Queria assim
um ano à esmo
sabático
em que todo dia
é sábado
e véspera de si mesmo.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=qfkz6eD8mn4]
Queria assim
um ano à esmo
sabático
em que todo dia
é sábado
e véspera de si mesmo.
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Para Regina e Calato, mestres da arte de juntar cacos e corações
Com o coração despedaçado, levou a vida inteira juntando os cacos.
Deixou a família, a casa, o emprego, os amigos, e se foi catando os cacos por ruas, vielas, becos, jardins, dia e noite.
Um caco aqui, outro acolá, ia vivendo aos cacos.
Pouco a pouco ficou um caco, o cabelo e a barba desgrenhados, as roupas rotas, os sapatos furados, mas ele seguiu catando os cacos.
Tornou-se a figura folclórica da cidade. Sabiam que era incapaz de fazer mal a alguém, mas as mães ameaçavam os filhos rebeldes:
— Se você não comer tudo, eu chamo o catador de cacos para te levar no saco.
E as crianças logo devoravam os brócolis, as vagens, os quiabos, os espinafres e os jilós.
Já muito velho e carcomido, com o saco cheio, um dia o coração partido espatifou de vez.
Até então não havia conferido os cacos catados. Acostumara-se a catá-los simplesmente.
De joelhos, antes de desfalecer, juntou as últimas forças e despejou o saco, mas não percebeu que de lá caíam estrelas, luares, raios de sol, entardeceres, alvoreceres, flores, borboletas e pássaros, sorrisos e olhares em meio aos cacos.
Com os olhos baços, só viu que à frente de si tinha um cacófato (que lhe serviu de sarcófago).
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Veja no link abaixo alguns cacos dos trabalhos da Regina e do Calato
http://www.arteoficiomosaicos.com.br/
A lua azul e eu
No bilhete da “presidenta” Dilma, flagrado pelas câmeras indiscretas, em que ela indaga de suas ministras sobre o acordo que teria sido formalizado no Congresso Nacional sem que ela de nada soubesse, o “Por que” inicial, que deveria ser separado (junção da preposição “por” com o pronome interrogativo “que”), está claramente grafado junto: “Porque” (apesar de uma pequena distância entre as letras, que se repete em outras palavras e parece ser característico da caligrafia dela).
Como ela teve o Lula como professor, não é de se estranhar…
Texto de Aldir Blanc, lido por José Wilker na última edição do Prêmio da Música Brasileira:
“Quando conheci João Bosco, fiquei fascinado com um ponto comum na imensa variedade de seu repertório ainda sem letra — sambas, toadas, canções, algumas cujo gênero não era, e não é até hoje, fácil de definir: havia nelas o uivo barroco da solidão de Ouro Preto, cidade onde João estudava engenharia e compunha, em silêncio, uma revolução musical.
Já éramos, por temperamento e destino, uma parceria indissolúvel. Tínhamos, como nos orgulhamos de ter até hoje, inesgotável vontade de trabalhar. Lembro do João, começo dos anos 70, quando já morava no Rio, pegando o violão no começo da tarde. Muitas vezes outro dia raiaria, e apesar dos uísques e cervejas, nós estávamos inteirinhos, atentos, João tocando na pontinha da cadeira, eu em frente, ligadaço, como no minuto em que havíamos começado a canção, na tarde anterior, até ficarmos satisfeitos e trocarmos um sorriso cifrado: mais uma no balaio.
João é um forte. Sofreu incompreensões e até maldades difíceis de suportar, a menos que o artista tenha um objetivo implacável. Compúnhamos em táxis, butecos, aviões e de madrugada, em hotéis, quando voltávamos dos shows, incansáveis. Fizemos músicas em pé, de ressaca, na beira da calçada. Fizemos música sonhando, fizemos música sofrendo muito. Esse é o maior orgulho da parceria: sempre ralamos com afinco, com a maior garra.
Estivemos afastados vinte minutos, vinte séculos – e esse tempo foi igual a observar as mesmas estrelas de navios diferentes, sentindo a água e o vento que nos reuniria.
Se hoje, paradoxalmente, as dificuldades são maiores, também fomos claros sobre isso: “Glória a todas as lutas inglórias!”.”
Como João e Aldir, temos uma parceria indissolúvel, por temperamento e destino.
Como Aldir e João, ficamos algum tempo afastados — “a observar as mesmas estrelas de navios diferentes” —, por contingências da vida, sem nunca ter brigado.
Como João e Aldir, um dia nos reaproximamos e apenas prosseguimos a conversa interrompida na proa do velho barco, como acontece com os verdadeiros amigos.
Ele e eu sempre adoramos Aldir e João. Um dos momentos mágicos da minha vida foi quando, já amanhecendo o dia (“eu gosto quando alvorece porque parece que está anoitecendo…”) e após deixá-lo no prédio em que morava, ao sair com o meu fusca começou a tocar no rádio uma canção ainda desconhecida, interpretada por Elis Regina, que imediatamente me despertou todos os sentidos e todas as emoções. Voltei a estacionar, o coração aos saltos, para ouvir com mais atenção, e ao final os olhos teimavam em vazar.
Era o “O bêbado e a equilibrista”. Que sufoco! Queria voltar, dar um jeito de repetir a música para mostrar a ele. Mas eram outr os tempos, duros tempos de ditadura, sem celular, sem internet, sem as facilidades de hoje.
No dia seguinte, contei-lhe o acontecido, além do título, consegui reproduzir alguns trechos esgarçados da melodia e da letra, falei do arranjo com o som do realejo no início, deixando-o ainda mais ansioso e louco da vida para conhecer a canção, até que alguns dias depois — muitas vezes mais e até hoje — escutamos juntos.
Outro momento precioso e parecido foi quando ouvimos juntos pela primeira vez, à porta de uma loja de discos da Guarujá das “meninas descalças”, a canção “Apesar de você”, de Chico Buarque, que acabava de ser lançada.
E todos aqueles tantos momentos em que trocamos “um sorriso cifrado: mais uma no balaio” (que podia ser uma nova canção ou qualquer outra coisa, apenas a súbita percepção de uma sintonia plena).
Lembra disso, Brenno?
Feliz aniversário, meu jovem ancião.
Ainda temos muitas penúltimas a fazer e beber, “tanto faz, se é noite ou se é dia”…
P.S. Pô, quando é que você vai tomar (ou perder a) vergonha e mandar aquela sua canção para o João?
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[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=qM09qTwmaJ4]
Me dá a penúltima (João Bosco e Aldir Blanc)
Eu gosto quando alvorece
porque parece que está anoitecendo
e gosto quando anoitece que só vendo
porque penso que alvorece
e então parece que eu pude
mais uma vez, outra noite,
reviver a juventude.
Todo boêmio é feliz
porque quanto mais triste
mais se ilude.
Esse é o segredo de quem,
como eu, vive na boemia:
colocar no mesmo barco
realidade e poesia.
Rindo da própria agonia,
vivendo em paz ou sem paz,
pra mim tanto faz
se é noite ou se é dia.
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Soneto do Corifeu
São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.
Este poema de Vinicius integra a peça “Orfeu da Conceição”. É a primeira fala, e quem a diz é o Corifeu. Em razão disso, quando recolheu este texto no seu “Livro de Sonetos”, Vinicius deu-lhe o título de “Soneto do Corifeu”.
Mais tarde, o poema foi musicado por Toquinho, e a canção recebeu o título de “São demais os perigos desta vida”, que deu nome ao disco homônimo (1972) da dupla.
Outrora eu era daqui, e hoje regresso estrangeiro. Forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim. Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. Eu reinei no que nunca fui.
Bernardo Soares (Fernando Pessoa), “Livro do Desassossego”
“Amor de praia não sobe a serra”, diziam, e eu me revoltava com tamanha insensibilidade e o mau agouro.
“Dessa vez vai ser diferente”, pensava, tentando apaziguar meu coração descompassado de amor.
Por duas vezes, quase foi diferente.
Voltei a me encontrar com dois desses amores longe da praia, e chegamos a manter um breve relacionamento. Ambas moravam em São Paulo.
Uma delas, alta, linda, loura e de família muito rica (que olhava atravessado para aquele caipira pobretão), era de outro mundo, outra estratosfera, tão distante quanto a lua. Muito difícil que desse certo. Pouco durou.
A outra, o oposto, morena, mignon, faceira, com uma graça e um sorriso que ofuscavam a lua, era do meu mundo. Nem sei bem porque tudo acabou.
Por uma dessas trapaças do destino, o apartamento em que morei em São Paulo por quase oito anos antes de me aposentar do Ministério Público ficava na mesma rua e muito próximo do prédio em que ela vivia com a família na época. Passava em frente todos os dias, na ida e volta do trabalho. Às vezes, de noite, olhava para o céu e via a lua.
Naqueles tempos, São Paulo ficava muito distante, tão longe quanto a lua. A Anhanguera era quase toda de pista simples até lá. Avião, nem pensar! Internet, nem em sonho! Telefone, difícil e muito caro.
Nunca mais vi nenhuma das duas, e provavelmente não tenha deixado marca alguma na vida delas. Continuo, porém, a ver a lua daqui de tão longe, mas com outros verdes olhos que me acompanham e aquecem há mais de trinta anos.
Como terá sido com Neil Armstrong?
Ele a tocou. Foi o primeiro. Nela deixou suas marcas para sempre.
Foi um breve encontro. Logo ele voltou a pisar o chão da Terra.
Discreto, recolheu-se e pouco falava a respeito. Achava que não tinha feito nada de mais.
Até que o seu velho coração, que aqui pulsava, parou.
Terá ido pulsar com ela, no infinito do universo?
A mim me resta continuar provisoriamente por aqui, a pisar meu chão de estrelas.
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Se for possível, manda-me dizer:
— É lua cheia. A casa está vazia —
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
— É lua nova —
E revestida de luz te volto a ver.
Hilda Hilst
(Júbilo Memória Noviciado da Paixão, 1974)
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=lCP4VFGm9aw]
Marisa Monte canta “Gotas de luar”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura.
Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.
E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”
“Jovens: envelheçam rapidamente!
Já não me lembro se li ou vi pela televisão Nelson Rodrigues proferir essa sentença pela primeira vez.
Lembro-me, porém, que eu era bem jovem, e mesmo assim achei muita graça e logo me encantei com ele, com seu destemor em não afagar ou bendizer a juventude como era praxe então (estávamos na plenitude da onda “hippie”, do “é proibido proibir”, do “poder para os jovens” ou da “jovem guarda”, segundo o gosto de cada qual).
Ainda hoje os louvaminheiros dos jovens, em busca do seu aplauso fácil, formam a imensa maioria, como se a juventude fosse um dom e tudo o que dela provenha, um bem em si mesmo. Há, é claro, os que se colocam na posição totalmente oposta ― e igualmente equivocada ― de não aceitar ou dar valor a nada que seja jovem ou novo.
“Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”, diria Nelson Rodrigues a esses “cretinos fundamentais”.
Fiel a si mesmo, Nelson nunca abdicou de pensar por si mesmo, e dizer o que pensava, sem preocupação de agradar ou desagradar. Por isso foi tachado de tarado a reacionário, execrado pela direita, pela esquerda e pelo centro, por crentes e ateus, pelos críticos e pela censura.
Neste 23 de agosto, Nelson faz 100 anos.
Não uso o verbo no futuro do pretérito porque homens como Nelson Rodrigues são sempre presentes na sua obra, que nunca envelhece.
“A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: – o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.”
“Não admito censura nem de Jesus Cristo.”
“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.”
“Todo desejo é vil.”
“O brasileiro chamado de doutor treme em cima dos sapatos. Seja ele rei ou arquiteto, pau-de-arara, comerciário ou ministro, fica de lábio trêmulo e olho rútilo.”
“O asmático é o único que não trai.”
“Todo ginecologista devia ser casto. O ginecologista devia andar de batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um são Francisco de Assis, com a luva de borracha e um passarinho em cada ombro.”
“Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.”
“Em nosso século, o grande homem pode ser, ao mesmo tempo, uma besta!”
“O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca.”
“A companhia de um paulista é a pior forma de solidão.”
“O cardiologista não tem, como o analista, dez anos para curar o doente. Ou melhor: ― dez anos para não curar. Não há no enfarte a paciência das neuroses.”
“Copacabana vive, por semana, sete domingos.”
“O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é um orçamento.”
“Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos.”
“A dúvida é autora das insônias mais cruéis. Ao passo que, inversamente, uma boa e sólida certeza vale como um barbitúrico irresistível.”
“Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.”
“Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista.”
P.S. Somente com a leitura muitos anos atrás do esplêndido livro de Ruy Castro (como tudo o que ele escreve) O Anjo Pornográfico ― A vida de Nelson Rodrigues, é que tomei conhecimento da real grandeza de Nelson Rodrigues, do que é e representa, da sua vida “mais trágica e rocambolesca do que qualquer uma de suas histórias, e tão fascinante quanto”.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=5O0U3tnvaxU]
“Amar é ser fiel a quem nos trai.”
Vinicius de Moraes, sempre tão generoso e afável, tinha lá seus humanos deslizes.
Antes de cometer a célebre frase — de que se arrependeria publicamente mais tarde — “São Paulo é o túmulo do samba”, havia criticado em um artigo os erros de português de “Samba do Arnesto”.
Adoniran Barbosa nunca se importou com isso, seguiu fazendo seus sambas paulistanos com um idioma típico, roseano (antes do próprio), suas marchinhas e canções, além das sacadas como o “Charutinho”, cujo phisyque du role incorporou ao compositor.
Até que um dia, de repente, não mais do que de repente, Aracy de Almeida, então morando e trabalhando em São Paulo na TV Record, passou ao colega Adoniran um papel que recebera de Vinicius com um poema e atribuições plenipotenciárias: “faça o que quiser com ele”.
O poema — na esteira da onda existencialista e do livro de Françoise Sagan — se tornou a letra do antológico samba-canção “Bom dia, tristeza”, composto por Adoniran inteiramente fora do padrão melódico dos seus sambas paulistanos, como a dar a resposta do seu imenso talento.
O diplomata Vinicius estava em Paris, integrando a delegação brasileira na Unesco, e de lá acompanhou o repentino e estrondoso sucesso da canção, gravada inicialmente por Aracy Cardoso e em seguida por outras cantoras consagradas, como Elizeth Cardoso e Maysa (esta encarnava como ninguém a personagem do poema).
Adoniran achava que a melhor gravação e interpretação de todas era a de Mauricy Moura, ele próprio gravou “Bom dia, tristeza” mais de uma vez e chegou a incluir uma introdução falada bem ao seu estilo (seria uma réplica bem-humorada a Vinicius?): “A tristeza é um bichinho que para roer está sozinho. E como rói, a bandida. Parece rato em queijo parmesão”.
Talvez tenha sido a arte do desencontro (não encontrei nenhuma foto dos dois juntos).
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