Selma Barcellos
Leio que os homens não estão apenas mais românticos, como andam desejando plateia para suas declarações de amor e pedidos de casamento.
Veríssimo. Nas redes sociais, nas novelas ou aqui mesmo, na rua mais movimentada de Icaraí, o apaixonado chegou numa Kombi pink cheia de balões coloridos, e depois daquela clássica do Wando, do hino do Flamengo (na voz de João Bosco!) e do foguetório, declarou-se em vários decibéis. Pena que a moça, uma atendente da loja, ficou envergonhada e se trancou no provador. Não houve jeito de convencê-la que lá fora poderia estar o amor de sua vida. Tentamos. “SUENEIDE, TE AMOOOO!” , gritava ele no megafone. Soube depois que ela não gostava do nome e ouvi-lo assim amplificado, complicou.
E no cinema? O rapaz ficou na fila da pipoca e a namorada foi guardar lugar. Quando ele finalmente entrou, luzes já apagadas, nem titubeou: – Gildinha, cadê você? Levanta a mão, aê! Tá com vergonha que eu tô falando alto, né? Eu amo essa mulher, gente! Aplaudidíssimo. Ri a sessão inteirinha.
Merecemos. Somos desde sempre tão românticas, concessivas… Lirismo puro ouvir minha manicure cortar o papo sobre abdômen ‘tanquinho’ : – Homem tem que ter uma barriguinha pra gente dormir de conchinha e ela se encaixar na nossa lordose… O côncavo e o convexo, meninas… Sabe tudo.
Os galanteios também evoluíram muito, convenhamos. “Não é placa, mas para o trânsito…” , “Você deve ser dentista, deixa todo mundo de boca aberta…” , “Ana Graça? Mas isso não é nome, é pleonasmo…” Só saber o que é pleonasmo já é meio caminho andado.
O que não vale é exagerar, ficar temático demais. Porque eram fazendeiros, precisava a declaração ser feita com feno e… estrume? Manda pastar.
Mas o que importa é o que interessa. É lindo o amor.
Post e música dedicados a Sueneide. Saudade dela
Nota da Redação: Não deixem de clicar no link acima “Manda pastar”, que leva ao post das declarações de amor referidas pela nossa estimada colaboradora.
Os que costumam orbitar por aqui certamente já conhecem e admiram Selma Couri Barcellos pelos seus comentários deliciosos, pela sua sensibilidade e cultura, por sua delicadeza e irradiante luz.
Agora essa luz passará a aquecer e rebrilhar esta Estrela com intensidade ainda maior, pois consegui convencê-la (quase obrigá-la) a se tornar colaboradora permanente do blog.
Conhecemo-nos pela internet, no Bloghetto da Maria Helena, do qual, após o encerramento, ela e o blog que mantinha havia algum tempo tornaram-se os únicos sucessores possíveis, com a benção da própria Maria Helena.
Desde o primeiro encontro, muitas têm sido nossas conversas, trocas e parcerias, afinidades surpreendentes e complementares.
É ela a minha Estrela Binária, que doravante passamos a dividir e reduplicar.
Assim, singelamente, ela se apresenta no seu adorável Bloghetto:
“Fui menina em Niterói (RJ), cidade à beira-mar plantada.
Desde sempre me fascinou a palavra, a redação a partir daquelas imensas e coloridas gravuras postadas à frente da classe (ainda as guardo, todas, na retina e na memória), a leitura do texto pronto em voz alta…
Moleca ainda, mal chegavam as visitas, vestia correndo a bailarina e recitava poesias. A bem da verdade, algumas visitas nunca mais voltavam, mas eu ficava em estado de graça…
Formei-me em Jornalismo e Relações Públicas pela PUC/RJ e UnB/DF.
Porém, seguindo um pensamento de Confúcio, escolhi um trabalho que amei. E não precisei trabalhar um só dia de minha vida.
Sim, exerci o magistério por mais de 25 anos. Por puro prazer, de forma apaixonada, respirando poesia porque lidei com crianças, criaturas poéticas em sua essência, viajando e acreditando na força encantatória e transformadora da palavra.
Em 2004, fui agraciada com o 1º lugar no Concurso de Redação para Professores da Academia Brasileira de Letras e do jornal Folha Dirigida. O tema, sugerido pelo poeta Ivan Junqueira, então presidente da ABL, foi “Por que Poesia em tempos de indigência?”.
Atualmente, enquanto aguardo os netos que me darão os dois filhos, seres adoráveis, tão diversos quanto únicos, escrevo crônicas, ensaios, poemas, pinto quadros…
E agora, com este blog, irei partilhar memórias, experiências, reflexões.
Vem comigo?”
Vamos todos…
Por que Poesia em tempos de indigência?
“Repetir, repetir – até ficar diferente.”
(Manoel de Barros)
Porque precisamos, mais que nunca, de lirismo que é libertação, delírio do verbo. De tocar tango argentino e dançar sobre um palco iluminado até o sapato pedir pra parar. De ser gauche na vida e ouvir estrelas, que felicidade aparece mesmo é em horinhas de descuido.
Porque temos visto demais o beco. E no meio do caminho, pedras. E rostos assim tristes, assim magros, olhos tão vazios. Temos tido febre, dispnéia, suores noturnos. Diante de nossas retinas fatigadas, o horizonte é apenas o da fotografia na parede. Isso dói. Navegar é preciso e nosso barco, estranho barco, navega a remo, a dor de braço; de vela é rico, de vento é escasso.
Porque nos têm sufocado a mediocridade pachorrenta; a miopia displicente das elites, mudas telepáticas; o vazio absoluto das ideias, falácias que não sabem de rima, nem de solução.
Porque José nunca tivera querido dizer palavras tão loucas a sua Fulô. Mas a mão que afaga também apedreja. E agora José, sem carinho, em total solidão, fim de quem ama, vai viver da poesia que entorna no chão, inventar o cais, se lançar. Ainda que o Tejo não seja o rio de sua aldeia. O resto é mar.
Porque é mentira que basta de lero-lero, vida noves fora zero e um dia estaremos mudos – mais nada. A alquimia do verbo sempre irá nos lembrar de nunca morrer assim, num dia assim, de um sol assim! Pois para isso fomos feitos: para a esperança no milagre, para vermos a face da morte e, de repente, nunca mais esperarmos. Apenas nascermos, imensamente. E, na medida do impossível, renascermos. A cada dia, Fênix. A cada dia. Vida é para ser reinventada.
Assim, que poesia é voar fora da asa, migrando ao sabor dos voos e vertigens das redondilhas, pedirei à cotovia que leve aos céus este avigrama redentor:
Senhor, poupai os poetas! Eles abriram janelas, salvaram afogados. Teceram as palavras em poesia, oráculo pelo qual rompestes Vosso silêncio. Deixai que flutuem para o Amanhã, livres de correntes, remidas, suas almas nuas!
Em tempos de carências, bem-vinda a poesia, louvados os magos-poetas que nutrem nosso espírito e nos afagam os sentidos. Jamais seres acima do bem e do mal. Tampouco o novo homem. Apenas vetores de sentimentos, emoções e ideias e por isso mesmo, de mudanças onde toda indigência se dilui.
Seja-lhes sempre fontana a inspiração, pois daqueles a quem deu o dom de conceber ideias ou emoções especiais e exprimi-las de forma estética, parece claro que Deus espera algo. Quem dá os meios, dá a missão.
“Não me acorde, se estou sonhando” ─ disse Dom Quixote, o maior dos sonhadores, ensinando-nos que a utopia, da qual nasce a esperança, é parte da condição humana, assim como transcender, superar ou modificar essa mesma condição é necessidade indispensável ao homem, justo porque essa condição é imanente.
A cada um de nós é dado ver as coisas como são e perguntar-nos: por quê? E sonhar como as queremos ver e perguntar-nos: por que não?- refletiu Bernard Shaw.
Assim também, em tempos tais que vivemos, sejam abençoados os magos-professores, esses desdobráveis de pés no chão e olhos nas estrelas, a quem cabe o cotidiano desafio de soltar amarras, romper margens, dissipar sombras e conduzir barcos a ultramares onde a Educação, plasmada em novo código genético, há de diluir indigências e tecer mais luminosas manhãs.
Autorretrato de Courbet
Selma Barcellos, com a sensibilidade e graça que lhe são características, suscitou no seu delicioso Bloghetto o quiproquó (sem trema não é a mesma coisa…) entre a Academia Brasileira de Letras e o historiador Jorge Coli que acusa a ABL “[…] de haver censurado sua conferência “Sexo não é mais o que era” para os que a acompanhavam ao vivo pelo site da casa. Motivo do corte? O alerta do conferencista de que seriam exibidas imagens pornográficas (fotos de felação em detalhes e por diversos ângulos, o quadro “A Origem do Mundo”, de Courbet, com genitália feminina em close avassalador…). A ABL se defende da acusação com base na lei que proíbe sites abertos de exibirem material pornográfico e a presidente Ana Maria Machado já convocou os ilustres colegas, o bolo de rolo e o chá para reunião urgente.”
Selminha tem toda razão, a nudeza feminina do quadro de Courbet é avassaladora. Ninguém fica indiferente diante dela.
Conhecia a pintura por fotos, que por melhores que possam ser nem de longe conseguem reproduzir o seu realismo extasiante (ou chocante). Fiquei definitivamente fascinado pelo quadro desde que o vi de perto no Musée d’Orsay. Como o menino Bandeira na sua velha Recife, diante de uma moça nuinha no banho, fiquei parado o coração batendo. Foi um alumbramento!
Courbet, arrogante e desafiador, dizia que a sua pintura era contra a falsidade vigente na Arte e na sociedade oitocentista, enfurecendo os críticos da época que o acusaram de cultivar a fealdade, de se arvorar de paladino da causa do povo contra a Arte e de ser um revolucionário sem ideal.
Consta que a obra, datada 1866, foi encomendada por um diplomata turco, colecionador de arte erótica, e mais tarde vendida para um antiquário, camuflada debaixo de outra tela de aspecto mais inocente. Passou de mão em mão até chegar a seu último dono, nada menos do que Jacques Lacan. Após a sua morte, a família doou o quadro ao Musée d’Orsay, onde passou a ser exposto somente a partir de 1995, deixando de representar então o paradoxo, quase lacaniano, de uma obra famosa, mas pouco vista.
Creio também que a conferência de Jorge Coli possa ser muito interessante e gostaria de assisti-la.
Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
A transmissão ao vivo pela internet da palestra, ilustrada com as imagens tidas como pornográficas ou obscenas, sem controle algum daqueles que acessam o site da ABL, parece-me uma demasia, e até mesmo uma afronta às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Alegar “censura” e “conservadorismo”, como o fizeram Jorge Coli e alguns outros, é uma falácia típica de quem, julgando-se iluminado e sapiente, pretende impor o seu senso estético e os seus valores à sociedade toda, sem respeitar as diferenças, as empatias, os contrários e até mesmo aqueles que ainda não têm maturidade e discernimento suficientes, o que se assemelha muito ao modo de pensar e agir dos fundamentalistas religiosos.
A ABL errou no primeiro momento ao negar que houvesse tirado do ar a conferência. Deveria ter assumido desde logo a sua conduta acertada, o que só fez mais tarde.
Logo depois de ver o quadro de Courbet, cheguei a perpetrar um poema sobre ele, que não lhe faz jus, mas expressa o que senti diante dele.
A origem do mundo
Diante do quadro de Courbet
Súbito, tudo o que antes fora oculto,
obscuro, fechado, abotoado,
revela-se escancarado e descarado
como um hirsuto e bendito fruto
que se abre em dobras para o interior carnudo
numa explosão de cheiros e sabores
pressentidos mais do que sabidos.
Monte venusto, ígneo e absurdo,
cuja lava nos leva para o fundo
onde, misto de temor e deslumbre,
se encerra o começo e o fim de tudo.
Quem quiser ter uma pálida impressão do quadro, clique aqui