A arte do encontro IV

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

               Vinicius de Moraes, sempre tão generoso e afável, tinha lá seus humanos deslizes.

               Antes de cometer a célebre frase — de que se arrependeria publicamente mais tarde — “São Paulo é o túmulo do samba”, havia criticado em um artigo os erros de português de “Samba do Arnesto”.

               Adoniran Barbosa nunca se importou com isso, seguiu fazendo seus sambas paulistanos com um idioma típico, roseano (antes do próprio), suas marchinhas e canções, além das sacadas como o “Charutinho”, cujo phisyque du role incorporou ao compositor.

               Até que um dia, de repente, não mais do que de repente, Aracy de Almeida, então morando e trabalhando em São Paulo na TV Record, passou ao colega Adoniran um papel que recebera de Vinicius com um poema e atribuições plenipotenciárias: “faça o que quiser com ele”.

               O poema — na esteira da onda existencialista e do livro de Françoise Sagan — se tornou a letra do antológico samba-canção “Bom dia, tristeza”, composto por Adoniran inteiramente fora do padrão melódico dos seus sambas paulistanos, como a dar a resposta do seu imenso talento.

               O diplomata Vinicius estava em Paris, integrando a delegação brasileira na Unesco, e de lá acompanhou o repentino e estrondoso sucesso da canção, gravada inicialmente por Aracy Cardoso e em seguida por outras cantoras consagradas, como Elizeth Cardoso e Maysa (esta encarnava como ninguém a personagem do poema).

               Adoniran achava que a melhor gravação e interpretação de todas era a de Mauricy Moura, ele próprio gravou “Bom dia, tristeza” mais de uma vez e chegou a incluir uma introdução falada bem ao seu estilo (seria uma réplica bem-humorada a Vinicius?): “A tristeza é um bichinho que para roer está sozinho. E como rói, a bandida. Parece rato em queijo parmesão”.

               Talvez tenha sido a arte do desencontro (não encontrei nenhuma foto dos dois juntos).

 

 

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3 comentários

  1. André
    17/08/12 at 16:23

    Gama, essa música é uma das mais dilacerantes que eu já ouvi em toda minha vida… é de fazer chorar mesmo.
    Conheço ambas as gravações citadas, mas vale ressaltar que Wilson Miranda, Sílvia Teles e Maria Betânia também a gravaram – esta última, num arranjo que lembra o blues.
    Repara só no lamento da orquestra de cordas na gravação do Mestre Adoniran com Roberto Ribeiro… muito bonito!
    Abraços,
    André

  2. brenno
    21/08/12 at 14:34

    Essa canção tem a ousadia de embelezar a tristeza, imprescindível parceira da boemia, a única musa inspiradora que não é bela, faceira e cheia de graça… mas inevitável ingrediente nas poções mágicas da poesia e das canções.

  3. 22/08/12 at 0:27

    Fico admirada com o poeta Brenno. Lindo o que escreveu como comentário.

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