DESFECHO
Que solução senão
arder-se
nas chamas dos instantes.
Solver-se
lento
e definitivo.
Sem esperar,
sem pactuar,
apenas
sucumbir,
deixar-se-ir.
Adalberto de Oliveira Souza
https://www.youtube.com/watch?v=HtNRxm2DTcU
Annibal Augusto Gama
Era uma mesa enorme (a cozinha também era enorme), de tábuas lavadas e não envernizadas, com gavetas e, ao redor dela as cadeiras. Mais adiante ficava o fogão de pedra, com o seu forno, as suas serpentinas e a trempe, sobre a qual achava-se sempre o bule de café, em banho-maria. A cozinha era a nossa lareira, principalmente nas noites de inverno. Em outras noites, eram os meninos que ali se sentavam no mosaico do chão, enquanto a negra Prisciliana, sentada no rabo do fogão, lhes contava estórias de assombração. Também o cachorro enrolado, deitado no piso. O papagaio ficava no poleiro, na penumbra da dispensa.
Chegava um, chegava outro, e se abancavam diante da mesa. Eram fritados os bolinhos de polvilho azedo e, fofos, ainda quentes, levados na travessa, para serem comidos, com goles de café.
Conversava-se, vinham as notícias da cidade, os boatos, os fuxicos, as intrigas políticas.
Parentes, amigos, hóspedes, ninguém deixava de frequentar a cozinha e sentar-se ao redor da mesa.
Nas noites de verão, a porta da cozinha permanecia aberta, bem como as janelas, olhando para o grande quintal.
Para acender o fogão, de manhã, era preciso ajeitar a lenha na sua boca, entre pedaços de jornal. Depois, riscar o fósforo e chegar a sua chama nas folhas de jornal. Quando as labaredas surgiam, convinha abaná-las com a tampa de uma panela, para avivá-las. O dia inteiro, e grande parte da noite, o fogão permanecia aceso, e a água, aquecida nas serpentinas, subia para a caixa e corria de todas as torneiras abertas.
A cozinha e a sua mesa foram boa parte da minha meninice.
Graças a Deus não havia televisão, e mesmo o rádio, dando notícias da guerra na Abissínia, era precário, com a sua estática. Sim, também chegavam os jornais, e alguns iam buscá-los no próprio Correio, situado na avenida.
A educação das crianças fazia-se assim, na cozinha.
Lá para dentro, permanecia a dona da casa, com as suas visitas, e o piano alemão, em cujas teclas tocavam-se as valsas. No centro da sala de visitas, debaixo da mesinha, achava-se o álbum de retratos.
Ocorriam igualmente os saraus, em que se cantava e se declamava. Alguém vinha com o seu violino, e outro com a sua flauta.
Infalivelmente, aparecia o Doutor Eduardo, com a sua bengala; também não deixava de vir o farmacólogo, seu Joaquim.
A convivência, na cidade pequena, era cordial e amena.
No quintal a pilha de lenha, com os troncos que eram rachados pelo lenhador, que aparecia com o seu machado e as suas cunhas.
De vez em quando, tarde da noite, alguém vinha furtar a lenha rachada e empilhada no quintal. Sabia-se quem era, mas não se dava muita importância.
Meu pai encontrava-se na rua com o ladrão, e este o cumprimentava: “Como vai, Coronel?” E ele respondia, sisudo: “Vou bem, às minhas custas”.
Os namorados beijavam-se furtivamente, no escurinho do cinema.
https://www.youtube.com/watch?v=txxeuJSHlWE
“Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.”
(Jorge Luis Borges)
Viver muito tempo é inconveniente, para nós mesmos e para os outros, meditava o escritor já muito velho, enquanto apertava os olhos cegos para melhor escutar as palavras que eram lidas para ele, por uma doce voz feminina, cadenciada e expressiva.
Perdera a visão há décadas, pouco a pouco, quase sem sentir. Ele mesmo escreveu depois que a cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão, com sua cor amarela e sombras e luzes.
Muitas vozes haviam lido para ele desde então, a começar pela ubíqua voz materna, que a leitora atual lhe rememorava.
Com frequência lembrava-se também de outra jovem voz, esta masculina, inflamada e comovida, a de um rapazinho que durante dois anos lera para ele, à noite ou quando a escola lhe permitia. O ritual era quase sempre o mesmo. O rapazola tocava a campainha; era conduzido por uma criada, através de uma entrada acortinada, até uma pequena sala de estar onde ele vinha ao seu encontro, a mão macia estendida. Não havia preliminares: enquanto o moço se acomodava na poltrona, ele se sentava ansioso no sofá e, com uma voz levemente asmática, sugeria a leitura daquela noite. “Deveríamos escolher Kipling hoje? Hein?”. E é claro que não esperava realmente uma resposta.
Uma vez o velho escritor se apaixonou por uma das suas jovens leitoras, que também lhe servia de secretária e assistente, acompanhando-o em suas viagens pelo mundo. Chegou a pedi-la em casamento, trêmulo e hesitante como um adolescente. Mas ela recusou.
Há muitos anos deixara de publicar, desde que descobrira que uma outra secretária havia absorvido de tal modo seu estilo, seus pensamentos, seu mundo de labirintos, tigres, espadas, espelhos, que passara a interferir e corrigir por conta própria as histórias esfiapadas, esgarçadas, sem estrutura que ele lhe ditava.
Um dia recebeu a visita de um admirador exaltado, que elogiava seu novo livro e fazia comentários quase ininteligíveis, garantindo-lhe que suas novas histórias eram o que de melhor já havia publicado. Exagerava, dizendo que nem Dédalo saberia compor labirintos mais sofisticados.
Intrigado, já que não tinha remetido nenhum livro novo ao seu editor, pediu-lhe que desse um exemplo do que tanto lhe agradava e o admirador leu um trecho de um conto. O conto era dele, mas nunca o havia escrito. Reconhecia um grão de ideia que havia lançado para a secretária, mas aquele grão se transformara numa semente que brotara viçosa e se desenvolvera numa árvore frondosa, que ele desconhecia inteiramente, embora a soubesse parte de si mesmo. Ela o havia usurpado totalmente, mas ele não podia, nem queria desmascará-la, pois com isso destruiria a si mesmo.
A sua vingança fora anunciar que deixaria de publicar novas obras e se recolher, cego e calado, recebendo o sucesso em vida, amado, reconhecido e admirado. Ela, despedida, tornara-se um fantasma, uma secretária sem nome e sem presença, envolta num silêncio cada vez mais viscoso, que morrerá no mesmo instante em que ele fechar seus olhos para sempre.
A nova secretária, que agora lia para ele, era muito moça e entusiasta dos avanços da tecnologia. Vivia a lhe falar de certa máquina prodigiosa, que ele nunca chegara a ver, que permitia escrever textos numa tela, armazená-los, corrigi-los quantas vezes se quisesse, sem rasuras e entrelinhas. A engenhoca, que a moça trazia sempre consigo, dizendo que estava cada vez menor, mais leve e fácil de transportar, e não obstante mais potente, possibilitava navegar(?) por uma rede de máquinas semelhantes, dispersas por todo o planeta, capazes de trocar mensagens, informações, sons e imagens de todos os tipos.
Era-lhe difícil entender tais máquinas e seu sistema, que imaginava, a partir da expressão “navegar”, como diversos rios cujas águas corriam para um oceano infindo e vice-versa. Mas não concebia qual o sentido de se escrever numa tela e o texto permanecer sempre imaculado, sem as correções, os rabiscos, as glosas, as hesitações de um manuscrito, que são as cicatrizes que lhe dão vida e contam sua história. Nenhum texto é definitivo, e ele só os publicava (quando ainda o fazia) para se libertar deles, e poder passar a outro.
Depois da leitura, enquanto conversavam, a jovem secretária lhe contou, agitada e alegre, que empresas que exploravam as possibilidades infinitas daquela rede fantástica já estavam oferecendo milhões de livros, de todo o mundo, para serem lidos e examinados por quem se interessasse, em casa, nas telas de suas máquinas. Disse-lhe ainda que os livros, como objetos físicos, estavam se tornando obsoletos, assim como as bibliotecas que os continham, e pouco a pouco deixariam de existir.
Talvez ela pensasse que esses fatos e previsões extraordinários o deixassem feliz ou o estimulassem, já que ele sempre fora um visionário. Mas ele era um visionário do passado, não do futuro, e essas novidades lhe provocavam uma profunda melancolia.
Como poderia viver sem passar as mãos pelas estantes e pelos livros, acariciar-lhes as lombadas, senti-los, folheá-los, cheirá-los, tê-los no colo, apertá-los contra o peito?
Isso era mais terrível e monstruoso do que um certo livro comprado por ele de um vendedor de bíblias, cujo número de páginas era exatamente o infinito. Nenhuma era a primeira; nenhuma, a última. E cada vez o livro se abria numa nova página, que nunca mais seria vista novamente. Atormentado, abandonara-o numa das úmidas prateleiras do porão da Biblioteca Nacional, entre periódicos e mapas, esforçando-se em não prestar atenção ao local exato em que o deixara se perder.
Sentia-se muito cansado e foi se deitar mais cedo do que de costume.
Quando despertou, não estava no seu quarto, nem na sua casa, mas numa biblioteca imensa, com estantes e prateleiras que estendiam por salas e corredores sem fim, nas quais estavam todos os livros já escritos e os que ainda o seriam.
Soube então que estava no paraíso.
P.S.: Este texto é uma singela homenagem à Jorge Luis Borges e sua imensa confraria. Dele constam reproduções de trechos do próprio Borges (Obras Completas de Jorge Luis Borges: vários tradutores — São Paulo: Globo, 1999), de Alberto Manguel, o rapaz que lia para ele (Uma história da leitura: tradução Pedro Maia Soares — São Paulo: Companhia das Letras, 1997) e de Lúcia Bettencourt, vencedora do Prêmio Sesc de Literatura 2005 (A secretária de Borges — Rio de Janeiro: Record, 2006), além do episódio sobre o pedido de casamento feito por Borges a María Esther Vásquez, por ela relatado (Jorge Luis Borges: esplendor e derrota: tradução de Carlos Nouguê — Rio de Janeiro: Record, 1999), todos eles grandes escritores (ao contrário deste insistente escriba). A esses junto o delicioso livro de Luis Fernando Verissimo com uma história policial em que Borges é um dos protagonistas (Borges e os orangotangos eternos — São Paulo: Companhia das Letras, 2000).
Selma Barcellos
Sei. Já experimentou todo tipo de dieta. A velha calça desbotada ou coisa assim não entra nem em sonho. Que tal a penúltima cartada? “Dieta dos óculos”. Nada a perder. A não ser $20 e o apetite.
Baseada em estudos científicos de que tons azulados acalmam a central da fome, de expediente no cérebro, a empresa japonesa Yumetai criou óculos cujas lentes deixam a comida azul disgusting e você sai correndo, o que também ajuda a emagrecer. Ah, as lentes ainda bloqueiam o vermelho, vilão estimulador de apetite.
A dificuldade para entender a origem do fenômeno já leva 300 gramas molinho, molinho. Há cerca de 4 bilhões de anos, numa poça de caldo primordial e após a terra ter esfriado, um raio de luz dextrógiro – que desvia a luz para a direita – incidiu sobre a molécula orgânica fazendo com que os seres vivos viessem a se alimentar de produtos que desviam a luz para a direita. E – uau! – o azul desvia para a esquerda. Não é o máximo?
Mas, como nada é perfeito, a “dieta dos óculos” apresenta dois problemas para a blogueira: deixá-la com cara de hippie entediada e convencê-la de que chocolates azuis não são… os melhores do mundo. 🙂
De manhã ela me diz que eu preciso pintar o cabelo, que está ficando branco.
De tarde diz que não vai me dar presente, nem me ajudar a apagar as velinhas.
De noite, ao ir embora, me enlaça o pescoço e, chorando, diz que quer ficar comigo.
Então a mãe me conta que desde o começo da semana ela está muito comovida com meu aniversário. Não quer que eu envelheça, quer que eu fique sempre como estou e presente ao lado dela.
Existe presente tamanho?
RETRATO FALADO
Quando no espelho me fito
é outro aquele que vejo,
sou eu mesmo que reflito
ou outrem que em mim desejo?
Quando recordo o que fui
vislumbro uma errante sombra,
é só a lembrança que flui
ou um fantasma que me assombra?
Quando penso o que serei
não atino aonde vou,
eu apenas me sonhei
ou de fato aqui estou?