Posts from dezembro, 2012

Clareai, Clarice

 

 

 

 

 

O Nascimento do Prazer (excerto)

 

 

“O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida – e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom ― como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos ― pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.”

 

 

Entender é limitado

 

 

“Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.”

 

(Clarice Lispector, in “A descoberta do mundo”, crônicas)

 

 

 

“Quer me mandar algumas coisas? Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal minhas palavras. Você tem peixinhos nos olhos, você é bissexta. Faça versos, Clarice, e se lembre de mim. Você nunca é falante, barulhenta. O que você escreve nunca dói nem fere os ouvidos. Você sabe escrever baixo. E sua assinatura, Clarice, é você inteirinha: Clara…Clarinha…Clarice.” 

(Manuel Bandeira)

 

 

Tragando a vida

 

 

Foto de Wanderley Almeida

 

 

“Cem anos é uma bobagem, depois dos 70 a gente começa a se despedir dos amigos. O que vale é a vida inteira, cada minuto também, e acho que passei bem por ela.”

 

“A vida não é justa. E o que justifica esse nosso curto passeio é a solidariedade.”

 

(Oscar Niemeyer, 1907/2012)

 

 

 

                              Quem tem pressa

                              esvai-se pela reta

                              menor caminho

                              entre dois pontos,

                              aponta-se.

 

                              Mas quem decreta

                              que a vida é reta?

                              Nem me apresta

                              chegar de um a outro

                              ponto algum.

 

                              Prefiro o caminho,

                                           com suas curvas

                              vagantes

                                                       seus seios

                              e meneios

                                        desvios

                              da ida sem volta

                                                  que vida se chama.

 

 

                                                       

Nós Os Estelares

 

 

Para todos que orbitam esta Estrela Binária.

 

 

 

 

“Esses que vivem religiosamente se embasbacando ante o espetáculo das inatingíveis estrelas ― nunca lhes terá ocorrido acaso que também fazem parte da Via Láctea?”

(Mário Quintana, Caderno H)

 

 

 

Ledor

 

 

                                               LIDA

 

 

 Brenno Augusto Spinelli Martins

 

 

                                   O que lia Camões?

                                   E Homero, o que lia?

                                   Então deixem que eu destile

                                   essa saliva de poesia

                                   sem antes nada ter lido.

 

                                   É que eu lido com um desfile

                                   de ideias, almas e conflitos

                                   sem ter lido o que antes fora escrito.

                                   Circunscrito na emergência,

                                   abdico da influência.

 

                                   Respeito os vários estilos,

                                   até porque um não tenho…

                                   Ora rimo, ora transgrido

                                   as mais elementares regras.

                                   Por isso tenho sofrido

 

                                   os mais severos castigos

                                   por quase nada ter lido.

                                   E lido com tal preconceito,

                                   de ser tratado de louco,

                                   só por ter lido tão pouco.

 

 

 

A cada dia confirmo o que já pensava quando caí nesta vida de blogueiro: um blog é feito muito mais por aqueles que o acessam, leem e comentam do que pelo seu mantenedor.

Ontem, ao comentar o post de Selma, Brenno saiu-se com o prodigioso poema acima transcrito.

Poeta fingidor e licença poética à parte ― já que o conheço há muito e sei bem que não é de ler assim tão pouco como diz ― os seus versos e a sua verve remetem a uma questão absolutamente apaixonante, que é a importância da leitura e dos livros na nossa vida.

Já se definiu o hábito ou a mania leitura como “vício impune” (será mesmo impune?). Mas, afinal, por que lemos e, sobretudo, por que insistimos em acumular livros, arrumá-los em estantes, especialmente nestes tempos descartáveis, de virtualidade e internet? Os livros, como objeto que conhecemos, estarão mesmo fadados a desaparecer?

As perguntas são muitas, e não serei eu, pobre de mim, a dar as respostas.

Em diversos ensaios de “Os Diamantes de Ophir” (Funpec Editora), Annibal Augusto Gama reflete agudamente sobre leitura, leitores e  livros:

 

“Se me perguntam o que é leitura, eu respondo que leitura é um esquecimento. Fechada a última página de um livro, já voaram as pombas dos pombais, que pode ser que voltem, mas os sonhos não voltam nunca mais. O sonho do leitor dura algumas horas, ou alguns dias, na convivência com outro sonho, o das personagens de ficção que andam errantes a se indagar de si mesmas.”

[…]

De outro modo, o verdadeiro livro envelhece, reverdece e torna frutificar. Cada geração lê o mesmo livro de maneira diferente. E todas as interpretações que se fazem sobre ele se completam, para depois outra vez o descobrirem. Os clássicos são clássicos porque não são clássicos. Porque são desvios de uma norma que se petrificou, e criam uma nova norma.”

(Da leitura)

  

“Fora de qualquer contestação, Os Lusíadas não são obra apenas de um grande poeta. São obra de um erudito, de um historiador, que tinha profundo conhecimento geográfico, estudara a cosmovisão ptolomaica, a astronomia, a medicina, a náutica, e outras ciências, vasculhara com mão noturna e diurna a mitologia, lera Virgílio, Ovídio, e os clássicos da literatura latina na própria língua, e Homero, Platão e Aristóteles em traduções, estudara os fenômenos atmosféricos, compulsara assiduamente Petrarca, impregnara-se do dolce stilo nuovo, abeberara-se em todos os escritores portugueses, enfim, que tinha um saber enciclopédico, abrangendo tudo o que se sabia na época.

Para tanto, no mínimo, seria preciso que Camões possuísse uma preciosa livralhada, uma biblioteca.

Como ajustar-se, porém, esta livraria, de difícil transporte, com a sua pobreza franciscana, com os seus desterros e prisões, com as suas viagens, abrigando-se em miseráveis choupanas onde foi largado como soldado raso? Indo nas naus para terras de África e da Índia, sem ter de seu mais do que uma muda de roupa e a espada, espremido nas enxergas dos tripulantes, como levaria consigo tantos autores e livros?

Ninguém o explica, nada o explica.”

(“A biblioteca de Camões”)

 

(Veja só que curioso: sem ter lido o ensaio, Brenno abre o poema indagando sobre o que lia Camões…)

 

“Pois bem: um livro são muitos livros. No seu texto assinado e autenticado pelo autor, podem ser descobertos textos de outros autores, ideias, metáforas, personagens, intrigas, paisagens, que vieram de séculos atrás, e que se achavam noutros livros.”

[…]

“Pode-se dizer até que um livro novo é sempre obra de uma cooperação universal, de que participam autores da mais remota antiguidade. Houve mesmo época em que esses autores muitos antigos, os clássicos greco-latinos, serviam de modelos indispensáveis para outros que o sucederam. Assim, Homero, com a Ilíada e a Odisseia, para Virgílio com a Eneida, e este e aquele para Camões, com Os Lusíadas, e assim por diante. Desta maneira, os autores são sócios ou irmãos de uma confraria em que estão reunidos todos os prosadores, todos os poetas.

Aquele que pretende ser absolutamente original e único, ao escrever um livro, ou é um tolo, ou um pretensioso, um ignorante. Para começo de conversa, ele veio ao mundo da mãe que o gerou, e com a ajuda de outro. Imediatamente, aqui encontrou amparo e ensinamentos de uma sociedade preexistente. Nunca esteve absolutamente só, mas se viu cercado de gente, e tudo, ou quase tudo lhe foi transmitido. Esse relacionamento, esse jogo de influências, são inarredáveis.”

(O livro, um palimpsesto).

 

Nessa mesma linha, Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura francesa da Universidade Paris VIII, no seu delicioso “Como falar dos livros que não lemos?” (Editora Objetiva), fingindo pilheriar, escrever mais um dos abomináveis livros de autoajuda ou de como se dar bem enganando os outros,  elabora um refinado ensaio sobre a cultura literária, formada tanto pelos livros lidos, quanto pelos não lidos, mas que de algum modo se conhece e assimila. Pois todo leitor, segundo Bayard, carrega consigo uma biblioteca, um repertório que lhe permite ter uma opinião legítima sobre um livro, mesmo que não o tenha lido. Ainda porque, as obras de fato lidas, afora aquilo que fica esquecido, com o passar do tempo vão se embaralhando e confundindo de tal modo que, ao discorrer sobre elas, falamos da lembrança imperfeita e distorcida que guardamos.

Assim, Bayard estabelece diversas categorias, como livro folheado, livro de que ouvi falar, livro esquecido e livro desconhecido, bem como qualifica os livros conforme sua relevância cultural.

 

 

 

 

 

 

 

Livros

 

 

 

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Estante de mim

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ao me deparar com a inusitada estante, brinquei de arrumá-la.

No topo, somente um livro. O que fez minha cabeça num daqueles clear days that you can see forever. O que me inquietou, sacudiu o ponteiro da bússola e do viver cartesiano. Sim, ele mesmo, o Quixote de jamais abrir mão do sonho e de enfrentar moinhos.

No lado esquerdo do peito, os que me viram crescer e de onde brotavam, nutridas por múltiplas nascentes,  as melhores  fontes de se beber ― a do sítio de Lobato,  das veredas do Rosa, da Pasárgada de Bandeira, do rio de Pessoa…

Ali pela altura da fome, os que me saciaram e até mesmo os que desceram mal ― indigestos obrigatórios da escola, leites derramados, alquimias com pouca substância de chef mago e barrinhas de autoajuda que apenas enganaram o estômago. Banidos da dieta, valeu prová-los.

Nas pernas, os que foram pilares de minha formação cultural, ética e espiritual, os que me fizeram captar a vida em sua pluralidade e caminhar em frente. Aqueles que quase (senão perderia a graça) me deram a resposta para “viver, a que será que se destina?”.

Ah, nos pés cansados, edições “havaianas” ― leves, refrescantes, alívio imediato e nem cheiro deixaram…

Por fim, ao alcance de meus abraços, os que me perpetuaram em sua escrava e pelos quais tenho zelo, até ciúme, e me pego a relê-los sem mais nem porquê. Passagens secretas, só eu tenho a senha.

E os queridos do blog? Como arrumariam essa estante? Fico curiosa por saber ao menos de um livro que lhes fez (ou faz) as delícias…

 

 

 

 

 

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 Moto-contínuo (Edu Lobo e Chico Buarque)