“Esses moços” (Lupicínio Rodrigues), Adriana Calcanhoto
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=SQrUP42NM6Y[/youtube]
“Esses moços” (Lupicínio Rodrigues), Adriana Calcanhoto
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Annibal Augusto Gama
Ulisses estava compromissado com Maria Amélia, e até já se marcara a data para o casamento. Mas, um mês antes, ela lhe disse, devolvendo-lhe a aliança retirada do anular da mão direita: “Cheguei à conclusão de não quero me casar. Você me desculpe, mas está rompido o nosso compromisso”.
Ele também retirou a sua aliança do dedo e, cheio de decepção, mas mantendo o seu orgulho masculino, foi embora.
Não se tornou um ébrio e na bebida não buscou esquecer. Dedicou-se com furor ao trabalho, aos empreendimentos e, dois anos depois, estava rico, muito rico.
Via Maria Amélia nas ruas, de vez em quando, mas não lhe tirava o chapéu, porque não o usava. Disputado desde então por outras moças casadoiras, rejeitava a todas com delicadeza. Ia ao bordel da Ambrosina duas vezes por semana, e preferia as putas. Com elas, paga-se e vai-se embora.
Sua mãe, que o criara com mimo, dizia-lhe: “Você precisa casar-se, para assentar a cabeça. Principalmente agora, que está rico. Tire da cabeça aquela Maria Amélia”
Ambos permaneceram solteiros.
Quando lhe informaram que Maria Amélia estava doente, muito doente, e talvez desenganada, ficou abalado. Deveria visitá-la?
Afinal resolveu ir à casa dela. Achou-a quase deitada numa poltrona de inclinar, muito pálida, os olhos fundos, magra, e embrulhada numa manta grossa. Ela tinha então trinta e dois anos e ele chegava aos quarenta.
— Que é isso? Trate de se curar, você ainda tem muitos anos pela frente.
Ela sorriu e abanou a cabeça.
— E você, por que ainda não se casou? — ela quis saber.
— Acho que tenho vocação para celibatário..
Ela tornou a sorrir e fez-lhe outra pergunta inesperada:
— Ainda guarda as alianças?
Ele ficou vermelho e encabulado. Sim, guardava o par de alianças no bolso, desde aquele remoto rompimento.
— Deixe-me ver.
Ulisses retirou as alianças do bolsinho do paletó. Maria Amélia enfiou uma delas no anular da mão esquerda, e a outra no mesmo dedo dele.
— Agora estamos casados, até que a morte nos separe…
Não foi preciso padre para formalizar o casamento. Isto é, o padre veio alguns dias depois para dar a extrema unção a Maria Amélia.
E assim, viúvo sem ser viúvo, Ulisses permaneceu sozinho pelo resto de sua existência. E mandou erguer, no túmulo de Maria Amélia, um anjo de asas abertas, prestes a alçar voo.
“Nó na madeira” (João Nogueira / Eugênio Monteiro), com João Nogueira
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=io0dLogkHIE[/youtube]
Brenno Augusto Spinelli Martins
NÓS
Quem somos nós? Somos nós…
nós que nós mesmos nos demos
e a nossa missão na vida
é que os nós, nós desatemos.
Nostradamus, nos antanhos,
nem de leve suspeitava
que o mundo um dia acabava…
mas acabava em nós.
Nó cego, em pingo d’água,
nó em fumaça, sem pontas,
nó marinheiro, carioca,
nó careca, nó de trança.
Nó da madeira, barreira
para o artesão competente;
nódoa de bananeira
mancha a camisa da gente.
Nó de tripa, nó no peito,
no nosocômio está cheio!
Nostalgia, entretanto,
é nó que nunca é desfeito.
Nó na garganta, nem tanto,
é um nó na emoção,
pela palavra não dita,
escondida no porão.
E quando chegam as dores
dos nós arrebatadores,
puxam-se as pontas a esmo,
pede-se ajuda em vão…
Quem são os desatadores
desses nós?
— Somos nós mesmos !
“Só peço a você
um favor, se puder,
não me esqueça
num canto qualquer…”
“O caderno” (Toquinho / Mutinho), com Toquinho
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=dFb1jKEzER0[/youtube]
Selma Barcellos
Para quem, como a blogueira, conserva o prazer de escrever à mão, aliás, com o corpo todo, sem mediação, no terreno baldio da folha de papel, não encontro ilustração mais perfeita para o nascimento de um texto, passados os pontapés iniciais do embate com a inspiração, os alarmes falsos… Em algum momento a palavra gestada nos chega. E nos alenta.
Sobre o ato hoje quase lúdico de manuscrever, o poeta Armando Freitas Filho se justifica dizendo que “a máquina de escrever, o computador estão sempre passando a limpo, estão ‘entre’ o que se escreve e a mão.” Indagado se o lápis e a caneta também não estariam, responde: “Mas quem diz que escrevo com lápis e caneta? Escrevo, isso sim, com o dedo em riste.” Ah, poeta… E completa:
A letra tremida da infância
ou da mão travada pela idade
quando impressas, não passam
a aceleração do sentimento
nem o avanço da paralisia.
Só o leitor pode recuperar
o bastidor da sensação
que se gastou num polo
ou no outro, embalsamada
na letra morta de imprensa.
Jamais supérfluos, não me faltem o bloquinho e a Bic de ponta fina aonde for. Mania doida de rascunhar, desenhar, esboçar, destacar vida que passa e que de algum lugar me acena. Ao alcance das mãos. Assim.
“Fé cega, faca amolada” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)
com Milton Nascimento e Beto Guedes
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=mWDTXhy6yuc[/youtube]
Adalberto de Oliveira Souza
EXISTÊNCIA
Um dia, quem sabe,
sentiremos a boca cheia de terra
e caminharemos
como anjos de procissão,
no encontro.
O dia tem 24 horas,
é o bastante
para passar o tempo,
para ser perseguido
pela fome.
De qualquer forma,
é urgente correr,
é urgente cantar,
alto foi a ordem dada,
entretanto.
Uma bomba silenciosa
eclodiu numa grande
interrogação.
O mundo naufragou-se,
busca-se um porto
e ele existe,
e além disso, existe
a faca
e corta.
EXISTENCE
Un jour,
qui peut le dire,
on se sent la bouche pleine de
terre
et on va défiler
comme des anges,
dans une procession,
à la rencontre.
Le jour a
24 heures
et ça suffit
pour avoir le temps
d’être persecuté
par la faim.
De toute façon,
il est urgent de courir,
il est urgent de chanter.
Halte! c’était l’ordre
cependant.
Une bombe silencieuse
a éclos dans une grande
intérrogation.
Le monde a fait naufrage,
on cherche un port,
une attache,
il existe vraiment
et au-delà,
il existe un couteau
et ce couteau coupe.