Posts from maio, 2012

Meus três pais

 

 

  

          Tive a ventura de ter três pais.

          Cada um deles me descerrou partes da alma e do mundo que se juntaram no homem que sou.

          O segundo deles (antes já havia perdido o inesquecível Dr. Brenno Venâncio Martins Sobrinho) partiu ontem, para pescar seus peixinhos com São Pedro (“Entra, Serraglia, você não precisa pedir licença…”), e contar suas histórias deliciosas aos anjos e arcanjos.

          Como se não bastassem seus sete filhos maravilhosos, que ele tanto adorava, Henrique Serraglia resolveu me perfilhar, dizia a todos que eu era o seu “filho espiritual”, seu herdeiro e único sucessor como promotor de justiça. Talvez o maior elogio que recebi em toda minha carreira foi ouvi-lo dizer (e ele não se cansava de repetir isso a todo mundo) que de certa feita ao compulsar os autos de um processo, leu a longa manifestação do Ministério Público e pensou com seus botões: “Uai, não me lembro de quando escrevi isso…”. Só depois verificou que quem assinava ao final era eu, que o havia substituído na promotoria durante o período de férias.

          Muito obrigado ao amigo José Márcio Castro Alves, que fez o lindo vídeo há alguns anos e agora me enviou para postar aqui.

          Doutor Annibal Augusto Gama: trate de se cuidar direito, e não me faça nenhuma falseta que meu coração anda nas trevas e não vai conseguir vencê-las sem a sua luz.

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=Kli0LZmGwz0] 

 

 

 

Não tem preço

 

 

 

               Há pouco mais de quinze dias, vários textos postados abaixo diziam das máquinas de escrever. 

               Pois vejam só a matéria publicada no Jornal de Notícias de Portugal:

 

 

 

 

               Imagino o burocrata franzino e compenetrado, sentado à secretária de mogno, datilografando na máquina Royal a correspondência, os memorandos e documentos da Sociedade Portuguesa de Explosivos. Sim, de explosivos!

               Terá escrito, sub-reptício, com dedos de veludo, alguns dos seus poemas ali, durante o expediente ou mesmo após?

               Sabiam os colegas e superiores hierárquicos do incontido talento daquele homenzinho, que não cabia em si, e um dia explodiria para o mundo? Quanto perigo!

               A máquina de escrever que eu utilizava nos meus idos tempos de escrevente de cartório também era da marca Royal.

               Datilografei, furtivo, alguns versos mancos nela. Mas comigo ninguém corria perigo (a não ser o de tropeçar na bengala dos versos).

 

 

 [youtube=http://www.youtube.com/watch?feature=fvsr&hl=en&v=Ib1rz3XimZY&gl=US]

 

 

 

Promessas da morte

 

 

 

 

 

 

 

 

[…]

“su cuerpo dejará no su cuidado;

serán ceniza, mas tendrá sentido;

polvo serán, mas polvo enamorado.”

(Francisco de Quevedo,  Amor constante más allá de la muerte)

 

“seu corpo deixará, mas não seu cuidado;

será tudo cinza, mas terá sentido;

será pó, mas pó apaixonado.”

(versão pessoal)

 

 

Permanece, todavia, o fato de que, precedidos ou sucedidos, esquecidos ou lembrados, morremos sós e, radicalmente, morremos para nós sozinhos. Talvez não morramos de todo para o passado, mas certamente morremos para o futuro. Talvez sejamos lembrados, mas nós mesmos já não lembraremos. Talvez morramos sabendo todas as coisas do mundo, mas, de agora em diante, nós mesmos seremos uma coisa. Vimos e fomos vistos pelo mundo. Agora o mundo continuará sendo visto, mas nós nos teremos tornado invisíveis. Pontuais ou impontuais, vivemos de acordo com os horários da vida. Mas a morte é o tempo sem horas. Terei mais glória do que a de imaginar que minha morte é única, só para mim, poltrona preferencial no grande teatro da eternidade?

 

               Com o seu livro de ensaios, Este é meu credo, pequeno dicionário da vida, no qual ele discorre em verbetes do A ao Z sobre temas que lhe são caros, lembro-me de Carlos Fuentes, que se foi sentar na poltrona preferencial no grande teatro da eternidade.

               Desse mesmo livro, e do mesmo verbete sobre a morte, extraio a sua ressurreição pela palavra:

 

Na verdade, o espírito está se anunciando em cada palavra que pronunciamos. Não há palavra que não esteja carregada de esquecimentos e lembranças, tingida de ilusões e fracassos. Entretanto, não há palavra que não vença a morte porque não há palavra que não seja portadora de uma renovação iminente. A palavra luta contra a morte porque é inseparável da morte, ela a furta, ela a anuncia, ela a herda… Não há palavra que não seja portadora de uma ressurreição iminente. Cada palavra que dizemos anuncia, simultaneamente, outra palavra que desconhecemos porque a esquecemos e uma palavra que desconhecemos porque a desejamos. O mesmo acontece com os corpos, que são matéria. Toda matéria contém a aura do que antes foi e a aura do que será quando desaparecer. Vivemos, por isso, uma época que é a nossa, mas somos o espectro de outra época passada e o anúncio de uma época futura. Não nos desprendamos dessas promessas da morte.

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=ri8tL_WXeNQ]

 

 

 

Casinha pequenina

 

 

 

 

 

                                                                        Que importa a casa

                                                                        de telha-vã

                                                                        se porta adentro

                                                                        a vida afora

                                                                        não for em vão?

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=xMhN77ZA3E8]

 

 

 

Amanhecente

 

 

 

 

                                                                           Amanhecerá

                                                                           e a manhã será.

                                                                           Amanhã seremos

                                                                           talvez serenos.

                                        

 

 

Não tô, não vou!

 

 

 

 

 

               Dorival Caymmi é uma figura singular na música brasileira, com estilo inconfundível e inimitável, incluindo a voz e o jeito de cantar, como assinala Chico Buarque no vídeo abaixo.

               Rivalizou com o igualmente grande Ary Barroso compondo pérolas que se tornaram clássicos definitivos como O Samba da Minha Terra, Doralice, Saudade da Bahia, O que será que a baiana tem?, Você já foi na Bahia?, Marina, João Valentão, Só Louco, Sábado em Copacabana, Nem Eu, e tantos outros, além das antológicas baladas praieiras, celebrando o mar e os pescadores que nele se aventuram. A versão em inglês da canção Das Rosas (And Roses and Roses) foi gravada por diversos astros internacionais e se transformou num standard à altura de Cole Porter e dos irmãos Gershwin.

               Filho de uma baiana negra e neto de imigrantes italianos por parte de pai, tornou-se no imaginário popular o arquétipo da Bahia e do seu povo, embora desde a década de 1930, quando pegou um ita no norte e veio no Rio morar, tenha se fixado na Cidade Maravilhosa, até morrer na glória de seus 94 anos muito bem vividos, deixando-nos, além da sua obra extraordinária, o legado dos filhos Nana, Dory e Danilo, artistas excepcionais, como ele e a sua amada Stella Maris (Adelaide Tostes).

               Fez pouco mais de 100 canções, o que pode ser considerado pouco para o seu enorme talento, e talvez por isso tenha ganhado a fama de preguiçoso, que ele assumia e até gostava de propagar. Consta que demorou nove anos para concluir a estrofe final de João Valentão: ”E assim adormece este homem / Que nunca precisa dormir pra sonhar / Porque não há sonho mais lindo / Do que sua terra não há”. Valeu cada minuto de espera!

               A malemolência e a brejeirice sapientes, de quem soube sorver a vida como um refinado connaisseur, estão deliciosamente estampadas na canção Maricotinha, cuja melodia e letra, na sua singeleza circular, são um primor de savoir-faire e savoir-vivre.

               Que maravilha saber — e poder — dizer sem dores de consciência: Não tô, não vou!

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=-9R3HRPP4oQ]

 

 

                                                                          Maricotinha

                                                                           

                                                           Se fizer bom tempo amanhã

                                                           Se fizer bom tempo amanhã

                                                           Eu vou!…

                                                           Mas se por exemplo chover

                                                           Mas se por exemplo chover

                                                           Não vou!…

 

                                                           Diga a Maricotinha

                                                           Que eu mandei dizer

                                                           Que eu não tô

                                                           Não tô!

                                                           Não vou!

                                                           Não tô!

                                                           Não vou!

 

                                                           Se fizer bom tempo amanhã

                                                           Se fizer bom tempo amanhã

                                                           Eu vou!

                                                           Mas se por exemplo chover

                                                           Mas se por exemplo chover

                                                           Não vou!…

 

                                                           Uma chuvinha, redinha

                                                           Cotinha

                                                           Aí, piorou!

                                                           Nem tô!

                                                           Nem vou!

                                                           Nem tô!

                                                           Nem vou!

 

                                                           Se fizer bom tempo amanhã

                                                           Se fizer bom tempo amanhã

                                                            Eu vou!

                                                           Mas se por exemplo chover

                                                           Mas se por exemplo chover

                                                           Não vou!…

 

                                                           Diga a Maricotinha

                                                           Que eu mandei dizer

                                                           Que eu não tô, hum!

                                                           Não tô!

                                                           Não vou!

                                                           Não tô!

                                                           Não vou!

 

 

(A rima de “bom tempo” com “por exemplo” é exemplar…)

 

 

 

Tardes de maio

 

 

 

 

                        Já de algum tempo, a estação do ano que mais me agrada é o outono, em que estamos agora, segundo o calendário.

                        É que abaixo da linha do Equador, além de se permitirem todos os pecados, as estações se enroscam e confundem. Parece, às vezes, que continuamos em pleno verão, com o calorão e as águas de março jobinianas se estendendo além do fim do caminho e da enchente das goiabas do dia de São José.

                        Mesmo assim, por aqui os meses de abril e maio são para mim os mais bonitos do ano, com a luminosidade de seus límpidos céus azuis.  As temperaturas arrefecem, os dias se encurtam e nos enternecem com seus poentes e alvoreceres. Com aquele abuso de lua do sábado passado então, explode coração!

                        Da primeira minha vez em que estive na Europa, peguei o começo do outono em Paris, que é muito mais do que se diz ou possa dizer, mas o outono no Rio também é indizível.

                        O outono é considerado por muitos uma estação melancólica, com seus entretons de marrons e vermelhos, as árvores que se despem e nos acenam seus galhos secos como se dessem adeuses, até o bulício da primavera, quando reflorescerão e veramente árvores serão.

                        “Abril é o mais cruel dos meses”, diz o conhecido e sempre lembrado verso do poeta norte-americano T. S. Eliot, que foi também crítico, ensaísta e dramaturgo, e uma das maiores referências literárias para a sua própria geração e para todas as demais que se sucederam.

                        Sua obra, permeada da tradição cultural do passado, é ao mesmo tempo clássica e moderna, na busca do sentido do tempo presente, em que se encerra o porvir.

                        Assim também o outono transita do verão que se foi para o inverno que já vem, com a promessa da primavera que virá.

                        Se no hemisfério norte abril é primavera, como pode parecer o mais cruel dos meses para o poeta? Talvez por isso mesmo.

                        Não tentemos explicações racionais para os poemas, que têm uma lógica própria, ou lógica alguma.

                        O poema, como um quadro, é feito para sentir e não para ser entendido ou explicado, e talvez o sintamos de um modo inteiramente diverso do autor, como dizia Pessoa.

                        Se abril é o mais cruel dos meses para Eliot, o nosso Drummond carrega consigo uma tarde de maio, num dos mais belos versos já escritos em língua portuguesa, ou em qualquer outra língua:

 

“Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,

 assim de levo comigo, tarde de maio,”.

 

 

 

Ai se eu me pego!

 

 

 

                                                            Vá catar-se,

                                                            é proibido

                                                            calar catarse.

 

 

 

 

 

Plenilúnio

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=T91nMhlShv0]

 

 

 

                                                    A lua tua

 

 

                                                                                                              Para a Manuela

 

 

                                               Bailarina nua

                                               flutua e ilumina

                                               teu riso de menina

                                               meu céu e meu chão

                                               de estrelas.

 

                                               Antonios e Marias

                                               gregos e troianos

                                               russos e americanos

                                               Oropa França e Bahia

                                               querem só pra si

                                               a luz serena e fria.

 

                                               Mas não é deles

                                               nem de São Jorge

                                               ou do dragão

                                               da cidade

                                               ou do sertão.

 

                                               É tua

                                               toda tua

                                               apenas tua

                                               que te dei a lua

                                               e com ela

                                               meu coração.

 

 

 

Vamos?

 

 

 

                              Abril já partiu, e cá no Brasil,

                              longe de Paris, sorrio feliz:

                              Outono no Rio.

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=r8t9jtwO-Bk]