A outra

 

 

 

               Ela era mais velha do que eu, então nos meus verdes 19 anos, quando se tornou minha.

               Estava ali, entre outras do mesmo tipo, mas era de longe a mais bonita e bem conservada de todas.

               No leilão que se seguiu, dei-lhe um lance. Ninguém ofereceu mais. E ela ficou comigo.

               Conclui a faculdade, advoguei brevemente, ingressei no Ministério Público de São Paulo, fiz duas pós-graduações, ela sempre me acompanhando, auxiliando nos estudos e no trabalho.

               Namorei, noivei, casei, a primeira filha nasceu, e continuamos inseparáveis.

               Quantas noites varamos juntos, quantos cafés e alvoreceres, ela por vezes assentada no meu colo (como Clarice), a me amparar nos contos e poemas claudicantes.

               Logo após o nascimento da segunda filha, um amigo que viria a batizá-la e se tornar meu compadre, apresentou-me outra, falou-me dos seus dotes, da seu beleza, do seu desempenho, e de tanto insistir conseguiu que eu a trocasse por uma novinha, o que me custou os olhos da cara.

               Não lhe fui ingrato, porém, nem a deixei ao léu.

               Guardei zelosamente a minha querida Olympia portátil, e passei a usar a novíssima e moderna IBM elétrica, que possibilitava, entre outras maravilhas, apagar erros e mudar as esferas, alterando as letras para negrito, itálico e outras fontes!

               Anos depois, aquela minha segunda filha, já meninota, resolveu aprender datilografia e voltou a usá-la para se exercitar.

               Há pouco mais de um mês, a mesma filha encontrou-a guardada num canto do meu pequeno escritório de casa, ainda em perfeito estado.

               Pediu-me, dizendo que era uma lembrança da infância e que iria colocá-la em destaque na prateleira da sala do seu apartamento.

               Como negar-lhe?

               Só então nos separamos. Lá se foi ela para São Paulo, nas boas mãos da Bell.

               Passou por uma plástica (embora não precisasse) e ganhou nova cor (apesar dos protestos do velho restaurador da Praça da Sé, que preferia manter a original).

               Ela era verde, como meus verdes 19 anos de quando nos conhecemos.

               Agora, rebrilha amarela na prateleira da minha Isabella, como o sol do meu amor por ela.

 

 

 

 

 

5 comentários

  1. 30/04/12 at 12:42

    Papi, ficou lindo! Ela merecia essa homenagem. Ela está toda pomposa na estante, pronta para ser admirada. Já imagino quando meus pequenos percorrerem a sala e perguntarem o que é aquilo. E imagino a confusão que dará na cabeça deles ao saber que existiu uma “máquina de escrever”. Obrigada pelo presente que tomei de você! Quando tiver saudades, dela e de mim, estaremos de portas abertas, com o whisky no bar e o disco na vitrola para aquela prosa gostosa na sala… ti doro! beijo

  2. Annibal Augusto Gama
    30/04/12 at 15:25

    Acho que vocês, os dois, são muito novos para lembrar. Para escrever suas memórias. Qual a idade para lembrar-se? O mundo é novo, ou é velho? O que talvez vocês não saibam é que a máquina de escrever foi inventada por um padre brasileiro.

    E se o mundo de vocês começou com uma Olympia, o meu começou com uma Underwood e com uma Remignton. E escrevia, e escrevo catando milho, com dois ou três dedos.

    Meu pai, seu avô e bisavô de Isabella, tinha uma boa correspondência e também escrevia diatribes para os jornais. Eu sentava no canto da sala, onde se achava a Remington, e ele ditava. Tinha a mania do ponto e vírgula. Eu protestava: não é ponto-e-vírgula, é só vírgula ou ponto. Discutíamos. Afinal, pronto o texto datilografado, com cópia de carbono, ele assinava. Vejo-o andando pela sala, com as mãos atrás das costas, ou às vezes se inclinando sobre o papel no rolo da máquina, os óculos meio caídos sobre o nariz. Ia acender um cigarro de palha, que ele mesmo preparava, uma dúzia deles, à noite. Misturava dois ou três fumos, cujos rolinhos eram mantidos em caixa de metal, ao lado da talha, na copa.

    Muito mais tarde, já Promotor de Justiça, eu compraria uma Alpina alemã, que me serviu durante muitos anos, e ainda está intata, no seu estojo.

    Alguns anos depois tive uma máquina elétrica, que foi adaptada ao antigo computador, aquele DKV, cujos discos eram grandes bolachas. Meu filho Marcelo adaptou-lhe a máquina de escrever elétrica, que servia como impressora.

    Quantos textos assim escritos, quantas cartas? Milhares.

    Nunca, porém, abandonei de todo os textos manuscritos. Ainda hoje, valho-me da caneta. Ou da esferográfica. A grafia ainda é legível. Aquele pareceres escritos à mão, nas folhas dos processos…

    O homem é um animal scribendi.

    Quando ele deixar de escrever (já está deixando) e restringir-se a esses aparelhos modernosos, deixar de ler, o mundo será esta insipidez que já está aí.

    Escreva o que lhe pareça
    venha o dia
    ou anoiteça
    Escreva o verso fino
    como o fio da navalha;
    escreva derramado
    como o rio esparramado
    na enchente das goiabas.

    Escreva a carta apaixonada
    com juras de amor
    e lancinante saudade.
    “Meu bem, meu bem, meu bem,
    longe de ti, cada dia
    que passa é uma eternidade
    que vivo desvivendo,
    morrendo a cada hora,
    o coração dilacerado,
    ficando e indo embora”.

    Escreva a carta do suicida,
    truncada, torcida,
    arrenegando a vida,
    dando adeus e uma banana
    para a ingratidão das mulheres,
    chamem Rosaura ou Joana.

    Escreva o epitáfio
    para o cenotáfio;
    escreva o panfleto
    ou o discurso
    para ser lido no coreto.

    Escreva a monografia
    das libélulas, o tratado
    do ser-sendo não-sendo
    para vir a ser e perecer.

    Escreva na casca da árvore
    na pedra, na areia, na água,
    no papel vergé,
    na lâmina de aço,
    na margem do calhamaço.

    Escreva o diário, o memorando,
    o ofício, o requerimento,
    o contrato, o testamento,
    a secreta mensagem
    costurada no forro do paletó,
    ou lançada
    do portaló do navio
    na garrafa arrolhada.

    Escreva, escreva, escreva,
    faça dia ou amanheça,
    pedindo perdão,
    pedindo a todos
    que o esqueçam.

  3. 01/05/12 at 12:32

    Depois que um mestre se expressa, há que se manter o silêncio e a reflexão.

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