Brenno Augusto Spinelli Martins
PALIVRES
No pensamento
todas as palavras
(até mesmo as inventadas)
presas, trancadas num quarto.
No escrevimento
portas abertas
as palavras libertadas
o atrevimento do parto.
Selma Barcellos
Seria pedir muito que inventores de placas de banheiro fossem menos criativos? Por conta do exagero de suas genialidades e… hummm… de meus chopinhos, passo bons apertos. Cidadão adentra corretamente o recinto dele e eu mando um altivo “o que o senhor está fazendo aqui?”. Em outra ocasião, garçom supergentil bate à porta: “Madame, perdão, este toilette é masculiiiino!”.
Para completar, vou com certa frequência a um restaurante italiano em cujas portas de banheiro há fotos bem antigas, em preto e branco, do rosto do nonno e da nonna. O vovô tem bigodão e a vovó, um buço de responsa. Juro, gente, às vezes inverte… Se bobear, até de costeleta já vi aquela senhora. Mas agora fico esperta. Por alguns segundos, guardo distância regulamentar, ponho a mão no queixo e faço cara de turista no Louvre. Tem funcionado.
Observem, queridos do blog, a que nível de complexidade a coisa chegou: gírias australianas Blokes (garotos) e Sheilas (garotas) em restaurante de rede famosa; palavras celtas Fir e Mna em lounge badalado (ilustraram depois, a pedidos); garrafa e taça sugerindo pipiu e pepeca estilizados e minimalistas… Assim não dá.
Está de bom tamanho escrever MASCULINO e FEMININO, com ícones clássicos do gênero humano. Em português mesmo. Nada de M de men (ou de mulher?).
Nem de objetos em rosa, azul… A blogueira já é uma pastel. E pode ser daltônica, não?
Adalberto de Oliveira Souza
FRAGMENTOS
Nesta noite de sábado,
penso saber
um gosto amargo.
Será doce
coincidir
o gosto, o saber
e o dia.
▪▪▪
Corrói-se tudo,
dia após dia
e à revelia,
corrompe-se
o espaço ocupado.
▪▪▪
O amor,
a dor
e as reticências…
▪▪▪
A vida é um desejo
fraturado pela morte.
▪▪▪
Que solução senão
arder-se nas chamas dos instantes.
Annibal Augusto Gama
O DIA QUE PASSOU
Este dia que passou
foi apenas um dia
como os outros:
passou.
Nenhuma amargura irremediável
nenhum desastre irrevogável
nenhuma palavra exata
fina como um punhal
o marcou.
Só a prata do dia
se gastou.
Que esperavas deste dia?
Ou nem mesmo esperavas:
Foi ele que amanheceu
no ruído da rua
no leve fremir da cortina
e como veio se foi
humilde cão surgido
e desaparecido.
Não ouviste atrás da porta
a confidência sussurrada
ou a conspiração armada.
tudo pareceu normal
pedra de sal
se derretendo
no prato sobre a mesa
e uma lânguida tristeza
fluindo no sofá.
Houve mortes? Houve prantos?
O amor brotou em alguém
como um sol de espantos
e uma lua de jacintos?
Não sabes.
No jornal a manchete
foi um campo onde Troia
feneceu. E tu e eu.
O dia adejou entre as árvores
asas de borboleta
e se espetou para sempre
num calendário de enigmas
que ninguém mais consultará.
Selma Barcellos
CANÇÃO DA ESPERA
Na paisagem
das janelas
surge sempre
um rio
que ela segue
com olhos de horizonte
e sorrisos de lua
até um estuário
de versos
onde as palavras
— presas às margens
feito musgo
feito hera —
aguardam que
poema e vida
se encontrem.
E inaugurem a primavera.
(Montelpuciano, verão de 2012)
Adalberto de Oliveira Souza
PERMANÊNCIA
Viver,
chegar nunca,
a meta
a morte talvez.
Importante é naufragar
lento
e lento emergir,
suave, sereno,
atracável,
camuflado
como o sol no céu.
Deixe-me agora
um pouco só.
PERMANENCE
Vivre,
arriver jamais,
le but
la mort peut-être.
L’important est de s’échouer
lentement
et lentement émerger
suave, serein
accostable,
camoufflé
comme le soleil dans le ciel.
Maintenant,
laisse-moi
un peu seul.
Selma Barcellos
O minúsculo salão para à entrada daqueles jovens. Altos, bonitos, atléticos, elegantes em suas bermudas cáqui, mocassins tipo italiano, um de camiseta ajustada ao corpo, o outro de social rosa-claro com mangas dobradas. Modelos, certamente.
De um lado, as manicures. Poucos metros à frente, as cabeleireiras. Apenas um cortaria o cabelo. O outro acomoda-se na cadeira ao lado, girando-a para melhor observar o companheiro. Conversam baixo, não olham para os lados, sequer pelo espelho. Discretos. Raros, portanto.
De vez em quando o que aguarda se levanta, circunda a cadeira e orienta a profissional quanto ao desenho da nuca do amigo. De quebra, passa a mão para tirar o excesso de pelos caídos.
Encerrados os trabalhos, uma única fala (entre)ouvida: “Deixa que eu pago. Não devia, hein! Você me fez passar a noite em claro com o choro do baby” .
Beijam carinhosamente a cabeleireira, dão um boa-tarde formal a todas nós, e se vão. Pela parede envidraçada que descortina a galeria, ainda os vemos, mão no ombro, brincadeiras, risos.
– Adoro esses irmãos… Corto o cabelo deles desde pequenos. Sempre educados e unidos assim… – diz a cabeleireira sacudindo a capa.
Corta. (barba, cabelo, bigode e, se conseguirmos, as conclusões precipitadas, os pré-conceitos)
(by Bruce Gilden)
Adalberto de Oliveira Souza
Esta entrevista foi realizada em casa do sr. José Mindlin por ocasião de uma estada em São Paulo em 1975 do poeta João Cabral de Melo Neto por Adalberto de Oliveira Souza e Maria Neuza Cardoso (participantes da Revista Geratriz) com a participação de Mary Folly (na transcrição) e Plínio Marcos (presente e participante desta entrevista).
FÁBULA DE UM ARQUITETO
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar ou prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e tecto.
O arquiteto o que abre para o homem
Tudo se sanearia desde casas abertas)
Portas por-onde, jamais portas-contra;
Por onde, livres: ar luz razão certa.
2
Até que, tantos livres e amedrontando,
Renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
Opacos de fechar; onde vidro, concreto;
Até refechar o homem; na capela útero.
Com confortos de matriz, outra vez feto.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
(in A EDUCAÇÃO PELA PEDRA – 1962/1965)
ENTREVISTA COM JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Foto de Oscar Cabral
GERATRIZ – Além dos dados biográficos que se conhece, nascimento no Recife, parentesco com Manuel Bandeira, com Gilberto Freire, que o senhor gostaria de dizer sobre si mesmo?
J. CABRAL – Eu tenho a impressão de que a minha vida não foi muito interessante, nem aventurosa. Fui sempre um menino comportado, um estudante estudioso, um funcionário que trabalha. Não fui um “enfant terrible”.
Fui sempre e continuo a ser um sujeito inteiramente apagado. Uma vida rotineira, compreende?
GERATRIZ – “Com cada coisa em seu lugar”?
J. CABRAL – Exato. Eu sou um sujeito sem nenhum interesse como pessoa.
GERATRIZ – Suas atividades como diplomata exercem alguma influência em sua obra?
J. CABRAL – Há um lado positivo e um negativo. É uma atividade em que você convive com pessoas interessantes e tem a possibilidade de abrir muito seus horizontes culturais. Mas ao mesmo tempo a pessoa na carreira diplomática está em geral em outros países e é obrigada a falar 24 horas por dia uma língua estrangeira. Entretanto isso me prejudica pouco, porque a minha poesia é muito construída e à medida que vou trabalhando meu texto, vou depurando-o dessas influências das línguas estrangeiras.
GERATRIZ – Para que serve a poesia no mundo de hoje?
J. CABRAL – Deve ter dez mil utilidades. A vida moderna está empobrecendo o vocabulário, o sentido da palavra e a facilidade de assumir a linguagem. A poesia explora todas as potencialidades da língua, é uma maneira de mantê-la viva. Senão, vamos acabar falando uma língua de dez palavras.
– “Tudo é bacana, é legal, é um barato”. A língua está muito limitada e a poesia tem que explorar todos os seus matizes, todas as suas virtualidades.
GERATRIZ – Qual o seu conceito de poeta e de poesia?
J. CABRAL – Uma coisa que me irrita muito é verem no poeta um mago ou um sujeito meio iluminado. Por que é que chegam junto de mim e me dizem: “Poeta, como é que vai?” Por que ninguém chega junto do Antonio Candido e diz: “Ó crítico como é que vai?” O poeta um escritor como outro qualquer, não é um ser humano privilegiado. A única diferença da poesia para a prosa é que o poeta vê a palavra como uma coisa em si, ao passo que o prosador está mais interessado na idéia. Ele vê a palavra de dentro para fora e o poeta vê a palavra de fora para dentro. Pelo menos eu confesso que não sinto nenhuma diferença de minha pessoa para outras que escrevem ou não. Apenas eu tenho essa habilidade, como o sapateiro e o carpinteiro têm a deles.
GERATRIZ – O sr. prefere que a sua poesia seja lida em voz baixa ou alta?
J. CABRAL – Eu escrevo para ser lido em voz baixa. Há muitos textos que não podem ser lidos em voz alta. Se você pegar por exemplo “O ovo de galinha”, “Paisagens com cupim”, “Canavial” e ler em voz alta, nenhum dos circunstantes vai entender. É um tipo de poesia que é preciso ler lentamente, com atenção e reler. Como eu fiz “Morte e vida severina” para teatro, o “Rio”e outras obras que podiam ser encenadas, o Fernando Sabino e o Rubem Braga resolveram reuni-las no livro Outros poemas em voz alta. Eu preferia Outros poemas para vozes. Essa é a parte dos meus livros que a pessoa pode ler em voz alta e os outros entendem.
GERATRIZ – Como se processa a sua criação poética?
J. CABRAL – Ainda agora você falou em “Tecendo a manhã”. Eu me lembro, em 1956 fui para Sevilha e comecei a escrever esse poema que saiu em A educação pela pedra e foi publicado nove anos depois. Foi um poema no qual eu trabalhei ate as vésperas de entregar o livro ao editor. Isso não quer dizer que eu tenha trabalhado nele todos os dias. Foi uma coisa que eu fazia; esquecia, largava. O “Rio” que são 960 versos escrevi em dois meses e, no entanto “Tecendo a manhã” que são 16 versos, passei oito anos para escrever. Não há nenhuma norma possível.
GERATRIZ – Quais as influências da sua formação poética?
J. CABRAL – É uma das coisas mais difíceis de dizer, porque desde que eu me conheço por gente nunca fiz outra coisa na vida senão ler. Uma grande influência que tive foi a do arquiteto Le Corbusier. Outra grande influência foi a dos poetas metafísicos ingleses. Qual é a influência? É difícil de dizer. Enquanto você vive, você é influenciado. Em geral, há uma influência essencial, definitiva que marca vida da pessoa. Nesse caso, eu posso dizer que filosoficamente foram os livros de arquitetura do Le Corbusier.
JOSÉ MINDLIN – Como visão de poesia o Bandeira e o Drummond tiveram certa influência…
José Mindlin
J. CABRAL – Sim, mas aí já no oficio de fazer, o Carlos Drummond dos primeiros livros. A influência do Bandeira foi menor. Quando comecei a me interessar por literatura nunca pensei em ser poeta. A minha vontade era ser crítico literário. Mas quando eu descobri “Alguma poesia” do Carlos Drummond de Andrade, me deu a impressão de que…
JOSÉ MINDLIN – Poesia não era só soneto.
J. CABRAL – eu também podia fazer poesia. Era preciso fazer poesia com o verso áspero. Você sente muito isto, por exemplo, naquele poema do Drummond “Perdi o bonde e a esperança/Volto pálido para casa”. Quem estava acostumado a ler Olavo Bilac, aquela coisa harmônica, quando chegava a Drummond tinha um choque. Veja o tipo de ritmo, é uma coisa cortada, áspera. O tipo de melodia sinuosa típica do decassílabo brasileiro me repugna. Nos meus tempos de colégio, a minha atenção já ficava preparada para ver como é que ia terminar. Não só o momento final do verso que era a rima, mas o momento final do soneto que era a chave de ouro. Aquilo me envenenava e eu dizia: “mas que atividade inteiramente absurda”. “Ora direis ouvir estrelas”, mas que é isso? Eu jánão falo no tema, porque cada época vem com seus temas, não era isso o que eu criticava, mas apenas aquela maneira…Eu sou um sujeito meio sonolento. Muita gente faz esforço para dormir, o meu esforço é para acordar. De forma que existe um tipo de poesia que parece embalar você. Esse tipo de poesia não é a minha. Eu sou inteiramente atraído pela fanopeía e às vezes pela logopeia. Sou inteiramente insensível a melopeia.
GERATRIZ – Alguns teorizadores do Modernismo consideram Oswald de Andrade e João Cabral de Melo Neto os poetas que influenciaram o desdobramento da perspectiva atual da poesia concretista. Qual é a sua opinião a respeito?
J. CABRAL – Realmente há uma certa tradição em torno desses três nomes. O Carlos Drummond deve muito a Oswald como eu devo muitíssimo ao Carlos Drummond, influenciamos os concretistas ou não… Eu sou mais velho que os concretistas. O filho compreende o pai, mas o pai necessariamente não compreende o filho. Cada nova geração incorpora à humanidade uma nova experiência. Todo julgamento de um poeta mais velho para um poeta mais moço e fraco. Eu fui talvez o poeta menos compreendido pelos poetas mais velhos do que eu. Foram os poetas mais jovens que disseram aos mais velhos que tinha alguma importância. A Revista nova que era do Sérgio Buarque de Hollanda e do Pedro Morais Machado tem um ensaio do Mario de Andrade no qual você vê um entusiasmo dele por Manuel Bandeira, por Schmidt e por Murilo que você não vê pelo Carlos Drummond. Ele fala de Drummond no fim do artigo. Ele não lhe confere a mesma importância que aos outros. Porque o Carlos Drummond dos quatro era o que estava fazendo uma coisa mais nova e que escapava a ele, Mário de Andrade, como mais velho. Eu sinto que nesse artigo o entusiasmo dele não é para Carlos Drummond que se revelou depois o maior dos quatro. Mas é o que o Mario de Andrade menos entendeu, ou entendeu com menos entusiasmo. O Manuel Bandeira que era meu primo e muito amigo meu, respeitava minha poesia, mas tenho a certeza de que o Manuel morreu sem nunca ter entendido porque o pessoal mais moço dava essa importância à minha poesia. Isso significa que havia uma faixa de experiência estranha ao Manuel Bandeira, mas para os mais moços do que eu, não era. Por isso quando vejo um poeta ou um artista qualquer saudado com muito entusiasmo pelos mais velhos eu penso: ele não está fazendo nada de novo, esta apenas trazendo uma experiência na qual os mais velhos estão se identificando.
GERATRIZ – Como é considerada nossa literatura no exterior?
J. CABRAL – Não só na Espanha, como em outros países onde eu tenho vivido, aqueles que são capazes de conhecer a literatura brasileira, não a consideram uma literatura que se lê por ociosidade. Consideram-na da mesma expressão de qualquer grande literatura.
Acontece e que a língua portuguesa não é muito difundida.
JOSÉ MINDLIN – Aqui você poderia mencionar os ensaios de Octavio Paz em “Signos em Rotação”: “Não obstante, a literatura brasileira não faz parte da literatura hispano-americana: tem independência, caráter e fisionomia inconfundíveis. O Brasil é algo mais do que uma nação: “é um universo linguístico irredutível ao espanhol. A frase “Guimarães Rosa e é um escritor brasileiro” alude não só ao registro civil como literatura e mais adiante “A figura mais representativa da geração de 45, João Cabral de Melo Neto, poeta estrito e rigoroso, contrário do barroquismo de Lezama Lima ou da vegetação verbal de Enrique Molina; por fim seria inútil procurar entre os poetas jovens da América hispânica um grupo como o de Invenção (Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Braga). Em 1920 a vanguarda estava na América hispânica; em 1960, no Brasil.”
J. CABRAL – O Angel Crespo publicou na Espanha uma grande antologia da literatura Brasileira. A poesia brasileira é uma poesia com que todo mundo conta, por exemplo, a vanguarda brasileira, quando eu estava em Berna, o Itamarati me mandou para a bienal de Knoklezut (Bélgica) e durante 3 ou 4 dias essa comissão que tinha gente de todos os países, só discutiu a vanguarda brasileira. Eles ficaram anos discutindo o concretismo brasileiro, a poesia práxis, tudo isso. Uma literatura pode ter um escritor de valor universal, é o que acontece com a literatura sueca, norueguesa, dinamarquesa, em cada 50 anos vem um sujeito. Quando um país dá um grande escritor não quer dizer que esse país tenha uma grande literatura. Uma literatura é grande quando ela tem um elenco de grandes escritores de um mesmo nível. E isso acontece no Brasil.
JOSÉ MINDLIN – Principalmente na nossa poesia.
J. CABRAL – Na nossa poesia, no nosso romance, no nosso teatro.
GERATRIZ – O sr. Teve algum contato com o Guimarães Rosa?
J. CABRAL – Ele foi meu colega em Itamaraty. O Guimarães Rosa foi um escritor que publicou tardiamente. Eu era muito camarada dele. Era um homem amabilíssimo, um escritor fabuloso. Conversamos muito, sobre literatura.. Era uma grande “faber”, o contrário de mim, que sou um sujeito muito preocupado com teoria. O Rosa não tinha preocupação em discutir teoria literária nem artística.
Ele tinha interesse mesmo no oficio de fazer.
E eu apesar do interesse no oficio de fazer, sou fascinado pela teoria. A leitura que me dá mais prazer no mundo, muito mais do que poesia, é teoria literária.
GERATRIZ – O Ferreira Gullar em “Vanguarda e Subdesenvolvimento” faz uma análise do livro “O cão sem plumas” onde ele assinala a interrelação que há entre o Universal e o Particular. Até que ponto isto é intencional em sua obra?
J. CABRAL – Meus primeiros livros são inteiramente imaginados, desenraizados. “O engenheiro” que eu considerava um livro que poderia ser de qualquer país o Vitorino Nemézio disse que só um brasileiro do Nordeste que podia ter escrito aquilo. Apesar de não ter a palavra Nordeste e nenhum termo pernambucano. Quando eu estava em Barcelona no período de 1947 a 1950, de repente descobri o Brasil.
Um dia eu estava no consulado e li um artigo sobre a expectativa numa revista chamada O observador econômico e financeiro. Então eu descobri que na Índia, a expectativa de vida era de 29 anos e que no Recife que é a minha cidade, onde eu me criei até quase 23 anos, a expectativa de vida era de 28 anos.
Eu caí das nuvens!
Em 48, quando eu comecei a escrever “O cão sem plumas” tinha uma expectativa ainda mais baixa.
Aquilo me impressionou muito e eu julguei desonesto tudo o que eu tinha escrito até aquela época.
Ao mesmo tempo não me sentia capacitado para fazer uma literatura regionalista de forma que escrevi “O cão sem plumas” certo de que ia ser a última coisa que eu ia escrever.
Este livro sofre dessa ambiguidade, você sente que tem uma forma, tem um tipo de imagem, um tipo de construção ainda não brasileira, popular, ao contrário é um tipo de imagem um pouco surrealista, mas aplicada a temas pernambucanos. Só depois do “Rio” é que eu encontraria uma forma popular para falar de temas pernambucanos. Talvez seja isso que o Ferreira Gullar tenha querido assinalar porque é realmente um livro de transição.
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GERATRIZ – Qual a tese ou trabalho sobre sua obra que mais o impressionou e por quê?
J. CABRAL – Há dois tipos de crítico. Um que fala de você e no que ele diz você se reconhece. Este é um crítico que não me impressionou muito. O outro tipo de crítico compreende certos aspectos do que você faz, mas você nem tinha pensado neles. Este sim é um tipo de critico que me impressiona muito. Para dizer a coisa que mais me impressionou, eu não sei, porque já fizerem sobre mim ensaios de maior importância. Para citar um exemplo, quando o meu primeiro livro saiu, eu estava no Recife. Eu conhecia o Antonio Cândido de nome, ele já morava em São Paulo e já fazia crítica literária. Eu mandei para ele o livro Pedra do Sono sobre o qual ele publicou uma crítica no jornal Folha da Manhã (1)
JOSÉ MINDLIN – Era um dos “chato-boys” não é? (2)
J. CABRAL – Sim. Mas eu lá no Recife nem sabia da existência deste jornal – Folha da Manhã e não tinha lido esse artigo. Quando eu vim para o Rio, um dia conversando com o Carlos Drumond ele citou esse artigo de A.Cândido. Hoje eu poderia colocá-lo como prefácio em minhas poesias completas porque ele previu tudo o que eu ia escrever, a maneira como eu ia escrever e meu primeiro livro não é ainda muito característico da minha maneira posterior, mas ele pressentiu tudo. Notou que minha poesia aparentemente surrealista, no fundo era a poesia de um cubista. De fato, de todas as escolas, estilos de pintura, a coisa que mais me influenciou, mais me marcou foi o cubismo. Daí também essa grande influência de Le Corbusier. O Antonio Cândido previu este meu construtivismo essa minha preocupação de compor o poema, de não deixar que o poema se fizesse sozinho, de falar das coisas e não de mim.
JOSÉ MINDLIN – O Antonio Cândido tem desmentido aquele preconceito de que o crítico é um escritor frustrado. Ele tem criatividade na crítica.
Notas da Redação:
(1) O artigo do Prof. Antonio Cândido sobre “Pedra do Sono” encontra-se publicado no jornal Folha da Manhã de 13/-6/1943, na página 5 e pode ser consultado na Biblioteca Municipal ou ainda no Arquivo da Agência Folha. Dele extraímos os trechos:
“De um modo geral, me parece que a literatura, mais no Norte do que no Sul, é ainda a grande via de expressão. Entre nós, centro-sulinos, manifesta-se na mocidade uma certa tendência para o ensaio, a pesquisa histórica e sociológica, a crítica sobre todos os seus aspectos. Tendência que predomina sobretudo em São Paulo, onde o número de poetas e ficcionistas desaparece ante o acúmulo de críticos e pesquisadores. É com prazer que constato essa inclinação como que pragmática de utilizar a Inteligência e a sensibilidade na análise do nosso tempo e dos seus problemas – porque me parece que dessa auscultação ansiosa pode resultar uma linha de pensamento e de conduta que seja o nosso roteiro.
Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente que procura construir um mundo fechado para sua emoção, a partir da escuridão das visões oníricas. Os poemas que o compõe são, é o termo, construídos com rigor, dispondo-se os seus elementos segundo um critério seletivo, em que se nota a ordenação vigorosa que o poeta imprime ao material que lhe fornece a sensibilidade. Disso já se depreendem as duas características principais desses poemas, tomados em si: hermetismo e valorização por assim dizer plástica das palavras.
E assim são quase todos os poemas do sr. Cabral de Melo. Não o chamo, porém, de cubista, porque ele não é só isso. O seu cubismo de construção é sobrevoado por um senso surrealista da poesia. Nessas duas influências – a do cubismo e a do surrealismo – é que julgo encontrar as fontes da sua poesia.”
(2) Ver “ Digressão sentimental sobre O. de Andrade do Prof. Antonio Cândido, in Vários Escritos, 1970, Livraria Duas Cidades.
Antonio Cândido e João Cabral, em 1994
GERATRIZ – O sr. Chegou a conhecer a tese de prof. João Alexandre Barbosa?
J. CABRAL – Sim, eu li, mas é algo altamente especializado e eu precisaria ter a cultura estruturalista que ele tem para poder julga-lá. Ele descobre uma porção de coisas em mim que eu não tinha nem pensado ainda.
PLÍNIO MARCOS – O que o sr. acha da cultura brasileira hoje? (3)
Plínio Marcos
Nota da redação:
(3) Ver jornal Última Hora de 27/07/1974. p. 16
J. CABRAL – A cultura, de um modo geral, oscila não só em intensidade e qualidade, mas também entre épocas de criação e épocas de avaliação. Esses últimos anos formaram uma época, sobretudo de critica. O Brasil em diversos setores teve uma grande época de criação e de repente a geração que chegou depois sentiu necessidade de parar e dar um balanço. Tenho impressão de que o que se está se fazendo de melhor nesses últimos anos á nós é uma espécie de avaliação critica. A cultura vai avançando e chega um momento que para você continuar a avançar, você tem que tomar pé, dar um balanço e ver onde é que você chegou e para onde é que você vai.
JOSÉ MINDLIN – Muitas coisas podem estar sendo criadas agora e vão aparecer depois. Também não é possível a gente dizer, se numa época há ou não há criação.
Eu tenho a impressão de que os criadores devem estar amadurando essas coisas.
Selma Barcellos
Estão acompanhando o quiproquó sobre o Acordo Ortográfico em Portugal?
Seguinte: o presidente do Centro Cultural de Belém, poeta Vasco Graça Moura, simplesmente ordenou que todos os corretores ortográficos fossem retirados de sua instituição e corre contra o fim do tempo de transição – 31 de dezembro de 2014 – para fazer valer seus argumentos de que o acordo “desfigura a língua portuguesa”. No caso da supressão das consoantes mudas, por exemplo, o poeta prevê o caos: “adopção“, se escrita “adoção“, será lida “adução“, que é do verbo “aduzir” e não “adoptar”.
No Brasil, a transição que expirava em dezembro de 2012 foi estendida até 2016. Mas as regras foram internacionalmente discutidas pela ABL, o Congresso aprovou, e os 10 anos que a lei exige para sua regulamentação foram cumpridos.
Esta blogueira, a princípio zuretinha com os hifens, e devastada pela morte do trema (AQUI), adoptou as mudanças. Fazer o quê? Só não se conforma, até hoje, com o sumiço do acento do “pára” (verbo) a gerar ambiguidades e equívocos. Complicou.
POEMINHA ORTOGRÁFICO
Baila comigo?
─ pergunta ele ─
com tudo.
Para já!
─ escreve ela ─
do outro lado
da tela,
deixando-o
mudo.
E no entanto
─ sonhava ─
era para já
que bailassem.
Era urgente
que se amassem.
Maldita reforma.
Fez confundir
um sinal
tão agudo.
Foi grave.
(Itacoatiara, algum outono, 2012)