Primeiro a obrigação, depois a devoção. Cumprida a primeira, resolvo aproveitar o resto do dia na Mostra dos Impressionistas, no belíssimo prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, bem no miolinho da velha cidade, ou o que restou dela.
Após a chuva da noite anterior, São Paulo amanheceu cinza, com um vento cortante e um frio de rachar. Eu apenas com um paletó de lã fina. Apanho emprestado um cachecol da Júlia, e lá me vou, um estrangeiro nessa São Paulo parisiense.
Defronte do Centro Cultural, a fila dá voltas no quarteirão. De duas a três horas de espera para entrar, me dizem.
Estou prestes a desistir. Entro pela porta ao lado na cafeteria do saguão e avisto um pequeno cartaz com uma seta indicativa de “fila preferencial” para idosos e pessoas com deficiência, com direito a um acompanhante. Na fila, apenas cinco senhorinhas, muito bem vestidas, joviais, rindo e conversando animadamente. Meio cabreiro, num ímpeto de ousadia e despudor, decido invocar pela primeira vez os meus direitos de idoso (é a mãe!) e entro na fila, atrás das garotas. Por via das dúvidas, saco minha carteira de identidade de advogado sênior e fico com ela na mão.
Em menos de cinco minutos as moçoilas são convidadas a entrar, recebendo um pequeno carimbo no dorso da mão. Avanço junto e o porteiro, sem bem me olhar ou esperar pela resposta, enquanto pespega o carimbo na minha mão esquerda, diz: “O senhor está com elas?”
Alvíssaras! (Que consolo…)
Fico mais de três horas percorrendo os andares da exposição, de início próximo das minhas companheiras, mas logo elas me ganham a dianteira e somem, serelepes.
A exposição está muito bem montada, com boas informações sobre a época, os pintores e os quadros, um ótimo audiovisual de pouco mais de cinco minutos, narrado pelo grande Antônio Abujamra.
Vários quadros de Monet (em diferentes fases, com predominância da inicial), Renoir, Cézanne, Pissarro, Sisley, Manet (O tocador de pífaro se destaca), Gauguin, Degas e suas bailarinas, dois ou três de Toulouse-Lautrec, apenas um Van Gogh (“O Salão de Dança em Arles”). Há diversos outros, são mais de oitenta obras do extraordinário acervo do Museu D’Orsay!
Ao sair, enquanto tomo um café, com os olhos transbordantes dos encantos vistos, ocorre-me que se minha alma é barroca, meus olhos são impressionistas. Meus sonhos, muita vez, são surrealistas, e meu coração, quiçá, seja romântico.
O frio, a tarde caindo, as sensações borbulhando, fizeram-me recordar a exposição de Monet a que fui muitos anos atrás, no MASP. Após a visita, já de noite, enquanto caminhava pela Paulista, me veio inteiro à cabeça, em borbotões , este poeminha de circunstância, que finalizei e escrevi logo em seguida no guardanapo de um bar próximo, onde entrei para tomar um uísque.
MONET no MASP
A meu pai, companheiro de viagem
Rever Monet
nunca é coisa vã
mesmo para quem
já esteve no Marmottan
cujo acervo — zasp —
cruzou o Atlântico
e se alojou no nosso Masp.
Ninfeias e glicínias
A ponte japonesa
A aleia das roseiras
O salgueiro chorão
O jardim em Giverny
estão logo ali
quase ao alcance da mão
e mais outros quadros
de amigos do artista
que também me encantam a vista.
São Paulo amanheceu
com ar europeu
invernal, chuvosa, vestida de gris,
mas nem mesmo
a capa de gabardine
me redime
da saudade de Paris.
Sombra fugidia
caminho incauto
pela noite vazia
com os olhos replenos
de tanta cor e luz
e num bar de esquina
antes que se apague
a vaga estrela fria
brindo ao companheiro de viagem
que pela vida me guia
muito além das paragens
de Oropa, França e Bahia.
Minha mão de idoso (segundo o carimbo afirma)
Coração de sentir.
Cáspite! Eu sabia que esse dia haveria de chegar, tio! Comportaste-te como um biltre, um patife, um doidivanas… reconhecendo sua gereátrica condição, em visível desalinho com nossos princípios de jovens anciãos, preconceituosos que somos quantos às benesses da melhor idade.
Espero que, pelo menos, tenhas tido o despudor de colher em teus apontamentos o endereço do logradouro onde habitam as gentis moçoilas, a fim de brindarmo-las com romântica serenata, em agradecimento aos seus valiosos préstimos.
(putzgrila… e com carimbo!)
Quanto à crônica e ao poema… sem censuras: ambos preciosos!
Ah… devolva o cachecol!
fiz a mesma visita que vc tão ricamente descreve.Só agora com seus comentários fui capaz de ver com os meus olhos,o que os seus descrevem com tanta maestria!PARABÈNS!!!
Eu queria falar da beleza de seu poema (zasp e Masp, gabardine e redime são rimas cultivadas), mas o comentário de Brenno Augusto me tirou a seriedade. Inspiradíssima espinafração! ‘Biltre’ não tem preço.
Beijocas!
Selminha, e o Brenno nada sabe daquela nossa conversa sobre palavras de antanho que sumiram do mapa. Não tive tempo de contar para ele, que é um mestre nesse linguajar.
Mas isso não é vantagem alguma porque ele é daqueles tempos, contemporâneo do professor Bartholomeu Guimarães, conhece?
Gama, imagino a visão que seus olhos tiveram durante sua visita a essa exposição em SP.
O poema e a crônica são de uma sensibilidade imensas, assim como vc.
Abraço,
André
“Inimigos… sei que os tenho, posto não os haja procurado. Porém, se me for dado encontrá-los, exterminá-los-ei a um e um, se me não engano!” (crédito da lavra da oração a ser atribuído)
Doutor… aqui dá de tudo!
Poema lindo, Antonio! E que bela foto! Tem umas telas que a gente fica olhando, olhando…e dá vontade de ficar olhando prá sempre. Monet é assim.
Lindo! Queria estar junto! Mas meus olhos andam vendo outras coisas do outro lado do oceano. Eles estao louquinhos para ve-lo de volta. Ti doro! beijo