Posts from julho, 2012

Agreste

 

 

 

                                                            Secura de ternura

                                                            abeberar-se

                                                           na superfície sensível

                                                           das coisas e criaturas.

 

 

 

A arte do encontro II

 

 

 

© Foto de Fernando Duarte. Tom Jobim e Elis Regina. Los Angeles, 1974.

 

 

          Em 1974, o fotógrafo Fernando Duarte registrou em filme o histórico encontro entre Tom Jobim e Elis Regina em Los Angeles, durante a gravação do disco “Elis & Tom”, nos estúdios da MGM. Ao lado de Mário Carneiro, Fernando Duarte é considerado um dos mais importantes fotógrafos do cinema brasileiro, um dos responsáveis pela inovação da fotografia que predominou no Cinema Novo.

          Não existe uma só faixa do disco que não seja antológica:

 

1.       Águas de Março

2.       Pois é

3.       Só tinha que ser com você

4.       Modinha

5.       Triste

6.       Corcovado

7.       O que tinha de ser

8.       Retrato em branco e preto

9.       Brigas, nunca mais

10.     Por toda a minha vida (Exaltação ao amor)

11.     Fotografia

12.     Soneto de separação

13.     Chovendo na roseira

14.     Inútil passagem

 

          Tenho até hoje, e conservo como relíquia, o LP de vinil original.

 

 

 

 

          No vídeo abaixo, apesar da precariedade das imagens, dá para sentir o astral que reinava nos ensaios e no estúdio, além de alguns trechos das gravações, de que só participaram feras, como Aluisio de Oliveira (produtor), César Camargo Mariano (então casado com Elis), Bill Hitchcock, que aparecem no vídeo.

          

 

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A Bella era a fera…

 

 

 

A galharda “galhada” não era mera coincidência…

 

 

Chifre é vida ou Carta aberta ao rapaz do “Crepúsculo”

 

 

                                                                                                                                                                                 

Xico Sá  (escritor e jornalista, colunista da Folha de S. Paulo, é autor de “Chabadabadá – As Aventuras do Macho Perdido e da Fêmea que se Acha” e mais 10 livros. Na TV, participa do programa “Saia Justa”, no GNT)

 

  

Caro amigo Robert Pattinson, o motivo desta é tão-somente levar algum afago, um conforto de um especialista, um cara do ramo.

O chifre é como a morte. É para todos, indiscriminadamente.

Confesso. Deu dó desse moço, pobre moço, exposto ao sol — nada crepuscular — do noticiário com a sua inquestionável dor amorosa.

O menino Robert Pattinson, 26, que se diz traído pela Kristen Stewart, 22. Um até então exemplar e romântico casal de Los Angeles.

O casal da saga “Crepúsculo”. Sim, o amor sempre acaba em um final de tarde, como senteciava Paulo Mendes Campos.

Por isso prefiro ver o mundo daqui da janela do oitavo andar do edifício Alfredo Bandeira, na rua da Aurora, a rua da luz mais bonita do mundo, segundo Gilberto Freyre. Crepúsculo, estou fora.

Deu dó, mas também temperou minha ciência antiga: o chifre nasceu para todos. É o castigo mais democrático depois da morte. Só há isonomia por parte da velha da foice e da maldição do corno.

Para todos e todas.

Muita calma, caro Robert. Não será o último objeto pontiagudo que será parafusado na fronte do artista. Viver é levar essa bola nas costas.

Como diz a plaquinha do boteco: “Chifre é coisa para homem, boi usa de enxerido”.

Até os 30 anos dói mais mesmo, caro Robert. Depois, dói de novo, mas com o tempo vai perdendo o sentido.

Não sei para ti, que é um galã, um cara orgulhoso e bonito. Taí mais uma vantagem de ser feio, digo, mal-diagramado pela mãe natureza. O corno feio sofre menos. O corno feio é um agradecido de nascença.

Se for o chifre de uma mulher bonita, minha nossa, temos sempre uma filosofia de consolação: já estávamos no lucro. Nem a merecíamos. Portanto nada aconteceu de tão grave.

Repito outra vantagem, mantra desse cronista discípulo de Serge Gainsbourg: a beleza é passageira, a feiura, graças a Deus, é para sempre.

 

 

 

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De ouvido

 

 

 

 

 

 

                                                            Quando entra pé ante pé

                                                            a poesia não tem chave

                                                            que abre a porta

                                                            não tem boca

                                                            nem tem voz

                                                            que fala a nós

                                                            não tem nariz de cera

                                                            para nos aprazer ou entreter.

 

                                                            Na calada da noite

                                                            a poesia é toda ouvidos

                                                            para reverberar a nossa voz

                                                            se nada temos para nos dizer (a sós)

                                                            todos ouvidos são poucos

                                                            todos olvidos são moucos.

 

 

 

Trabalhar como?

 

 

 

 

 

 

 

 

                                       LIBERDADE

 

                                                                                          Fernando Pessoa (Cancioneiro)

 

                              Ai que prazer

                              não cumprir um dever.

                              Ter um livro para ler

                              e não o fazer!

                              Ler é maçada,

                              O sol doira sem literatura.

                              O rio corre bem ou mal,

                              E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal

                              como tem tempo, não tem pressa…

 

                              Livros são papéis pintados com tinta.

                              Estudar é uma coisa em que está indistinta

                              A distinção entre nada e coisa nenhuma.

 

                              Quanto melhor é quando há bruma.

                              Esperar por D. Sebastião,

                              Quer venha ou não!

                              Grande é a poesia, a bondade e as danças…

                              Mas o melhor do mundo são as crianças,

                              Flores, música, o luar, e o sol que peca

                              Só quando, em vez de criar, seca.

 

                              E mais do que isto

                              É Jesus Cristo,

                              Que não sabia nada de finanças,

                              Nem consta que tivesse biblioteca…

 

 

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A arte do encontro I

 

 

 

Dorival

 

  

 

 

Tive a sorte existencial de nada ter me atrapalhado (pais, religiões, faculdades, essas coisas) e nunca ter sido obrigado a pensar no que ia ser quando crescesse. Pois, ainda menino, trabalhava na redação de O Cruzeiro (uma saleta de 20 metros quadrados que em dez anos seria a redação da maior revista do Brasil – 750 000 exemplares) com apenas três funcionários: Accioly Netto, diretor, Edgard de Almeida, paginador (hoje seria designer), e eu, contínuo, entregador, resenhador, colador, factótum, em suma.

Foi aí que vi entrar todo mundo e seu pai (Gago Coutinho, que tinha cruzado o Atlântico antes de Lindbergh, Manso de Paiva, assassino do candidato a ditador Pinheiro Machado, e um jovem mulato recém-chegado da Bahia).

Não encontrando quem procurava e vendo as figuras que eu recolava, esse jovem me disse: “Você ainda vai colar aí muito retrato meu”.

Tempo depois ele, Caymmi, me diria que fui a primeira pessoa que ele conheceu ao chegar ao Rio – glória da qual não abro mão. A vida nos juntou longos anos, até que o tempo nos afastou, nos esgarçou. A foto testemunha quando estivemos juntos em Itapoã (quase intocada), pra onde ele voltava pela primeira vez depois de muitos anos.

Mas esta nota não é pra lembrar Dorival e sua existência incomparável. É para lembrar Stela Maris, sua sempiterna companheira. A voz extraordinária de Stela, que me chegava orvalhada pela neblina da madrugada, nas ondas da Rádio Tupi fechando seu programa. A voz tonitruante de Caymmi vinha acompanhada pela voz dela, pelo contracanto inesquecível de Stela, na emoção do acalanto que encerrava o dia: “Boi, boi, boi da cara preta…”.

 

Millôr Fernandes

 

 

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Os Sete Homens de Ouro

 

 

 

 

               Eram apenas sete garotos que amavam os Beatles (mais) e os Rollig Stones.

               Impossível traduzir o que significava para aqueles jovens de então ter um grupo e uma música com que se identificavam totalmente. E também com as roupas e os cabelos, que procuravam imitar. Aqueles com cabelos um pouco mais crespos ou ondulados submetiam-se durante a noite ao processo da touca feita das meias de nylon maternas, das irmãs ou das namoradinhas, para alisá-los e lhes dar a forma aproximada dos garotos de Liverpool. Aliás, as meninas faziam o mesmo para alisar os cabelos. A touca de nylon era a chapinha de então.

               Pouco a pouco as roupas foram se despojando e colorindo, as bocas de sino das calças se alargando a limites inconcebíveis, os cabelos se alongando, barbas, bigodes e outros adereços pilosos sendo cultivados.

               Era verdadeiramente libertador, apenas com três guitarras (baixo, base e solo) e uma bateria, formar um “conjunto” (como se dizia naqueles tempos) à semelhança dos Beatles. Quase todas as turmas formaram o seu, para infernizar a vida dos pais e vizinhos com os intermináveis ensaios para uma futura apresentação, que quase nunca aconteceu.

               Gostavam muito também de futebol, dos bailinhos e bailes da vida, regados a cuba-libre ou outras bebidas mais amargas, de viajar, amavam e namoravam de um jeito absolutamente insólito para os dias de hoje.

               O nome não menos insólito (e até mesmo kitisch) que se deram, “Os Sete Homens de Ouro”, era referência a um blockbuster da época, com esse título, a que assistiram juntos e no qual um grupo realizava um roubo fenomenal. Mais ou menos como os “Onze Homens e um Segredo” de agora.

               Como os “Três Mosqueteiros”, eles não eram apenas sete. Havia vários D’artagnans, tão amigos quanto, que participavam das aventuras e peripécias.

               Ao contrário do grupo do filme, nenhum se tornou delinquente, mas advogados, administradores de empresa, médicos, engenheiros, arquiteto, jornalista e radialista.

               Logo depois dos Beatles e dos Rolling Stones, da Jovem Guarda, vieram as faculdades, os Centros Acadêmicos, o enfrentamento da ditadura militar, os festivais de MPB, o teatro.

               E eles passaram a amar (talvez mais ainda) Tom Jobim, Vinicius, Chico Buarque, Caetano, Gil, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Elis, Nara Leão, Gal, a turma toda da Bossa Nova e da Velha Guarda, Noel, Cartola, Zé Keti, Adoniran, Nelson Cavaquinho e tantos outros.

               Alguns partiram, os olhos ficaram cansados ou míopes, os cabelos embranqueceram ou também se foram. Outros vieram: filhos, noras, genros, netos…

               Foi há muito tempo…

               Foi ontem…

 

 

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Quando a Manuela Sorri

 

 

 

 

  

                                        O riso da Manuela

                                        quase sempre é conciso

                                        não vai além do preciso

                                        monossílabo sorriso

                                        de monalisa menina

                                        somente fulgente aviso

                                        que o mundo sorri por ela.

 

 

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De mentira

 

 

 

 

 

 

“Eu digo que para que Cervantes contasse sua vida e eu a explicasse e comentasse nasceram Don Quixote e Sancho”

(Miguel de Unamuno)

 

 

 

               Depois de abrilhantar a Flip, o grande escritor catalão Enrique Vila-Matas foi até São Paulo protagonizar a Sabatina Folha, realizada ontem, 10 de julho, no auditório do MAM. A resenha está publicada na edição de hoje do jornal.

               Discorreu sobre muitas coisas, desde o momento atual da Espanha, até os temas recorrentes em sua obra, sempre associada ao que ele denomina de território da negatividade: “Franz Kafka dizia que o positivo nos é dado na vida, e que nos cabe investigar o negativo”. “Existem dois modos de ver o mundo. Um é: o mundo é assim e não se pergunte a respeito. O outro, de que estamos em um planeta equivocado, não nos adaptamos e somos melancólicos buscando algo que perdemos. As duas maneiras são válidas, mas, para mim, interessa mais não só contar a história, mas construí-la de forma diferente. É preciso interpretar, investigar.”

               Revelou ainda que seu livro mais recente, Ar de Dylan, foi concebido durante um passeio pela avenida Paulista há pouco mais de um ano e que agora está pesquisando a origem da palavra Higienópolis: “Me disseram se tratar de invenção. Nada é inventado por acaso. Minha maneira de contar histórias pode parecer irreal, mas nunca é mentira. Não vejo graça em mentir.”

               De tudo o que falou, eis o ponto que desde sempre me instiga: a ficção é uma mentira? O bom escritor há de ser um bom mentiroso?

               E podemos ir mais adiante: a arte, em geral, é uma mentira?

               Fiquemos com a pintura. Não importa a escola, clássica, realista, romântica, impressionista, expressionista, surrealista, abstrata, ou qualquer outra. O que o pintor nos exibe na tela, por mais minucioso ou distorcido, é uma mentira, já que de um modo ou de outro se trata de mera reprodução ou representação de uma realidade, externa ou interna?

               Vejam as célebres obras de Magritte “Isto não é um cachimbo” e “Isto não é uma maçã”.

               Segundo os Evangelhos, ao interrogar o Cristo, Pilatos teria indagado: “O que é a verdade?”, e sem obter a resposta, voltou-se aos acusadores e lhes disse: “Eu não acho nEle crime algum.” Se isso era verdade, mesmo assim lavou as mãos e permitiu que Ele fosse condenado e crucificado.

               Na pergunta de Pilatos, está o seu contrário também: “O que é a mentira?”

               Voltando à literatura, quais os limites da realidade (ou do que entendemos como tal) e da ficção, qual a diferença entre as pessoas que conhecemos ao longo de nossa vida e as personagens com que convivemos nos livros?

               Como é sabido, e qualquer dicionário explica, pessoa e personagem derivam do latim persona, ae, que era a antiga máscara de teatro utilizada pelos atores em cena. Assim, pelo menos do ponto de vista etimológico, não haveria distinção substancial entre uma e outra. Jung utilizou-se do vocábulo persona para qualificar a personalidade que o indivíduo apresenta aos outros (e, muito provavelmente, para si mesmo) como real, mas que seria uma variante muito diferente da verdadeira.

               Será correto, então, afirmar que o chamado mundo real e suas pessoas existem de modo mais efetivo ou concreto do que o mundo literário e suas personagens?

               Quem é mais real e verdadeiro, Fernando Pessoa, ele mesmo, ou Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares?

               Quem terá marcado mais fortemente a nossa existência ou a construção da nossa persona junguiana: nossos familiares, amigos de infância e da vida adulta, amantes, aquelas inúmeras pessoas sem rosto que perpassam nossa trajetória, ou as personagens que nos encantam, comovem e acompanham, como O Pai Goriot, os Irmãos Karamázov, David Copperfield, Pedrinho e Narizinho, Os Três Mosqueteiros e D’Artagnan, Mersault, Jacinto e Zé Fernandes, Brás Cubas, Quincas Borba, Bentinho, Capitu, Ana Karênina, Madame Bovary (“c’est moi”), cujos rostos que supomos nunca nos saem da lembrança?

               Quem mais nos fascina, emociona, atemoriza ou é mais relevante na nossa vida: os animais e as feras que vemos nas ruas ou enjaulados no zoológico ou Moby Dick, King Kong, os Bichos de Miguel Torga, a cadela Baleia, o burrinho pedrês Sete-de Ouros?

               É possível conceber a vida e o homem sem Hamlet, Otelo, Macbeth, Don Quixote e Sancho Pança?