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Amor aos pedaços

 

 

 

 Para Regina e Calato, mestres da arte de juntar cacos e corações

 

 

 

                              Com o coração despedaçado, levou a vida inteira juntando os cacos.

                              Deixou a família, a casa, o emprego, os amigos, e se foi catando os cacos por ruas, vielas, becos, jardins, dia e noite.

                              Um caco aqui, outro acolá, ia vivendo aos cacos.

                              Pouco a pouco ficou um caco, o cabelo e a barba desgrenhados, as roupas rotas, os sapatos furados, mas ele seguiu catando os cacos.

                              Tornou-se a figura folclórica da cidade. Sabiam que era incapaz de fazer mal a alguém, mas as mães ameaçavam os filhos rebeldes:

                              — Se você não comer tudo, eu chamo o catador de cacos para te levar no saco.

                              E as crianças logo devoravam os brócolis, as vagens, os quiabos, os espinafres e os jilós.

                              Já muito velho e carcomido, com o saco cheio, um dia o coração partido espatifou de vez.

                              Até então não havia conferido os cacos catados. Acostumara-se a catá-los simplesmente.

                              De joelhos, antes de desfalecer, juntou as últimas forças e despejou o saco, mas não percebeu que de lá caíam estrelas, luares, raios de sol, entardeceres, alvoreceres, flores, borboletas e pássaros, sorrisos e olhares em meio aos cacos.

                              Com os olhos baços, só viu que à frente de si tinha um cacófato (que lhe serviu de sarcófago).

 

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=izmVLk6eh6c]

 

 

Veja no link abaixo alguns cacos dos trabalhos da Regina e do Calato

http://www.arteoficiomosaicos.com.br/

 

 

 

Operação-padrão

 

 

 

 Ponte Rio-Niterói

 

 

               “O Brasil não é um país sério!”

               Há quem até hoje sinta os brios patrióticos feridos com essa famosa frase atribuída a De Gaulle, mas que teria sido pronunciada de fato pelo próprio embaixador brasileiro na França, diante da inabilidade do governo brasileiro durante o patético episódio que se tornou conhecido como Guerra da Lagosta, em que quase fomos às vias de fato com a França para decidir se lagosta andava ou nadava…

               Prefiro outra, que seria de Tom Jobim (não sei realmente se foi ele o primeiro a dizê-la): “O Brasil não é para principiantes”, da qual há um sucedâneo: “O Brasil não é para amadores”.

               Todos os dias nos afrontam inúmeros fatos e exemplos que atestam o acerto das três sentenças.

               Veja-se, por exemplo, a tal de “operação-padrão” que costuma ser posta em prática especialmente por servidores da Polícia e da Receita Federal, mas não apenas por eles, quando reivindicam aumento ou outro benefício a que fariam jus.

               Ainda agora acha-se em curso mais uma, causando como sempre um enorme transtorno nos aeroportos, portos e pontos de fronteira.

               Do que se trata, afinal, a “operação-padrão”?

               Simplesmente em cumprir, em todos os seus termos, as normas e regulamentos que os servidores têm ou teriam obrigação de cumprir todos os dias.

               Ora, se isso causa tamanho alvoroço e tanta dificuldade operacional a ponto de ser utilizado como arma ou recurso para forçar o governo a atender as postulações da categoria, duas conclusões ― que não se excluem ― são de uma obviedade ululante, como diria aquele outro grande frasista, Nelson Rodrigues:

               1.          os servidores habitualmente não cumprem o seu dever funcional, o que exigiria que fossem punidos;

               2.          as normas e os regulamentos estabelecidos como “padrão” são absolutamente estúpidos e impraticáveis, já que atravacam o país, o que exigiria que fossem reformulados.

               É aí que entra outra instituição genuinamente tupiniquim, como a jabuticaba, que é o “jeitinho brasileiro”.

               Será que temos mesmo jeito?

 

 

Aeroporto Tom Jobim

 

 

 

A arte do encontro III

 

 

 

 

 

               No dia 2 de agosto de 1962, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto, com a participação especial dos fenomenais Os Cariocas, e sob a direção musical de Aloysio de Oliveira, fizeram um show denominado O Encontro, no célebre Au Bon Gourmet, no Rio de Janeiro.

               O então diplomata Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes  (a grafia “Vinitius” é a original, exigida pelo pai Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, um amante do latim) precisou de uma autorização especial do Itamaraty  — conseguida a muito custo — para se apresentar numa boate, cantando e bebendo. Exigiram-lhe, porém, que fosse de terno e gravata!

               O show, que ainda contou com a presença de Milton Banana na bateria e Otávio Bailly no contrabaixo, foi uma espécie de batismo, a primeira apresentação em público de canções que em pouco tempo se tornariam clássicos, como Garota de Ipanema, Samba do avião, Samba da benção e Só danço samba.

               Embora obviamente tenha sido composta antes, pode-se dizer que Garota de Ipanema completa 50 anos (pelo menos do seu debut), mas continua com um corpinho de 15. Ela e Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, são as duas canções mais representativas do Brasil no exterior.

               Naquela apresentação inicial, Tom, Vinicius e João fizeram uma introdução para a música. Vale a pena conferir esta versão histórica e inédita no vídeo abaixo. Na sequência, Os Cariocas emendam Devagar com a Louça, numa espécie de resposta à recém apresentada Garota de Ipanema.

               Eis o repertório (ou set list, como se diz hoje) do show:

 

1.           Os Cariocas

              Só Danço Samba (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)

2.           Tom Jobim e Os Cariocas

              Samba de uma Nota Só (Antonio Carlos Jobim/Newton Mendonça)

3.           Joao Gilberto e Os Cariocas

              Corcovado (Antonio Carlos Jobim)

4.           Vinicius de Moraes

              Samba da Bênção (Baden Powell/Vinicius de Moraes)

5.           Joao Gilberto e Os Cariocas

              Amor em Paz (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)

6.           Os Cariocas

              Bossa Nova e Bossa Velha (Miguel Gustavo)

7.           Tom Jobim e Os Cariocas

              Samba do Avião (Antonio Carlos Jobim)

8.           Vinicius de Moraes e Os Cariocas

              O Astronauta (Baden Powell/Vinicius de Moraes)

9.           Joao Gilberto

              Samba da Minha Terra (Dorival Caymmi)

10.        Joao Gilberto

              Insensatez (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)

11.         Joao Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes

              Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)

              Os Cariocas

              Devagar com a Louça (Haroldo Barbosa/Luiz Reis)

12.        Joao Gilberto e Os Cariocas

              Só Danço Samba (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)

13.        Todos

              Garota de Ipanema; Só Danço Samba; Se Todos Fossem Iguais a Você (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)

 

P.S.        Minha intenção era e é a de publicar apenas uma vez por semana um post da série A arte do encontro. E de evitar repetir as personagens, pelo menos imediatamente. Mas com Vinicius e Tom isso não foi e não será possível. Eles voltarão a aparecer em muitos outros encontros, entre os dois e com outros parceiros.

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=vbhYxhV1YrA]

 

 

 

A arte do encontro II

 

 

 

© Foto de Fernando Duarte. Tom Jobim e Elis Regina. Los Angeles, 1974.

 

 

          Em 1974, o fotógrafo Fernando Duarte registrou em filme o histórico encontro entre Tom Jobim e Elis Regina em Los Angeles, durante a gravação do disco “Elis & Tom”, nos estúdios da MGM. Ao lado de Mário Carneiro, Fernando Duarte é considerado um dos mais importantes fotógrafos do cinema brasileiro, um dos responsáveis pela inovação da fotografia que predominou no Cinema Novo.

          Não existe uma só faixa do disco que não seja antológica:

 

1.       Águas de Março

2.       Pois é

3.       Só tinha que ser com você

4.       Modinha

5.       Triste

6.       Corcovado

7.       O que tinha de ser

8.       Retrato em branco e preto

9.       Brigas, nunca mais

10.     Por toda a minha vida (Exaltação ao amor)

11.     Fotografia

12.     Soneto de separação

13.     Chovendo na roseira

14.     Inútil passagem

 

          Tenho até hoje, e conservo como relíquia, o LP de vinil original.

 

 

 

 

          No vídeo abaixo, apesar da precariedade das imagens, dá para sentir o astral que reinava nos ensaios e no estúdio, além de alguns trechos das gravações, de que só participaram feras, como Aluisio de Oliveira (produtor), César Camargo Mariano (então casado com Elis), Bill Hitchcock, que aparecem no vídeo.

          

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=KF_8RHCyGhQ]

 

 

 

Recado aos surdos

 

 

 

 

 

               Ruy Castro, sempre oportuno e impecável, na sua coluna de hoje na Folha de S. Paulo (Recado em prosa) lembra ao nosso país e à nossa gente sem memória que Tom Jobim (que estaria agora com 85 anos) “teria sido recebido com clarins nos salões do Riocentro, na abertura da conferência Rio+20”, não apenas por ser autor de inúmeras canções que celebram a natureza, “Mas por ser um porta-voz da ecologia, desde a época em que, no Brasil, essa palavra tinha de ser procurada no dicionário”.

               Por causa disso, segundo ainda Ruy Castro, Tom era tratado até mesmo com “brutalidade” nas redações do Rio e de São Paulo, nos anos 70 e 80, onde costumavam debochá-lo: “Ih, lá vem de novo o Tom Jobim com aquela mania de ecologia.” “Tom Jobim é a coisa mais rançosa que existe!”.

               Tamanha era a paixão de Tom pela natureza e pelo Brasil que ele dizia:“Toda a minha obra é inspirada na mata atlântica.”

               Pois aí está a trôpega Rio+20 a gemer e urrar para parir um ratinho à guisa de documento final, que muito pouco ou nada valerá para as medidas sérias e consequentes que precisam ser tomadas e não podem esperar mais.

               O vídeo abaixo é um perfeito exemplo do que nos conta Ruy Castro: na parte final, Tom Jobim brinca com a letra que lhe fizera Vinicius em Carta ao Tom 74, para denunciar uma vez mais a degradação que vinha sofrendo o Rio de Janeiro. O outro vídeo é da magnífica Borzeguim.

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=sXYvPbgGjVc&feature=related]

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=AYMlw8b4Nl0]

 

 

 

Millorianas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“O mundo tem muitos idiotas, mas, felizmente, estão todos nas outras mesas”

(Millôr Fernandes, em conversa com Tom Jobim no bar Veloso. Ipanema, 1962)

 

 

 

As casas do(s) Tom(s)

 

 

 

                                   […]

 

                                   Quero a casa em lugar alto

                                   Ventilado e soalheiro

                                   Quero da minha varanda

                                   Contemplar o mundo inteiro.

 

                                   Vou fazer o meu retiro

                                   Na grota do chororão

                                   A minha casa será

                                   Uma casa de oração.

 

                                   Vou me esquecer do pecado

                                   Entrar em meditação

                                   E não saio mais de casa

                                   Só saio de rabecão.

 

                                    […]

 

                                   (Tom Jobim, “Chapadão”, excerto)

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=1l8JO0q0fDc&feature=player_embedded] 

 

 

                                   Modestamente, sem o piano soberano,

                                   mas algumas vezes com um charuto,

                                   uma taça de vinho, meus livros,

                                   pedindo um cafezinho,

                                   escrevinhando minhas tolices,

                                   resmungando com o vizinho,

                                   o canto dele na vitrola,

                                   Manuela a ir e vir

                                   derramando seu encanto,

                                   assim também (e cada vez mais)

                                   gosto de estar em casa

                                   bem-composto no meu canto.

 

                                   Será isso a velhice?

                                   As dentaduras duplas que não tenho?

   

 

                              […]

                              Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

                              Teus ombros suportam o mundo

                              e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

                              As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

                              provam apenas que a vida prossege

                              e nem todos se libertaram ainda.

                              Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

                              prefeririam (os delicados) morrer.

                              Chegou um tempo em que não adianta morrer.

                              Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

                              A vida apenas, sem mistificação.

 

(Carlos Drummond de Andrade, “Os ombros suportam o mundo”, excerto)

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=JaL_FjH87ck&feature=related]

 

 

 

Parabéns, Rio de Janeiro a Janeiro

 

 

Para Selminha e Paulinho, privilegiados amigos queridos.

 

 

“No mar estava escrito uma cidade

no campo ela crescia, na lagoa,

no pátio negro, em tudo onde pisasse

alguém, se desenhava tua imagem,

 

teu brilho, tuas pontas, teu império

e teu sangue e teu bafo e tua pálpebra,

estrela: cada um te possuía.

Era inútil queimar-te, cintilavas.”

 

(Carlos Drummond de Andrade, Mas Viveremos, excerto)

 

 

 

            Hoje é o dia do aniversário do Rio de Janeiro, que completa 447 anos.

            Sou absolutamente fascinado pelo Rio ― sua gente, suas personagens, praias, bibliotecas e livrarias, o Corcovado, o centro velho, a Lapa boêmia, o Jardim Botânico, a Floresta da Tijuca, a inconcebível geografia, o samba que ressoa por todos os cantos ― e é nela que me refugio e refaço sempre que posso, e menos do que gostaria.

            O Rio tem problemas? Claro que sim, como todas as grandes cidades, como todo o Brasil e sua desigualdade afrontosa.

            Mas quando vou me achegando do Rio, encarno o Tom Gama, minha alma canta, sorrio e me acaba num instante com qualquer tristeza…

 

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=aK-k0SstIJQ&feature=related]

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=n-2AxyS_58k#]

 

 

  

Tom menor

 

 

 

            Acordei-me tom menor.

            Segundo meus parcos conhecimentos, o tom ou acorde menor corresponde a um intervalo mais curto (ou menor) entre as notas, o que geralmente faz a música soar mais doce, mais suave, introspectiva, até mesmo algo tristonha ou melancólica.

            Gosto muito de canções assim, talvez porque, no fundo, eu não passe de um tom menor que se disfarça e busca nos tons maiores levar mais leve a vida.

            Também o carnaval, na sua explosão de alegria em tom maior, fantasia os tons menores do dia a dia.

            Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Jardineiras, Tiroleses, Sultões, Odaliscas, Reis, Rainhas, Príncipes e Princesas, “somos todos iguais nesta noite, na frieza de um riso pintado.”

 

            “Quem é você?”

 

            “Hoje eu sou da maneira que você me quer.”

 

            “Eu sou o pirata da perna de pau, do olho de vidro, da cara de mau…”

 

            “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí!”

 

            “Allah-la-ô, ô ô ô ô ô ô

            Mas que calor, ô ô ô ô ô ô.”

 

            “Eu fui às touradas em Madri

            E quase não volto mais aqui!”

 

            “Não existe pecado do lado de baixo do Equador

            Vamos fazer um pecado rasgado, suado a todo vapor.”

 

            “Não se perca de mim

            Não se esqueça de mim

            Não desapareça…”

 

            Quanto riso! Oh, quanta alegria!

 

            “Bandeira branca, amor,

            Não posso mais!”

 

            Passado o carnaval, a quarta-feira virá nas cinzas do tom menor.

 

            “E no entanto é preciso cantar

            Mais que nunca é preciso cantar

            É preciso cantar e alegrar a cidade.”

 

 

 [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=4kHmk995qVA&feature=related]

 

 

 

No Tom

 

 

 

            Não sei bem o que se me passa (envelheço, amadureço, enterneço?), mas a cada dia que passa gosto cada vez mais de Tom Jobim, em todos os sentidos, do homem à obra.

            Essa parceria dele com Dolores Duran, por exemplo, tem uma linda história.

            Tom havia feito a música e dado a Vinicius para pôr a letra, mas quando Dolores ouviu a canção, pegou um papelucho (consta que um guardanapo de papel) e escreveu os versos de uma só tacada.

            Alguns dias depois, Vinicius trouxe a sua letra para o Tom e este, constrangido, mostrou-lhe a que Dolores fizera. O poetinha ― sempre generoso e amigo ― ouviu, enfiou a sua no bolso sem deixar que Tom a lesse e lhe falou: “Fique com a da menina”.

            A letra de Dolores é de fato muito bonita e se harmoniza perfeitamente com a canção, que se tornou um clássico, mas como seriam os versos de Vinicius?

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=mKR746yT0Vo]