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Fora dos holofotes

 

Após estrear na literatura aos 76, Annibal Gama ganha elogios de críticos

LUÍS FERNANDO WILTEMBURG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE RIBEIRÃO PRETO

 

 

A recepção na casa de Annibal Augusto Gama já denota a erudição do anfitrião. A sala tem uma TV de tela grande que se perde em meio a centenas de livros e dezenas de quadros dele próprio.

Volumes e mais volumes se multiplicam nas estantes das salas de visita e de jantar.

Aos poucos, os livros começam a se empilhar na mesa de centro, à medida que são exibidos, aos poucos, pelo dono da casa, um senhor elegante, de cabeça e fala afiadas, com quase 89 anos –a serem completados em dezembro. São cerca de 5.000 em sua biblioteca, dos quais mais de 3.000 são literatura e o restante, da área jurídica.

Promotor aposentado com atuação importante em Ribeirão Preto (313 km de São Paulo), Annibal é também escritor com sete livros publicados pela editora Funpec e artista plástico –embora não se considere um– com cerca de 200 quadros pintados.

Também ilustra os próprios livros e outros, de amigos que lhe pedem o favor.

Em sua produção literária há romances, contos e poesias. Ainda tem, diz, pelo menos 30 outros livros prontos para serem publicados. Em breve, deve publicar o romance “Damião Damião”.

O homem modesto, de conversa deliciosa, quase sempre com um cigarro nos dedos –fuma dois maços por dia–, já recebeu, pelos poucos livros que publicou, elogios em análises literárias feitas por críticos consagrados.

Um dos apreciadores é o escritor e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, convidados da Feira do Livro de Ribeirão neste ano.

“Gama é um caso raro na literatura brasileira, porque começou tarde e nasceu pronto.”

  Silva Junior/Folhapress  
O escritor Annibal Gama durante entrevista em sua casa, em Ribeirão Preto
O escritor Annibal Gama durante entrevista em sua casa, em Ribeirão Preto

 

De acordo com o crítico, em geral as pessoas começam a publicar ainda jovens, “quebrando a cara”. Alguns se arrependem e, na maturidade, renegam sua obra.

“É uma pessoa que tem a consciência do que está fazendo, tanto na poesia, que é muito significativa, como nos contos”, diz Sant’Anna.

Outros grandes veículos de comunicação foram além nos louros. Crítica de “O Estado de S. Paulo” escreveu que ele “mereceria estar entre os maiores nomes de nossa poesia do [fim do] século 20”.

 

FORA DOS HOLOFOTES

Ainda assim, Gama segue praticamente no anonimato, que ele justifica com a falta do hábito de leitura do brasileiro e distribuição de livros deficitária pelas editoras.

Dos outros 30 prontos, pretende publicar mais algum? “Ah, não. Não vale a pena, ninguém lê”, lamenta.

A opinião diverge da do neto. Eduardo Gama, 35, planeja o lançamento de “Damião Damião”. Quer cuidar da diagramação à divulgação e logística, até em Curitiba.

Também gostaria de publicar outros títulos arquivados do avô, com quem mora, como o “Manual para Pentear Macacos” e o “Manual para Dirigir no Trânsito”. Segundo Eduardo, são títulos divertidos e gostosos de ler. “Ideais para uma viagem.”

 

NOVELISTA PRECOCE

A vasta obra de Gama foi acumulada durante toda a vida. O primeiro publicado, “Manual para Aprendiz de Fantasma”, só saiu em 2001. Mas o primeiro que ele escreveu, recorda, data de quando tinha oito ou nove anos.

Foi um romance policial de cerca de 200 páginas, escritas a mão e à luz de lampião. Chamava-se “Vítimas de Satã” e se passava em Londres.

As novelas policiais, aliás, trazidas pelo pai à fazenda Rio Branco, em Rifaina, onde moravam, inspiraram o interesse do menino. Mais tarde, estudando em Franca, começa a publicar textos na imprensa local. E a paixão pelas letras nunca mais acabou –hoje é colunista do jornal de Ribeirão “A Cidade”.

Gama estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP, em São Paulo. Como promotor, atuou em São Paulo e mais dez cidades da região, para onde resolveu se mudar.

“A Promotoria me deu oportunidade de conhecer muita gente, muitos tipos engraçados e outros, esquisitos”, recorda. Ainda assim, diz que a inspiração não vem dos casos investigados pelo Ministério Público do Estado. Surge de qualquer coisa. Até uma simples palavra pode acender a imaginação.

Sua carreira profissional rendeu destaque no documentário “Texto & Testa”, do também promotor Marcelo Pedroso Goulart.

Como leitor, idolatra, no Brasil, Machado de Assis e Eça de Queiroz. Do exterior, prefere os ingleses e franceses.

Seu interesse pelas artes plásticas surgiu quando estudava em São Paulo. A influência mais forte em seus traços são de Di Cavalcanti, com quem conviveu. “Era um tremendo gozador”, afirma.

Brinca ao dizer que começou a pintar por necessidade, porque ia a exposições de arte e não tinha dinheiro para adquirir as obras. “Imagine se eu tivesse comprado um ou dois quadros do Di [Cavalcanti]. Imagina o quanto valeriam hoje?”

 

SENTIDO DA VIDA

Os quadros, assim como sua biblioteca, cobrem as paredes dos corredores e de seu escritório, na parte superior da casa. Nas pinturas, fica evidente seu primeiro grande amor, Jaçanan Silva Gama, a Nanãn.

Os dois começaram a namorar quando ele tinha 18 anos. Casaram-se antes de ele concluir a faculdade. Só se separaram há seis anos, quando ela morreu.

Os quadros retratam a passagem dos anos da companheira. “A mulher é a família. Quando ela morre, a família se dispersa.”

Annibal confessa que está “sem rumo” até hoje, depois da morte da mulher com quem viveu 70 anos.

“A vida perdeu o sentido para mim”, afirma, com os olhos discretamente marejados, ao lembrar da mulher. A saudade provocada pela distância é amainada pela religiosidade. Católico, crê que a vida continua após a morte.

“Essa questão de crer ou não crer em Deus é insolúvel. Todos têm seus momentos de dúvida. Mas, pensar que morreu, acabou, é um absurdo”, diz, mais exaltado.

“Que sentido teria a vida? Posso pensar que minha mulher acabou?”, questiona, novamente com o choro contido.

Depois, mais tranquilo, segurando o copo de uísque que toma todos os finais de tarde, fala com desenvoltura sobre autores, a necessidade de educação e dos políticos brasileiros –“não gosto de nenhum deles”.

Em tom jocoso, mas com brilho nos olhos, se diz com vontade de lançar um jornal de oposição –“contra tudo”.

 

 

P.S.

 

 

PS 

 

Todo postscriptum

já antes está escrito

e é tudo a ser dito.

 

                        

 

O horror, o horror

 

 

 

atropelamento em ribeirão preto

 

 

Em 1890, Jósef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski, polonês naturalizado britânico, subiu o Rio Congo e durante essa jornada presenciou um dos períodos mais sangrentos da triste história africana, cuja população à época, escravizada na extração de marfim, estima-se que tenha sido reduzida à metade.

Anos mais tarde, já convertido no escritor Joseph Conrad, publicou a obra-prima Coração das Trevas, com claras reminiscências daquela aventura assombrosa. O protagonista do romance, Marlow, é encarregado de subir um rio até o posto comandado por Kurtz, um europeu que enlouquecera entre os selvagens. Kurtz só aparece nas últimas dez páginas, mas sua presença pesa sobre o livro todo. Esse personagem, louco ou lúcido demais (o que talvez seja a pior forma de loucura), equilibra-se na tênue linha entre civilização e selvageria. Suas palavras finais resumem não apenas a história colonial da África, mas de toda a humanidade: “O horror, o horror.”

Francis Ford Coppola, a partir do livro de Conrad, e deslocando a ação para o Vietnã, realizou em 1979 outra obra-prima, o filme Apocalypse Now, com Marlon Brando no papel de um Kurtz coronel desertor do exército norte-americano.

Ontem, mais de 120 anos depois da experiência sinistra de Joseph Conrad no Rio Congo, nesta aprazível São Sebastião do Ribeirão Preto, que acabara de completar 157 anos no dia anterior, outrora denominada “Capital da Cultura”  e “Califórnia Brasileira”, um energúmeno endinheirado, subindo com sua possante Range Rover por uma das principais avenidas da cidade, pela qual caminhavam milhares de pessoas, de forma absolutamente pacífica e ordeira, manifestando o descontentamento cívico e ao mesmo tempo a esperança do povo brasileiro em transformar o Brasil num país melhor e mais igualitário, sentindo-se contrariado pelo bloqueio de sua augusta passagem, atirou o transatlântico terrestre sobre a multidão, matando um jovem de 18 anos e ferindo várias outras pessoas.

Não, não adianta buscar explicações.

A única explicação é aquela mesma constatada por Conrad: o horror, o horror!

Apenas o horror!

 

 

Nosso tempo

 

 

 

Drummond de verdade no banco em Copacabana

         

 

                                                NOSSO TEMPO (excerto)

 

                                                                                   Carlos Drummond de Andrade

 

                                                           I

 

                                   Esse é tempo de partido,

                                   tempo de homens partidos.

 

                                   Em vão percorremos volumes,

                                   viajamos e nos colorimos.

                                   A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

                                   Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.

                                   As leis não bastam. Os lírios não nascem

                                   da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se

                                   na pedra.

 

                                   Visito os fatos, não te encontro.

                                   Onde te ocultas, precária síntese,

                                   penhor de meu sono, luz

                                   dormindo acesa na varanda?

                                   Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo

                                   sobe ao ombro para contar-me

                                   a cidade dos homens completos.

 

                                   Calo-me, espero, decifro.

                                   As coisas talvez melhorem.

                                   São tão fortes as coisas!

                                   Mas eu não sou as coisas e me revolto.

                                   Tenho palavras em mim buscando canal,

                                   são roucas e duras,

                                   irritadas, enérgicas,

                                   comprimidas há tanto tempo,

                                   perderam o sentido, apenas querem explodir.

 

                                                           […]

 

 O poema inteiro AQUI