dizer

Nem ele pensou nisso, e teve de abrir a porta da rua, porque a Luisinha com o marido já chegavam, muito compungidos e lhe diziam:

—Nossos sentimentos, seu Genésio… Nós sabemos a falta que ela lhe faz, mas Deus há de lhe dar consolação…

Mal eles diziam isso, e a Leocádia perguntou, da cozinha:

— Genésio, quem é que está aí?

Luisinha e o marido escafederam-se imediatamente pela porta, embora seu Genésio tentasse lhes explicar:

— Não é nada não, é só uma gravação que eu fiz da voz da Leocádia, e estava ouvindo.

Nos outros dias, porém, correu pela vizinhança que a Leocádia retornara. Aquilo foi um espanto. Então, não a tinham visto no velório, deitada no caixão, e não haviam testemunhado o seu sepultamento? Só podia ser artes do Diabo.

Foram falar com o Padre Túlio, porque não tinha cabimento aquela convivência do viúvo com a falecida.

O Padre Túlio, por descarga de consciência, embora não acreditasse no que lhe contavam, veio ver seu Genésio. Entrou, e foi-lhe dizendo:

— Genésio, meu filho, eu sei a falta que a Leocádia lhe faz… Mas é preciso ter fé, e conformar-se com os desígnios de Deus.

Ele falando isso, e a Leocádia vindo lá de dentro e pedindo-lhe a bênção.

Padre Túlio arrepanhou a saia da batina e partiu dali feito uma bala.

Leocádia, espantada, indagou de seu Genésio:

— Que é que está acontecendo? Essa gente anda muito esquisita.

Seu Genésio então avisou:

— Olhe, Leocádia, é preciso você se prevenir, se resguardar. Para mim, você pode aparecer, e até fazer o feijãozinho com arroz, mas evite o pessoal, que é muito besta.

E, desta maneira, portas e janelas fechadas, os dois passaram a ter paz.

 

tarde gris 4

 

 

Recadinho da Selminha

 

Tempo!

 
 
 
 

 

 

My sweet embraceable navegantes, pulinho em Santa Monica. Vou ver a vida sobre as ondas, curtir o filhote aniversariante, reencontrar amigos que por lá deixamos, pedalar, pedalar… Férias.

O Bloghetto volta no início de setembro ou em edição extraordinária.

Até lá, queridos.

Beijocas,

Selminha 

 

 

A espera

 

 

        Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

                                                                                   A espera

                                                                                   A pedra

                                                                                   A vidraça

 

                                                           a espera da pedra

                                                           rompe

                                                           a vidraça.

 

                                                           À espera

                                                           tão esperto

                                                           que antes

                                                           quebra caminhos

                                                           ara silêncios.

                                                           Uma pedra

                                                           move corpos.

                                                           Estático,

                                                           transparente,

                                                           tritura-se

                                                           triturado

                                                           pelo vôo rápido

                                                           incaptável

                                                           de um tempo de mangas.

 

vidraça estilhaçada

 

 

 

O colecionador

 

 

             Annibal Augusto Gama

 Annibal

 

 

 

 

 

Era um colecionador de extravagâncias, algumas absolutamente incríveis, como, por exemplo, um relógio de parede que, ao bater as horas e quartos de hora, dizia insultos terríveis a quem estivesse perto ou o consultasse.

Máquinas estúpidas que deslizavam guinchando atrás das pessoas e lhes mordiam doloridamente os pés, cachorros que vinham mijar na barra de nossas calças. Ele ria, e ligava todas essas máquinas para se divertir e divertir os seus amigos.

Por último, adquiriu uma boneca de plástico, de fabricação exclusiva e apenas sob encomenda, de uma fábrica japonesa, que lhe custara uma nota. Era realmente belíssima a boneca que me mostrou, mas eu lhe disse: “Isso jamais substituirá uma mulher de verdade”. “Substitui sim, e com vantagem”, ele afirmou.

Dois meses depois, ele me convocou, indignado, dizendo-me que haviam matado a sua boneca de plástico. “Será que não foi ela mesma que praticou haraquiri?”, eu lhe disse, gozando-o. “Não brinque, respondeu, “ela foi esquartejada”. Fui ver a boneca e vi que ela de fato fora esquartejada, provavelmente por uma serra elétrica.

― Eu lhe pago o que você quiser para você descobrir quem fez isso com minha boneca.

Não lhe disse nada, mas a minha primeira suposição foi a de que aquilo era serviço de alguma mulher. Mas mulher não usa serra elétrica. Mulher adota antes veneno.

Sou investigador particular, e já havia antes lhe prestado alguns serviços.

Fiz as perguntas de praxe, quem tinha acesso livre à sua casa, onde ele guardava a boneca, para quem a exibira, quando é que estivera ausente, se suspeitava de alguém, etc. Ele me respondeu que suspeitava de todo mundo. “É melhor você suspeitar de uma mulher”, eu lhe disse. “Uma mulher ciumenta, sei que você tem amantes e é um depravado”. Aconselhei-o também a ir à Polícia e denunciar o assassinato da boneca de plástico. “Não brinque”, ele me respondeu, “o caso é grave”.

― Será que a sua boneca não o estava traindo com outro? ― sugeri.

― Impossível ― ele explicou. ― Ela tem garantia de fidelidade absoluta, da fábrica.

Fui entrevistar as amantes dele, e elas admitiram que tinham ciúmes da boneca, mas seriam incapazes de manejar uma serra elétrica. Uma delas disse-me que não gostava nem de ligar o ferro elétrico. Demais disso, disseram, nenhuma boneca as superava, elas faziam coisas que nem uma boneca japonesa saberia fazer.

No meu escritório, refleti: Se não fora uma mulher a esquartejadora, fora um homem. E lembrei-me do Padre Zózimo, que ia à casa dele para pedir esmolas para os pobres e para as obras de igreja. Provavelmente, por deboche, ele exibira a boneca ao Padre Zózimo.

Fui procurar o padre e, de supetão, lhe disse: “Sei que foi o senhor que esquartejou a boneca”.

Ele não titubeou:

― Fui eu mesmo, e não me arrependo. Aquilo era obra do Diabo, e precisava ser exterminado. Já pensou se os padres ricos começam a comprar bonecas de plástico, como aquela?

Não denunciei a ele o Padre Zózimo e, passados uns meses, informei-o de que desistia da investigação. Não havia achado nenhuma pista. E aconselhei-o a comprar outra boneca, mas não a exibir a ninguém.

É uma imprudência exibir as nossas mulheres.

 

boneca de plástico 3

 

 

 

“The Mermaid”

 

             Selma Barcellos

 Selma no Jardim de Luxemburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

Fez-me descer até a garagem para mais uma de suas surpresas. Gosta de  surpreender e de nos ver sorrir, a mim e ao pai.

E voilà, cobertos por um lençol,  aguardando serem desvendados, literalmente, a branca tela no cavalete, as tintas, os pincéis e um livro para iniciantes com sugestões de pinturas e passos para realizá-las.

Da mesma forma que, um dia, aprendendo a andar de bicicleta, soltei suas mãos e disse “Vai, filho!”, aquele presente pareceu devolver-me o desafio: “Agora é com você!”

Algum dom sempre cultivei para desenho, bem sei. Porém, para pintura,  dominava apenas a básica noção de mistura de cores aprendida no longínquo primário.

Passados alguns meses, vendo-o partir em viagem, decidi ir às tintas e colorir o tempo de ausência.

Escolhi uma foto do painel de seu quarto – um entardecer em  Itacoatiara, local  da infância e dos primeiros anos de juventude, reserva do coração.

Insegura em minhas pinceladas iniciais, consolava-me saber que, mesmo não surgindo dali nenhuma obra-prima, em algum canto do quarto ele a penduraria. Afinal, a pintura lhe seria dedicada.

Tudo caminhava  razoavelmente, até que esbarrei na dificuldade do chamado  primeiro plano: uma enorme folha de palmeira que se impunha, soberba, na paisagem.

E sobreveio o desastre. A folha da amadora resultou em algo indecifrável, misto de imenso pássaro negro, nuvem de tempestade, avião queimado no céu. Não havia como esconder, não havia conserto possível. Não ao meu alcance.

A autocrítica foi demolidora. Resolvi desfazer-me do quadro, sem sequer assiná-lo.

Coloquei-o no alley, estreita passagem localizada atrás das casas americanas, onde os moradores têm por hábito deixar suas traquitanas, esperando que alguém as resgate.

Tanto é assim que, ao retornar de  breve caminhada, o quadro se fora.

Ato contínuo, assolaram-me a curiosidade, a dúvida, o arrependimento. Por onde andaria meu quadro? De quem aquela paisagem fizera a alegria? Quem acreditara naquela folha de palmeira?

O delírio levava-me ainda mais longe. E se, belo dia, de tanto errar, eu acabasse acertando e ficasse famosa?  E se me deparasse com o quadro sendo leiloado pela Sotheby’s por milhões e assinado por outra pessoa?

Durante semanas, ao passar pela discreta vizinhança, tão típica daqui, lançava um olhar sorrateiro pelas janelas, na esperança de vê-lo. Nada.

Contando aos amigos, o remorso aumentava. “Você deveria tê-lo guardado para verem a evolução de sua pintura!”. “Já pensou, daqui a gerações, sua família expondo a relíquia?”.

Não hesitei. Arregacei as mangas,  recoloquei o avental. Adiei aquela paisagem para quando minha arte estivesse mais madura e decidi começar um novo quadro, o meu “primeiro” quadro. Afinal, desistir e decepcionar são palavras que nos apequenam.

Assim foi que, ao retornar o filho, retribuí-lhe a surpresa. Na sala, igualmente coberta por um lençol, estava a pintura. Ao lado, um cartão de agradecimento pelo que ele representa de estímulo  em nossas vidas, belíssimo ser humano que é. Instigante, inquieto, propulsor.

Verdadeiramente, naquele instante, com o sorriso que me deu, percebi que minha obra acabara de receber o mais valioso dos lances. Já tinha preço a minha realização.

Ei-la, enfim: uma reprodução do quadro de Douglas Tharalson, “Malibu Mermaid”, meio sereia, meio mulher, meio maga encantando os pescadores.

Tal qual me sinto agora,  meio pintora, meio poeta, meio cronista. E, de alguma forma, também buscando encantar.

 

 

 

Veja o quadro original de Douglas Tharalson AQUI

Não mandou muito bem a nossa artista?

 

 

 

Querela

 

         Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

                                                                       QUERELLE

 

                                                           Rasant les murs,

                                                           entre les actes,

                                                           le fait,

                                                           le chat,

                                                           le miasme du jour.

 

                                                           Le prix correct,

                                                           les intérêts perçus,

                                                           l’avertissement exposé

                                                           avec sagesse et fierté

                                                           la querelle termine.

 

                                                           La dette caduque,

                                                           les parties intéressées

                                                           se séparent

                                                           dans un coffre

                                                           sans fond.

 

 

 

querela1

 

 

 

QUERELA

 

Rente entre as paredes.

entre os atos

fato

gato

miasma do dia.

 

O preço justo,

juros cobrados.

A tacha segura o aviso

com siso e brio,

a contenda termina.

 

A dívida caduca,

divide as partes

interessadas

num baú sem fundo.

 

 

 

Da arte de cantar

 

           Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 Quem canta, seus males espanta. Onde o galo canta, janta. E a galinha também canta. Cantam os passarinhos

Minhas madamas e meus senhores, vou propor-me a ensinar-vos a arte de cantar. Não para que torneis um Passarotti ou uma Callas, mas para que possais cantar no banheiro, ou em alguma festinha íntima e fazer boa figura.

Antes eu ia ensinar aos cavalheiros a arte de cantar a mulher do vizinho. Com a devida cautela, quando o vizinho está ausente, de viagem. Fica para depois.

Para cantar, é preciso antes ter voz. Os mudos não têm, ou quase não têm voz, por isso não cantam. São tristonhos e desconfiados. No entanto, há muito cantor por aí, com mil CDs gravados, que não tem voz, mas canta. Há aparelhos que podeis encostar na boca, como se fôsseis engoli-los, para que tenhais um vozeirão, desses de rebentar os copos de cristais na cristaleira e fazer voar as moscas para fora da janela. Tenho visto, ou ouvido, sujeitos e sujeitas que, festejados em todos os canais de televisão e nos palcos dos festivais, em vez de verdadeiramente cantar, se sacolejam. O que vale é o sacolejo, ter uma mola nos quadris e atirar as pernas, os pés, para todos os lados, e os braços, como num ataque de convulsão epilética. E a platéia urra diante deles, berrando: “É o maior! É a maior!” Basta que tenham os macacos ou as macacas de auditório para os aplaudir.

Não importa que a voz seja roufenha ou de taquara rachada. Se for roufenha, melhor para cantar um tango argentino. Para isto, convém também enrolar um cachecol no pescoço. Aí, é só cantar o “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida” ou o “Mi Buenos Aires querido…”

Tratai, pois, de ir em frente.

Um violão para acompanhar a cantoria, enfiado debaixo do sovaco, é também conveniente. Ainda que mal saibais dedilhar-lhe as cordas e fazer apenas tum-tum, tum-tum. O décor é tudo. Acrescentai antes a isso um pedido ao maestro: “Maestro, dê aí um dó menor.” Isto demonstra que o cantor, ou a cantatriz, entende do riscado.

Como somos do país do samba e do Carnaval, aconselho-vos a cantar o samba, movendo os pés para diante e para trás, acompanhado de um gingado. O êxito será garantido. Se as madamas e os cavalheiros forem mais modernosos, dedicai-vos à bossa-nova. Para ela, quanto menos voz se tiver, melhor. Basta sussurrar, inclinado naquele buraco do violão, como se estivésseis contando um segredo que não deve ser escutado por ninguém.

Não desprezai a moda de viola. Se a adotardes, melhor é que arranjeis um companheiro ou uma companheira. E não esqueçais de dar nome à dupla, Zico e Zuca, por exemplo, ou Taco e Tica. O chapéu de palha, esfiapado, na cabeça, e a camisa de risicadinho complementarão a indumentária. E, nos pés, as alparcatas, com a unha grossa e suja do dedão. Cantai então: “Quando bateu aquela portera, e deixei a casinha com seu oitão e a janela, meu coração se esfarelou, já de sodade dela…” E daí para frente.

Aos que apreciam a música norte-americana, são imprescindíveis o pistão de vara, o saxofone e a bateria. Um piano para ser martelado ajuda. E nem é necessário saber o inglês. As palavras da canção podem ser estropiadas ou cuspidas de qualquer jeito. Cantai “New York, New York’’, com aquele jeitão de Frank Sinatra. E revirai os olhos para cima, cismadoramente. Enquanto isso, ide bebendo o uísque, num copo alto pousado em cima do piano. Ou experimentai o rock. Neste caso, não deixeis de vos desbundar.

O fado, com sotaque alfacinha, chorando pela mãe, vai fazer correr as lágrimas dos ouvintes. Porque todos têm a sua mãezinha, coitada, olhando pela janela, com o xale aos ombros.

A canção italiana, esta é para dar o dó de peito. E a francesa vos assegurará muitas palmas, desde que sejais convenientemente fanhosos, cantando pelo nariz. No vosso repertório, não dispenseis o “La vie em rose”.

Cantai a todos os pulmões, ainda que o enfisema vos ataque. Um cigarro torto pendurado no beiço, ajudará a compor-vos no palco ou na sala. Cantai de madrugada, esgoelando, para que o vizinho chame a polícia. E, se for no banheiro de uma pensão, não importa que outro pensionista esmurre a porta.

Em nosso país, temos vinte milhões de cantores e cantoras. E cada dia surge mais um. Sede mais um, ou uma. Cantai no coro da igreja, no botequim, na esquina, no teatro, nos corredores, e no curral da avó.

A vida é uma canção. Cansa, mas é uma canção. Cantai, sobretudo na orelha da mulher amada, e de vez em quando lambendo-a.

 

cantor