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Um século é pouco

 

 

 

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No mítico jardim da sua cobertura,

Rubem Braga sentado ao lado de Vinícius de Moraes;

José Carlos de Oliveira entre os dois;

atrás, Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto;

ao lado, com a mão no ombro de Vinicius, Fernando Sabino.

 

 

Um século de Rubem Braga é pouco.

Outros séculos passarão, e ele passarinho continuará por aqui, entre os que estamos e os nascituros.

Caderno especial, maravilhoso, sobre ele na edição de hoje de “O Globo”.

Tão especiais quanto, as várias publicações postadas por Selma no seu Bloghetto.

Clique aqui e vá até lá conferir.

 

 

 

Vamos sair pra ver o sol…

 

 

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Mp-A109DK3Q[/youtube]

 

 

Tô de férias!

Sai o advogado esfalfado.

Entra o Tom desafinado,

mas apaziguado…

 

 

 

 

 

 Este fado bestial também é indicação da Selminha.

[youtube]https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=aGMiaRCuQUM[/youtube]

 

 

 

Ledor

 

 

                                               LIDA

 

 

 Brenno Augusto Spinelli Martins

 

 

                                   O que lia Camões?

                                   E Homero, o que lia?

                                   Então deixem que eu destile

                                   essa saliva de poesia

                                   sem antes nada ter lido.

 

                                   É que eu lido com um desfile

                                   de ideias, almas e conflitos

                                   sem ter lido o que antes fora escrito.

                                   Circunscrito na emergência,

                                   abdico da influência.

 

                                   Respeito os vários estilos,

                                   até porque um não tenho…

                                   Ora rimo, ora transgrido

                                   as mais elementares regras.

                                   Por isso tenho sofrido

 

                                   os mais severos castigos

                                   por quase nada ter lido.

                                   E lido com tal preconceito,

                                   de ser tratado de louco,

                                   só por ter lido tão pouco.

 

 

 

A cada dia confirmo o que já pensava quando caí nesta vida de blogueiro: um blog é feito muito mais por aqueles que o acessam, leem e comentam do que pelo seu mantenedor.

Ontem, ao comentar o post de Selma, Brenno saiu-se com o prodigioso poema acima transcrito.

Poeta fingidor e licença poética à parte ― já que o conheço há muito e sei bem que não é de ler assim tão pouco como diz ― os seus versos e a sua verve remetem a uma questão absolutamente apaixonante, que é a importância da leitura e dos livros na nossa vida.

Já se definiu o hábito ou a mania leitura como “vício impune” (será mesmo impune?). Mas, afinal, por que lemos e, sobretudo, por que insistimos em acumular livros, arrumá-los em estantes, especialmente nestes tempos descartáveis, de virtualidade e internet? Os livros, como objeto que conhecemos, estarão mesmo fadados a desaparecer?

As perguntas são muitas, e não serei eu, pobre de mim, a dar as respostas.

Em diversos ensaios de “Os Diamantes de Ophir” (Funpec Editora), Annibal Augusto Gama reflete agudamente sobre leitura, leitores e  livros:

 

“Se me perguntam o que é leitura, eu respondo que leitura é um esquecimento. Fechada a última página de um livro, já voaram as pombas dos pombais, que pode ser que voltem, mas os sonhos não voltam nunca mais. O sonho do leitor dura algumas horas, ou alguns dias, na convivência com outro sonho, o das personagens de ficção que andam errantes a se indagar de si mesmas.”

[…]

De outro modo, o verdadeiro livro envelhece, reverdece e torna frutificar. Cada geração lê o mesmo livro de maneira diferente. E todas as interpretações que se fazem sobre ele se completam, para depois outra vez o descobrirem. Os clássicos são clássicos porque não são clássicos. Porque são desvios de uma norma que se petrificou, e criam uma nova norma.”

(Da leitura)

  

“Fora de qualquer contestação, Os Lusíadas não são obra apenas de um grande poeta. São obra de um erudito, de um historiador, que tinha profundo conhecimento geográfico, estudara a cosmovisão ptolomaica, a astronomia, a medicina, a náutica, e outras ciências, vasculhara com mão noturna e diurna a mitologia, lera Virgílio, Ovídio, e os clássicos da literatura latina na própria língua, e Homero, Platão e Aristóteles em traduções, estudara os fenômenos atmosféricos, compulsara assiduamente Petrarca, impregnara-se do dolce stilo nuovo, abeberara-se em todos os escritores portugueses, enfim, que tinha um saber enciclopédico, abrangendo tudo o que se sabia na época.

Para tanto, no mínimo, seria preciso que Camões possuísse uma preciosa livralhada, uma biblioteca.

Como ajustar-se, porém, esta livraria, de difícil transporte, com a sua pobreza franciscana, com os seus desterros e prisões, com as suas viagens, abrigando-se em miseráveis choupanas onde foi largado como soldado raso? Indo nas naus para terras de África e da Índia, sem ter de seu mais do que uma muda de roupa e a espada, espremido nas enxergas dos tripulantes, como levaria consigo tantos autores e livros?

Ninguém o explica, nada o explica.”

(“A biblioteca de Camões”)

 

(Veja só que curioso: sem ter lido o ensaio, Brenno abre o poema indagando sobre o que lia Camões…)

 

“Pois bem: um livro são muitos livros. No seu texto assinado e autenticado pelo autor, podem ser descobertos textos de outros autores, ideias, metáforas, personagens, intrigas, paisagens, que vieram de séculos atrás, e que se achavam noutros livros.”

[…]

“Pode-se dizer até que um livro novo é sempre obra de uma cooperação universal, de que participam autores da mais remota antiguidade. Houve mesmo época em que esses autores muitos antigos, os clássicos greco-latinos, serviam de modelos indispensáveis para outros que o sucederam. Assim, Homero, com a Ilíada e a Odisseia, para Virgílio com a Eneida, e este e aquele para Camões, com Os Lusíadas, e assim por diante. Desta maneira, os autores são sócios ou irmãos de uma confraria em que estão reunidos todos os prosadores, todos os poetas.

Aquele que pretende ser absolutamente original e único, ao escrever um livro, ou é um tolo, ou um pretensioso, um ignorante. Para começo de conversa, ele veio ao mundo da mãe que o gerou, e com a ajuda de outro. Imediatamente, aqui encontrou amparo e ensinamentos de uma sociedade preexistente. Nunca esteve absolutamente só, mas se viu cercado de gente, e tudo, ou quase tudo lhe foi transmitido. Esse relacionamento, esse jogo de influências, são inarredáveis.”

(O livro, um palimpsesto).

 

Nessa mesma linha, Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura francesa da Universidade Paris VIII, no seu delicioso “Como falar dos livros que não lemos?” (Editora Objetiva), fingindo pilheriar, escrever mais um dos abomináveis livros de autoajuda ou de como se dar bem enganando os outros,  elabora um refinado ensaio sobre a cultura literária, formada tanto pelos livros lidos, quanto pelos não lidos, mas que de algum modo se conhece e assimila. Pois todo leitor, segundo Bayard, carrega consigo uma biblioteca, um repertório que lhe permite ter uma opinião legítima sobre um livro, mesmo que não o tenha lido. Ainda porque, as obras de fato lidas, afora aquilo que fica esquecido, com o passar do tempo vão se embaralhando e confundindo de tal modo que, ao discorrer sobre elas, falamos da lembrança imperfeita e distorcida que guardamos.

Assim, Bayard estabelece diversas categorias, como livro folheado, livro de que ouvi falar, livro esquecido e livro desconhecido, bem como qualifica os livros conforme sua relevância cultural.

 

 

 

 

 

 

 

Estante de mim

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ao me deparar com a inusitada estante, brinquei de arrumá-la.

No topo, somente um livro. O que fez minha cabeça num daqueles clear days that you can see forever. O que me inquietou, sacudiu o ponteiro da bússola e do viver cartesiano. Sim, ele mesmo, o Quixote de jamais abrir mão do sonho e de enfrentar moinhos.

No lado esquerdo do peito, os que me viram crescer e de onde brotavam, nutridas por múltiplas nascentes,  as melhores  fontes de se beber ― a do sítio de Lobato,  das veredas do Rosa, da Pasárgada de Bandeira, do rio de Pessoa…

Ali pela altura da fome, os que me saciaram e até mesmo os que desceram mal ― indigestos obrigatórios da escola, leites derramados, alquimias com pouca substância de chef mago e barrinhas de autoajuda que apenas enganaram o estômago. Banidos da dieta, valeu prová-los.

Nas pernas, os que foram pilares de minha formação cultural, ética e espiritual, os que me fizeram captar a vida em sua pluralidade e caminhar em frente. Aqueles que quase (senão perderia a graça) me deram a resposta para “viver, a que será que se destina?”.

Ah, nos pés cansados, edições “havaianas” ― leves, refrescantes, alívio imediato e nem cheiro deixaram…

Por fim, ao alcance de meus abraços, os que me perpetuaram em sua escrava e pelos quais tenho zelo, até ciúme, e me pego a relê-los sem mais nem porquê. Passagens secretas, só eu tenho a senha.

E os queridos do blog? Como arrumariam essa estante? Fico curiosa por saber ao menos de um livro que lhes fez (ou faz) as delícias…

 

 

Ao pé da letra

 

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

Verissimo – para quem a palavra mais bonita da língua portuguesa é “sobrancelha” – escreveu que certas palavras, ao serem pronunciadas, nos dão a impressão de que voam. “Sílfide”, por exemplo. É dizer e ver evoluções de borboleta no ar. Uma amiga, porém, discorda do mestre. Acha que “sílfide” está mais para peça de encanamento: “O sanitário está entupido. Vai ter que trocar a sílfide.”

É dela também a convicção de que “córtex” é instrumento cirúrgico, “marimbondo” é instrumento de percussão e “proxeneta” é aquela pecinha do carro que quebra à toa. Hilária, a minha Su.

Realmente, há tantas palavras que nada têm a ver com o que significam… “Escorreito”, “crepúsculo”, “escrutínio”, “púbere”, “esculápio”, “cútis”, “ósculo”, apesar de bem intencionadas, são um soco no queixo. Disparado, as mais feias da nossa língua. Já na categoria tudo a ver, pontificam “furúnculo” e “seborreia”.

E as mais belas, expressivas, sonoras, evocativas, na opinião desta blogueira?

 

Superfície

Alecrim

Cicatriz

Dália

Inquietude

Andarilho

Diáspora

Alumbramento


 Alguma sugestão? Vão daí.

 

 

A herança

 

 

 

 

Faltavam pelos menos umas duas horas para raiar o dia quando ele se levantou com todo o cuidado para não despertar a mulher, que dormia tranquila ao lado.

Teve a cautela de não acender nenhuma luz. Conhecia bem a casa e por ela se movimentava como um gato, ou um gatuno.

Sorrateiro, saiu para o quintal e desceu aos cômodos transformados numa espécie de porão das velhas casas, desde quando os abrigos antinucleares que todos eram obrigados a manter tornaram-se desnecessários.

Não mais havia risco de guerras, tampouco existiam países, estados, raças, moedas, línguas, fronteiras. O Conselho de Sábios governava a todos e a tudo agora, desde a grande unificação.

Tinha consciência de que era terminantemente proibido o que fazia. Não mais se falava em crime, mas em “inadaptação comunal”, “conduta desconforme” e outros eufemismos, contudo as punições eram rigorosas. Podia ficar longo tempo banido, longe da família, submetendo-se ao processo de recondicionamento.

Num canto dos aposentos havia um antigo cofre que pertencera ao seu avô e que ele dizia guardar como recordação. Um trambolho, segundo a mulher. Ninguém se interessava por aquela geringonça obsoleta, nem mesmo se sabia direito como funcionava.

Mas ele sabia. Girou o pequeno disco para a esquerda e para a direita, detendo-se rapidamente em algumas das ranhuras numeradas, e por fim puxou a tranca. A pesada porta se abriu com um estalido.

No fundo de uma das divisões, camuflado entre diversos objetos inocentes e sem serventia, estava aquilo que buscava.

Sentou-se no chão, abriu a caixa que o acondicionava, retirou o veludo que o recobria e o aproximou dos olhos. Tinha uma pequena lanterna, mas nem era preciso vê-lo na claridade. Sabia perfeitamente como era. A capa azul com o título em letras douradas. A lombada. As páginas que repassava uma a uma. Lembrava-se do que se achava escrito em todas elas, menos na última, que jamais leu exatamente para não chegar ao fim, para não terminar nunca.

No dia anterior, seu filho mais novo, que era muito diferente dos outros (atualmente cada indivíduo, homem ou mulher, só podia procriar uma única vez), curioso, perspicaz, investigativo, sempre o acompanhava para todo o lado e tinha muita afinidade com ele, havia lhe perguntado de chofre:

― Pai, o que é um livro?

Ele se arrepiou, pegou o menino e o levou para um canto.

― Quem te falou sobre isso? Não pergunte nunca mais a respeito disso. A ninguém, entendeu? Isso é uma coisa que existiu há muito tempo, não serve pra nada, é uma droga que viciava as pessoas, deixava elas enlouquecidas, inquietas, vendo e imaginando coisas. Por isso foi proibida pelo Conselho de Sábios.

Assustado, o menino prometeu que nunca mais voltaria ao assunto. 

A palavra “livro” fora apagada do vocabulário e todos os livros tinham sido confiscados e destruídos. Tudo o que era preciso saber estava no ciberespaço, e podia ser acessado por todos a qualquer momento e de qualquer lugar.

Continuou a folhear, apalpar, cheirar o livro, apertá-lo contra o peito durante algum tempo, embora soubesse que aquilo era contra as leis e a humanidade. 

Ele era um homem de bem, e não podia continuar mantendo aquela coisa, mas não conseguia se livrar dela, das lembranças dos outros tantos livros que havia lido desde criança, da biblioteca do seu pai.

Mais dia, menos dia, porém, teria de acabar com isso. Cronologicamente já estava muito velho, embora ainda fosse vigoroso e ativo conforme os padrões vigentes, graças a medicamentos antioxidantes, reposição hormonal, alimentação controlada e outras maravilhas desenvolvidas. Tinha a mesma disposição e aparência dos seus trinta anos.

Quando percebeu pela claraboia que a escuridão da noite começava a se dissipar, apressou-se a recolocar o livro no cofre, que em seguida trancou. 

Enquanto subia as escadas para retornar ao interior da casa, um pensamento e uma esperança assomaram, acelerando-lhe o coração.

Quem sabe o menino…

 

 

Trocando passos

 

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

Lindalva tremia só de imaginar que pudesse ser um estorvo na vida dos filhos. Daí que vivia sem desperdícios, esticando como podia a modesta pensão que Inércio lhe deixara, guardando o dinheiro que ainda entrava da venda das toalhas pintadas à mão, barrinhas de crochê, tudo muito caprichado, by Linda. Achava tão chique assinar assim…

Anos a fio e a tinta, encomendas dobrando nos dias das mães e natais, Lindalva seguia batalhando, tecendo seu pé-de-meia e, na casa própria que a duras penas ajudara a pagar (Inércio não era chegado a um batente), ainda encontrava forças para receber filhos e netos para a lasanha dos domingos.

O falecido fora um bom pai. Nada faltou aos meninos, é certo. Mas, para Lindalva, a tal vida a dois não passara de um filme de quinta, uma fita esquecida na máquina de um embolorado cinema, rodando ininterruptamente.

Lindalva adorava dançar. Vivia cantarolando “um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”, esperando que Inércio a tirasse para dançar, ao menos uma vez, na cozinha que fosse, ao som mesmo daquele rádio horroroso em cima da geladeira, bandeirinha do time presa na antena fazia anos.

Jogo jogado, prorrogação quase, Lindalva começou a cobrar um pouco mais da vida. Deu de se olhar no espelho, restinho de vaidade pulsando tal qual as tantas veias que insistiam em lhe tatuar as pernas. E resolveu tirá-las do mapa. Vaidade ou não, merecia. Tanto sacrifício, privação, noites em claro para dar conta das encomendas, poupando, guardando… Marcara dia e hora. Avisara aos filhos.

Mas havia um sonho no meio do caminho. Um desejo sublimado que aquela poupança de tantos anos tinha por obrigação realizar, sob pena de arrependimento sem volta. Até porque não haveria tempo hábil para recomeçar do zero, amealhar tudo de novo. Pensou. Pesou. Decidiu.

Deu-se de presente uma festa. O acalentado baile de seus 70 anos. Mandou florir o salão do pequeno clube do bairro, convidou poucos e bons amigos. À meia-noite fez um sinal para o músico, colocou-se no centro da pista. Sob aplausos, com um partner de aluguel,  dançou aquele tango tantas vezes ensaiado na solidão do quarto. Flor vermelha nos cabelos, vestido bordado, sandálias altas. Tudo muito caprichado, by Linda.

Num único instante, ainda que as pernas não estivessem lá essas maravilhas, dançou por uma vida inteira. Resgatando todas as festas e prazeres que o destino implacavelmente lhe negara, Lindalva nunca foi tão feliz.

 

P.S.: A personagem é real e vai bem, obrigada. Não mexeu até hoje nas veias bailarinas, mas aquela festa com direito a tango ficou na história. Se lhes interessa, o vestido dela era verde como seus olhos, já nasceu o primeiro bisneto, e tudo me foi relatado por uma de suas amigas presentes. Apenas o nome do falecido é ficção. Pelo conjunto da obra, merecido. (novembro/2008)

 

Para Lindalva, pelos 74 recém-completados. A menina ainda dança.

 

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=F2zTd_YwTvo&list=LPNBdv1pJ3lHo&index=6&feature=plcp[/youtube]