“Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar”
“Cais” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos), com Milton e Carminho
“Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar”
“Cais” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos), com Milton e Carminho
“A negação de Cristo” (Caravaggio)
CONSENTIMENTO
Neguei
Neguei
Neguei
Muito mais do que três vezes
Este amor sem vez.
Quando o galo cantou,
Enrouquecido me calei.
(Quem cala só sente.)
“Negue” (Adelino Moreira / Enzo de Almeida Passos), com Maria Bethânia
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=s_yCl9DS7rY[/youtube]
Mestre Millôr está contigo e não abre, Selminha…
Poesia Matemática
Millôr Fernandes
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
“Quem és tu?”, indagou ele
em ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.
“Ausência” (Vinicius de Moraes / Marília Medalha), com Marília
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=iku6IIqIa1Q[/youtube]
Deixa secar no meu rosto
Esse pranto de amor que a presença desatou
Deixa passar o desgosto
Esse gosto da ausência que me restou
Eu tinha feito da saudade
A minha amiga mais constante
E ela a cada instante
Me pedia pra esperar.
E foi tudo o que eu fiz, te esperei tanto
Tão sozinha no meu canto
Tendo apenas o meu canto pra cantar
Por isso deixa que o meu pensamento
Ainda lembre um momento a saudade que eu vivi
A tua imagem fiel
Que hoje volta ao meu lado
E que eu sinto que perdi.
“Modinha” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), com Robertá Sá e Yamandu Costa
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=i0I2jN0pGRY[/youtube]
Annibal Augusto Gama
Não sei se os leitores já viram o filme “O homem do terno branco”, com Alec Guiness. É a estória de um cientista maluco que trabalha anônimo no canto de um grande laboratório, sem que ninguém saiba. E descobre e fabrica um tecido que não suja. Jogue-se nele uma lata de piche ou de graxa, e o piche e a graxa escorrem, permanecendo imaculado o tecido. Com tal tecido, o cientista manda fazer um terno branco, impecável, que nunca amassa nem suja. A princípio, os donos das indústrias de tecidos ficam entusiasmados. Até que são alertados pelo mais velho deles: aquela descoberta será a falência de todos. Daí, o inventor passa a ser perseguido dia e noite, para lhe destruírem o terno branco e a sua fórmula de fabricar o tecido com que foi feito.
Pois li dia desses sobre a invenção, nos EUA, de um tecido, ou “superfície omnifóbica”, feito de material que resiste não apenas à água, e não é manchado por óleo ou gasolina. Tudo escorre sobre tal tecido ou superfície, sem deixar mancha ou sujeira nenhuma.
É a ciência imitando a arte. Acho que se pode inventar tudo, até as coisas mais mirabolantes. Talvez já se tenha inventado demais, nossa existência está cheia de bugigangas espantosas. Olhem ao redor e verão. Um novo produto destrói o outro que o antecedeu. É a riqueza de uns e a desgraça de outros. Nem por isso a vida e o mundo melhoraram.
O que não se inventa, e andam cada vez mais escassos, é a bondade, o amor, o desprendimento e a paz.
Seu Amadeu diz a Dinorá:
─ Estou cogitando em inventar uma nova forma de fazer amor.
E ela lhe responde:
─ Não, bem, não invente não. A que temos é ainda a melhor. E sempre será.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=QgxkrOLg0Os[/youtube]
“É, meu amigo, só resta uma certeza,
é preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor”
Ele bateu à porta na véspera do dia dos pais.
Passava da meia-noite, e a inesperada presença o incomodou.
Depois de tanto tempo, por que foi aparecer logo agora?
Lembrava-se de que ele desprezava essas datas comemorativas, forjadas por interesses comerciais. Acabou por ter a mesma conduta, sempre repetindo à família que não queria festejos, nem presentes.
Sabia, porém, que era inútil. Amanhã a casa seria tomada pela turba ruidosa de filhos, genros, noras e netos. No fundo, isso não o desagradava, apenas não via sentido em ser homenageado pela simples condição de pai.
Mantiveram uma relação tempestuosa durante toda a vida, com inúmeros conflitos e poucos pontos de convergência, o que talvez explicasse o distanciamento gradual, que um dia se tornou definitivo.
Fitando-se de perto, verificou que, passados os anos, ele parecia o mesmo do retrato no canto da parede. A mesma fronte alta, com cabelos ralos e embranquecidos, mas volumosos e encaracolados nas laterais e na nuca. O mesmo olhar ressabiado, o mesmo esboço de sorriso, com algo de sarcástico. As mesmas mãos de palmas largas e dedos curtos, “mãos de semeador”, costumava ele dizer. Apresentava ainda a mesma inquietude, o mesmo andar apressado, o mesmo jeito de sentar e balançar as pernas.
A voz também era quase a mesma, mas não era preciso falar. Ele sempre apreciara o silêncio da noite.
De vez em quando ele se levantava, ia até ao banheiro, ou à cozinha tomar água e café. De volta à sala, remexia nos livros da estante, folheava, lia algumas páginas, antes de recolocar na prateleira.
Acabou por adormecer na poltrona, com um livro entreaberto nas mãos.
Amanhecia quando finalmente resolveu se deitar.
Ao entrar no quarto e acender a luz, o espelho do armário trocou com ele o mesmo olhar do retrato no canto da parede da sala.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=JCQVnSOFqfM[/youtube]
QUIÇÁ
Para explicá-la
seria preciso desenhar nuvens
que nunca são as mesmas
e se tornam outras
adiante do traçado.
Para concebê-la
seria preciso compreender o acaso,
intangível como todos os ocasos.
Resta segui-la
no seu rastro pela estrada
estrela, grão de areia, poeira, nada.
[youtube]http://youtu.be/El4xfrN02Rc[/youtube]
“Caminhos cruzados” (Tom Jobim / Newton Mendonça), com Eliane Elias
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Ro5PVeG8YsQ[/youtube]
CHEMIN VERT
Para Ivan, João, Rubem e Ariano
Do outro lado da janela
o muro.
Do outro lado do muro
(para aquele que pula)
pulula o caminho verde.
Na folhagem/voragem do tempo
recolho esse instante na brandura
das pétalas encerradas
entre as páginas dos livros
(mas jamais ressequidas)
e prossigo pelo além perfume.
Mais tarde, aquém muro,
tornarei às coisas que findam
e aos homens que morrem.