A
lfredo Fressia nasceu em Montevideo, em 1948. Destituído da cátedra pela ditadura uruguaia, instala-se em São Paulo, onde reside. Lecionou literatura francesa durante 44 anos. Sua obra poética inclui títulos como Esqueleto azul y otra agonía (Mvdeo., 1973); Clave final (Mvdeo., 1982); Noticias extranjeras (Mvdeo., 1984); Destino: Rua Aurora (São Paulo, 1986 e 2012, México, 2012); Cuarenta poemas (Mvdeo., 1989); Frontera móvil (Mvdeo, 1997); Veloz eternidad (Mvdeo., 1999); Eclipse, cierta poesía, 1973-2003 (Mvedo, 2003, México, 2006, Buenos Aires, 2013); Senryu o El árbol de las sílabas (Mvdeo., 2008); Ciudad de papel (Mvdeo., 2009); Canto desalojado (São Paulo, 2010), El memorial de los hombres que me amaron (México, 2012), Poeta en el Edén (Mvdeo. e México, 2012), Clandestin (París, 2013).
CORAZÓN Y TÚ
Alfredo Fressia
Este es tu corazón.
No es un reloj
ni un pájaro enjaulado.
(No te dejes engañar por los poetas)
Es sólo un corazón
con su tejido fibroso de músculo
obstinado
y cierta vocación para el secreto.
A veces la mano sobre el pecho
indaga los latidos. Entonces
mano y corazón dan miedo.
Ya sabes que lo ciñen válvulas
como coronas majestuosas.
No es de león.
Más bien palpita buey,
a sí mismo obedece.
Lo oirás, lo oyes, lo has oído
y tú ignorarás siempre las respuestas.
Mueres cada noche sobre él
y al despertar auscultas su rumiar,
agitados o calmos, él y tú,
por el mismo temblor.
Tú respiras, él cava una vez más
el surco de la mansedumbre
e inexplicablemente
es sólo un corazón.
CORAÇÃO E TU
Este é o teu coração.
Não é um relógio
nem um pássaro enjaulado.
(Não te deixes enganar pelos poetas)
É só um coração
com seu tecido fibroso de músculo
obstinado
e certa vocação para o segredo.
Às vezes a mão sobre o peito
indaga os batidos. Então
mão e coração dão medo.
Já sabes que o cingem válvulas
como coroas majestosas.
Não é de leão.
Antes palpita boi,
a si mesmo obedece.
Tu o ouvirás, ouves, ouviste
e ignorarás sempre as respostas.
Morres a cada noite sobre ele
e ao despertar auscultas seu ruminar,
agitados ou calmos, ele e tu,
pelo mesmo tremor.
Tu respiras, ele cava uma vez mais
o sulco da mansidão
e inexplicavelmente
é só um coração.
Adalberto de Oliveira Souza
LADAINHA
É preciso continuar
passo a passo,
é preciso demolir
de todos os lados,
é preciso revisar
linha por linha,
e preciso resistir
em todos os momentos,
é preciso tergirversar
de todas as maneiras,
é preciso controlar-se
a si mesmo,
é preciso compreender
muito,
é preciso reiterar
o que a gente crê,
é preciso cruzar
os olhares,
é preciso dominar
nossa conduta,
é preciso reter
o que apreendemos,
é preciso ultrapassar
os obstáculos,
é preciso ousar
continuar,
é preciso voltar
ao ponto de partida,
é preciso se ater
ao que se ama,
é preciso esquecer
o que não se ama,
é preciso recuperar
o que se perdeu,
é preciso contar
a verdade,
é preciso atingir
a liberdade,
é preciso rever
os anos passados,
é preciso prever
o futuro duvidoso,
é preciso perder-se
para se encontrar
é preciso pesquisar
para encontrar alguma coisa,
é preciso extenuar-se
para se repousar,
é preciso…
é preciso…
é preciso…
“Força Estranha” (Caetano Veloso), com Gal Costa
http://www.youtube.com/watch?v=wjsr271XDT0
Foto de Bell Gama
Ontem, por mera coincidência, toca-me pegar Manuela na escola, sem atinar que era “Dia do Idoso”, mesmo porque isso nada tem a ver comigo.
Quando me aproximo da sala do “Grupo 3”, ela vem ao meu encontro, saltitante e festiva, proclamando aos quatro ventos:
— Babu é idoso, Babu é idoso, Babu é idoso…
E assim continua, saracoteando à minha frente, pelos corredores e pelo pátio até o portão de saída, ao embalo dos risos das professoras, da diretora, dos funcionários da escola, de mães e pais de outros alunos, do porteiro, do pipoqueiro, do sorveteiro e de quem mais por lá estava.
Já na rua, enquanto caminhamos até meu carro, depois de alguns protestos débeis e infrutíferos (“Não sou idoso, sou um menino antigo”; “Idoso é a vó!”), endureço o jogo:
— Se eu sou idoso então vou morrer logo.
— Não Babu, você vai viver mil anos! Vai buscar minha filha na escola, comprar pipoca e sorvete para ela.
— Vou sim.
— E sabe o que minha filha vai dizer pra você?
— O quê?
— Babu é idoso, Babu é idoso, Babu é idoso…
Mais tarde, a mãe passa em casa para pegá-la e, como de hábito, levo-a no colo para o carro, trocando abraços e beijinhos.
Ao descermos as escadas da varanda, ela vê a lua crescente que desponta entrecoberta pelas nuvens:
— Olha, Babu, a lua está acendendo!
Mas é nos meus braços que a lua loura cresce e acende a vida.
“Oração ao Tempo” (Caetano Veloso), com Maria Gadú
“Mil perdões” (Chico Buarque), com Gal Costa
Viver é para dentro ou para fora?
A vida é maneio useiro e vezeiro
ao anseio do tempo, à baila das sensações.
Viver é de dentro para fora
como o pássaro do relógio se recolhe
enquanto não é dada a hora.
Obstinada lapidaria do nada
para alguma coisa se tornar algures
no adentro que aflora.
“Janelas abertas” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), com Gal Costa
Não a carta de amor
ridícula
nem a carta de adeus
suicida.
Não a carta paterna
saudosa
nem a carta de pêsames
dolorosa.
Não a carta comercial
publicitária
nem a carta panfleto
revolucionária.
Não a carta charada
enigmática
nem a carta contrato
sinalagmática.
Não a carta de ocasião
sociável
nem a carta padrão
descartável.
Mas a carta nunca escrita
e jamais recebida
insubstancial e expectante
num escaninho da posta-restante.