Posts from maio, 2013

Champollion e a pedra no sapato

 

        Annibal Augusto Gama

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Foi Champollion que decifrou a “Pedra da Roseta”, mas ignoro se algum dia decifrou a pedra no sapato. É uma pedrinha insignificante que entra no sapato e incomoda como o diabo. Tirar o sapato na rua e sacudir fora a pedra é deselegante. Então, você retorna para casa, entra, tira o sapato e despeja dele a pedrinha. É uma coisinha à toa, mas como atrapalhava!

A existência é feita desses pedregulhos, menores ou maiores. Machado de Assis já escreveu sobre as botas apertadas, mas não sobre a pedra no sapato. As botas apertadas foram feitas para você sacá-las, e sentir-se, depois disso, aliviado e feliz. A pedra no sapato substitui as botas apertadas, e o resultado é quase o mesmo.

Nós às vezes sofremos muito com coisas miúdas. E tal sofrimento não é menor do que o sofrimento com as coisas graúdas. Também há alegrias pequenas que se equivalem às grandes alegrias. Outro dia, indo a São Paulo, perdi os meus óculos de ver de perto, esquecendo-o no assento de um carro de aluguel. Ora, eu fora à capital paulista justamente para visitar as livrarias que aqui em Ribeirão Preto já não há. E como ver e escolher livros, sem a ajuda dos óculos? Fui à Livraria Brandão, na Rua Xavier de Toledo, um sebo magnífico com mais de quarenta mil livros. Alguém, lá dentro, ofereceu-me os seus óculos. Serviram-me um pouco, e pude vasculhar as prateleiras, botando os livros sobre uma mesa. Reuni mais de vinte livros e comprei-os. O dono da Livraria Brandão é um ótimo sujeito, e conversamos muito.

Dali fui à Livraria Cultura, mas lá ninguém me ofereceu óculos para enxergar perto. Ainda assim, arranjei-me como pude e comprei outros livros.

Agora, já em casa, e com os óculos em duplicata que tenho, leio uns e leio outros.

O negócio é este: arranjar-se com a pedrinha no sapato.

Como eu também estou com um começo de catarata, perguntou-me alguém porque não me opero. Respondi que prefiro a catarata, porque assim deixo de ver tanta mulher feia. Mas também perco as mulheres bonitas, que são muitas.

A vida é uma compensação: dá a pedra no sapato e a felicidade de poder tirá-la dele.

Eu podia escrever um livro de autoajuda. Ganharia dinheiro. Mas não creio em autoajuda. Na verdade, nós nos ajudamos quando ajudamos aos outros.

Quando saio com o meu cachorrinho Pichorro, dou sempre com um sujeito que vigia os carros dos outros. Ele, logo que me vê, pede-me um cigarro e algumas moedas. Dou, embora saiba que aquilo não adianta nada. O sujeito continuará miserável como antes.

Mas, dar é uma pedrinha que tiro do sapato. Sou eu que lucro.

Quando é que somos verdadeiramente felizes? 

Quando não pensamos nisso.

 

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