Posts from abril, 2012

O obscuro Judas

 

 

 

 

 

               Agora tinha virado moda, um meio de atrair turistas, e muitas outras cidades copiavam, mas a encenação da Paixão de Cristo era uma tradição imemorial naquela longínqua cidadezinha do interior.

               Ele sempre fora fascinado pela representação, e desde criança se preparara para um dia participar dela. 

               Começou como mero ajudante, carregando apetrechos e prestando auxílio aos atores. Sempre solícito e interessado, acompanhava tudo de perto, as primeiras reuniões, os ensaios iniciais, enfronhando-se cada vez mais na montagem do grande espetáculo. Depois, passou a figurante, até que um dia, finalmente, assumiu um dos papéis principais.

               Seu sonho secreto sempre fora encarnar Jesus Cristo, mas sabe-se lá por que razão acabou ficando com o papel de Judas Iscariotes.

               Fazia já quarenta anos!

               A cada ano mais se aprimorava e entranhava no personagem, especializando-se sobre ele, com pesquisas e leitura de tudo o que lhe vinha às mãos.

               Depois de tanto tempo, desenvolvera sincera afeição por Judas Iscariotes, e até mesmo certa identificação. Comiserava-se com o seu destino trágico que lhe fora traçado à revelia. Se ele não o tivesse cumprido, Cristo tampouco cumpriria o seu, e não haveria a Sexta-Feira da Paixão.

               Tornara-se o mais velho ator da companhia, que já substituíra algumas vezes o ator que fazia Jesus, sem nunca cogitar, porém, de passar a outro o papel de Judas, que ele representava cada vez melhor, segundo a opinião geral.

               Respeitado e admirado por todos, a sua última cena de arrependimento e morte na forca era um dos pontos altos da apresentação, sempre aplaudida com entusiasmo pelo público.

               Mesmo assim, resolvera que este seria o seu último ano como Judas. Estava envelhecido, e apesar das roupas e da tintura na barba e nos cabelos longos (jamais admitira usar peruca ou barba postiça), sentia que seu aspecto físico começava a destoar do restante do elenco, bem mais jovem do que ele.

               Era difícil e sofrido, mas havia tomado a decisão em caráter irrevogável, resistindo bravamente aos apelos para que continuasse. Esse era o seu gesto derradeiro a confirmar como era grande a sua paixão pelo espetáculo.

               Esmerou-se como nunca para o seu canto do cisne, prometendo a si mesmo que ninguém jamais esqueceria a sua atuação.

               E assim foi. Depois de sua fala final, passou a corda em volta do pescoço e se lançou ao espaço, como fizera tantas vezes antes, encenando o enforcamento de Judas Iscariotes.

               Os aplausos e gritos de “bravo” explodiram em cena aberta, enquanto ele pendia na forca e as luzes pouco a pouco se apagavam para que o drama prosseguisse em outro cenário.

               Só depois do encerramento, enquanto todos se confraternizavam, é que deram pela sua falta, mas pensaram que ele tivesse preferido sair de mansinho, esquivando-se das despedidas.

               Já era muito tarde quando afinal o encontraram dependurado na forca, absolutamente imóvel, com os olhos cerrados e um leve esgar no rosto.

               O caso será investigado pela Polícia Civil da cidade.

               O Sábado de Aleluia amanheceu límpido, com um sol esplendoroso, e logo as ruas da cidade estavam tomadas pelo povo para a não menos tradicional Malhação do Judas.

               É preciso morrer um Judas de vez em quando.

 

 

 

Presente de Páscoa

 

 

 

 

  

               Jose Costa, ou Zsoze Kósta, protagonista do romance Budapeste de Chico Buarque, afirma que o húngaro é a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita”.

               Para nós, latinos, a língua polonesa com sua sopa de letrinhas não fica atrás na dificuldade.

               Se bem que talvez muito em breve o português escrito abandone as inúteis vogais, a persistir o modo de redigir do internetês. Ainda hoje, na sua crônica na Folha de S. Paulo, Tatibitatês, Ruy Castro (que, felizmente, parece recuperado sem sequelas da crise convulsiva), conta sobre a intrigante mensagem que recebeu de uma amiga: “Pq vc tb ñ vai la em ksa nesse fds comer krambola?”. Diz, a final, que entendeu tudo, menos “krambola”.

               Se a língua é uma barreira, a poesia pode ser outra, embora alguns gostem de poesia.

               Nenhum espanto, pois, de que Wisława Szymborska (segundo a excelente tradutora Regina Przybycien pronuncia-se mais ou menos Vissuáva Chembórska) seja pouco conhecida no Brasil, mesmo tendo recebido o prêmio Nobel de Literatura em 1996.

               Até então havia lido alguns poucos poemas dela, que muito me impressionaram, mas faltava-me uma visão geral da sua obra, que não é extensa. Falecida em fevereiro deste ano, aos 88 anos, Wisława Szymborska, ainda segundo Regina Przybycien, sempre foi muito discreta, zelosa de sua vida privada, e nunca se dispôs a desempenhar “[…] o papel de celebridade literária, dessas que aparecem na televisão e opinam sobre os mais diversos assuntos. Também não gosta de dar entrevistas. Uma vez declarou: Minha vida está nos meus versos”.

               Foi, portanto, com doce e expectante estremecimento que tomei nas mãos o pequeno livro de poemas de Wisława Szymborska, ainda mais porque a fotografia da capa — ela por trás da fumaça do cigarro que tem entre os dedos, olhos semicerrados, a xícara de chá ou café defronte — lembrou-me de imediato minha mãe, que também se foi, levada pelo cigarro.

               A começar pelo precioso prefácio da tradutora Regina Przybycien, o livrinho tem me encantado com a seleta de 44 poemas escritos por Wisława Szymborska de 1957 a 2002.

               Um dos poemas mais conhecidos dela é Alguns gostam de poesia, e com esses divido parte do meu encantamento por meio dos três poemas que se seguem (muito difícil escolher entre tantas maravilhas).

               É o meu presente de Páscoa, surrupiado da poeta. Mas quem furta (ou recepta) poemas, tem cem anos de perdão.

 

 

Alguns gostam de poesia

 

Alguns —

ou seja nem todos.

Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.

Sem contar a escola onde é obrigatório

e os próprios poetas

seriam talvez uns dois em mil.

 

Gostam —

mas também se gosta de canja de galinha,

gosta-se de galanteios e da cor azul,

gosta-se de um xale velho,

gosta-se de fazer o que se tem vontade

gosta-se de afagar um cão.

 

De poesia —

mas o que é isso, poesia.

Muita resposta vaga

já foi dada a essa pergunta.

Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso

como a uma tábua de salvação.

 

 

Escrevendo um currículo

 

O que é preciso?

É preciso fazer um requerimento

e ao requerimento anexar um currículo.

 

O currículo tem que ser curto

mesmo que a vida seja longa.

 

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.

Trocam-se as paisagens pelos endereços

e a memória vacilante pelas datas imóveis.

 

De todos os amores basta o casamento,

e dos filhos só os nascidos.

 

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.

Viagens só se for para fora.

Associações a quê, mas sem por quê.

Distinções sem a razão.

 

Escreva como se nunca falasse consigo

e se mantivesse à distância.

 

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,

de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

 

Antes o preço que o valor

e o título que o conteúdo.

Antes o número do sapato que aonde vai,

esse por quem você se passa.

 

Acrescente uma foto com a orelha de fora.

O que conta é o seu formato, não o que se ouve.

O que se ouve?

O matraquear das máquinas picotando papel.

 

 

A alegria da escrita

  

Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?

Vai beber da água escrita

que lhe copia o focinho como papel-carbono?

Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?

Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade

sob meus dedos apura o ouvido.

Silêncio — também essa palavra ressoa pelo papel

e afasta

os ramos que a palavra “bosque” originou.

 

Na folha branca se aprontam para o salto

as letras que podem se alojar mal

as frases acossantes,

perante as quais não haverá saída.

 

Numa gota de tinta há um bom estoque

de caçadores de olho semicerrado

prontos a correr pena abaixo,

rodear a corça, preparar o tiro.

 

Esquecem-se de que isso não é a vida.

Outras leis, preto no branco aqui vigoram.

Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,

e se deixar dividir em pequenas eternidades

cheias de balas suspensas no voo.

 

Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.

Sem meu querer nem uma folha cai

nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.

 

Existe então um mundo assim

sobre o qual exerço um destino independente?

Um tempo que enlaço com correntes de signos?

Uma existência perene por meu comando?

 

A alegria da escrita.

O poder de preservar.

A vingança da mão mortal.

 

 

 

As casas do(s) Tom(s)

 

 

 

                                   […]

 

                                   Quero a casa em lugar alto

                                   Ventilado e soalheiro

                                   Quero da minha varanda

                                   Contemplar o mundo inteiro.

 

                                   Vou fazer o meu retiro

                                   Na grota do chororão

                                   A minha casa será

                                   Uma casa de oração.

 

                                   Vou me esquecer do pecado

                                   Entrar em meditação

                                   E não saio mais de casa

                                   Só saio de rabecão.

 

                                    […]

 

                                   (Tom Jobim, “Chapadão”, excerto)

 

 

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                                   Modestamente, sem o piano soberano,

                                   mas algumas vezes com um charuto,

                                   uma taça de vinho, meus livros,

                                   pedindo um cafezinho,

                                   escrevinhando minhas tolices,

                                   resmungando com o vizinho,

                                   o canto dele na vitrola,

                                   Manuela a ir e vir

                                   derramando seu encanto,

                                   assim também (e cada vez mais)

                                   gosto de estar em casa

                                   bem-composto no meu canto.

 

                                   Será isso a velhice?

                                   As dentaduras duplas que não tenho?

   

 

                              […]

                              Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

                              Teus ombros suportam o mundo

                              e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

                              As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

                              provam apenas que a vida prossege

                              e nem todos se libertaram ainda.

                              Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

                              prefeririam (os delicados) morrer.

                              Chegou um tempo em que não adianta morrer.

                              Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

                              A vida apenas, sem mistificação.

 

(Carlos Drummond de Andrade, “Os ombros suportam o mundo”, excerto)

 

 

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Folha de rosto

 

 

 

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 Edição de José Márcio Castro Alves

 

 

 

                                            Não, este não é o meu rosto,

                                            meu verdadeiro rosto.

                                            Olhem para mim, é assim que eu sou?

                                            Onde está meu verdadeiro rosto?

 

                                            Este rosto parece uma foto descorada

                                            descolada do álbum de família.

                                            Este rosto é do meu avô, do meu pai, do meu tio.

                                            Onde está meu verdadeiro rosto?

 

                                            Talvez tenha se perdido

                                            na poeira das pradarias do Velho Oeste

                                            nas matinês do Cine Theatro São Carlos,

                                            nas noites de lua cheia,

                                            nas serenatas da madrugada,

                                            nos acordes das canções,

                                            em alguma página de livro,

                                            no corpo perplexo da primeira mulher.

 

                                            Pode estar distraído

                                            nas cantinas do Bixiga,

                                            nos arcos da Lapa,

                                            a andar pela praia até o Leblon

                                            após o pôr do sol no Arpoador

                                            enquanto a tarde não parte

                                            na última barca para Niterói.

 

                                            Quem sabe vagueie mano a mano

                                            pelas calles de Buenos Aires

                                            com o fantasma de Borges,

                                            ou se deixou ficar em Alfama, Baixa e Chiado,

                                            Óbidos ou Cascais, na Coimbra do Choupal,

                                            no Escorial, na Plaza de Salamanca,

                                            numa ponte de Veneza,

                                             no Batistério de Florença,

                                            nas colinas de Roma,

                                            nos cafés da Rive Gauche,

                                            naquele longo anoitecer

                                            em que o céu pouco a pouco se tecia

                                            com todos os azuis de Tintoretto.

 

                                            Não, este não é o meu rosto.

                                            Este é o rosto que eu terei um dia.