Posts from julho, 2012

De mentira

 

 

 

 

 

 

“Eu digo que para que Cervantes contasse sua vida e eu a explicasse e comentasse nasceram Don Quixote e Sancho”

(Miguel de Unamuno)

 

 

 

               Depois de abrilhantar a Flip, o grande escritor catalão Enrique Vila-Matas foi até São Paulo protagonizar a Sabatina Folha, realizada ontem, 10 de julho, no auditório do MAM. A resenha está publicada na edição de hoje do jornal.

               Discorreu sobre muitas coisas, desde o momento atual da Espanha, até os temas recorrentes em sua obra, sempre associada ao que ele denomina de território da negatividade: “Franz Kafka dizia que o positivo nos é dado na vida, e que nos cabe investigar o negativo”. “Existem dois modos de ver o mundo. Um é: o mundo é assim e não se pergunte a respeito. O outro, de que estamos em um planeta equivocado, não nos adaptamos e somos melancólicos buscando algo que perdemos. As duas maneiras são válidas, mas, para mim, interessa mais não só contar a história, mas construí-la de forma diferente. É preciso interpretar, investigar.”

               Revelou ainda que seu livro mais recente, Ar de Dylan, foi concebido durante um passeio pela avenida Paulista há pouco mais de um ano e que agora está pesquisando a origem da palavra Higienópolis: “Me disseram se tratar de invenção. Nada é inventado por acaso. Minha maneira de contar histórias pode parecer irreal, mas nunca é mentira. Não vejo graça em mentir.”

               De tudo o que falou, eis o ponto que desde sempre me instiga: a ficção é uma mentira? O bom escritor há de ser um bom mentiroso?

               E podemos ir mais adiante: a arte, em geral, é uma mentira?

               Fiquemos com a pintura. Não importa a escola, clássica, realista, romântica, impressionista, expressionista, surrealista, abstrata, ou qualquer outra. O que o pintor nos exibe na tela, por mais minucioso ou distorcido, é uma mentira, já que de um modo ou de outro se trata de mera reprodução ou representação de uma realidade, externa ou interna?

               Vejam as célebres obras de Magritte “Isto não é um cachimbo” e “Isto não é uma maçã”.

               Segundo os Evangelhos, ao interrogar o Cristo, Pilatos teria indagado: “O que é a verdade?”, e sem obter a resposta, voltou-se aos acusadores e lhes disse: “Eu não acho nEle crime algum.” Se isso era verdade, mesmo assim lavou as mãos e permitiu que Ele fosse condenado e crucificado.

               Na pergunta de Pilatos, está o seu contrário também: “O que é a mentira?”

               Voltando à literatura, quais os limites da realidade (ou do que entendemos como tal) e da ficção, qual a diferença entre as pessoas que conhecemos ao longo de nossa vida e as personagens com que convivemos nos livros?

               Como é sabido, e qualquer dicionário explica, pessoa e personagem derivam do latim persona, ae, que era a antiga máscara de teatro utilizada pelos atores em cena. Assim, pelo menos do ponto de vista etimológico, não haveria distinção substancial entre uma e outra. Jung utilizou-se do vocábulo persona para qualificar a personalidade que o indivíduo apresenta aos outros (e, muito provavelmente, para si mesmo) como real, mas que seria uma variante muito diferente da verdadeira.

               Será correto, então, afirmar que o chamado mundo real e suas pessoas existem de modo mais efetivo ou concreto do que o mundo literário e suas personagens?

               Quem é mais real e verdadeiro, Fernando Pessoa, ele mesmo, ou Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares?

               Quem terá marcado mais fortemente a nossa existência ou a construção da nossa persona junguiana: nossos familiares, amigos de infância e da vida adulta, amantes, aquelas inúmeras pessoas sem rosto que perpassam nossa trajetória, ou as personagens que nos encantam, comovem e acompanham, como O Pai Goriot, os Irmãos Karamázov, David Copperfield, Pedrinho e Narizinho, Os Três Mosqueteiros e D’Artagnan, Mersault, Jacinto e Zé Fernandes, Brás Cubas, Quincas Borba, Bentinho, Capitu, Ana Karênina, Madame Bovary (“c’est moi”), cujos rostos que supomos nunca nos saem da lembrança?

               Quem mais nos fascina, emociona, atemoriza ou é mais relevante na nossa vida: os animais e as feras que vemos nas ruas ou enjaulados no zoológico ou Moby Dick, King Kong, os Bichos de Miguel Torga, a cadela Baleia, o burrinho pedrês Sete-de Ouros?

               É possível conceber a vida e o homem sem Hamlet, Otelo, Macbeth, Don Quixote e Sancho Pança?