Posts from junho, 2013

Fora dos holofotes

 

Após estrear na literatura aos 76, Annibal Gama ganha elogios de críticos

LUÍS FERNANDO WILTEMBURG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE RIBEIRÃO PRETO

 

 

A recepção na casa de Annibal Augusto Gama já denota a erudição do anfitrião. A sala tem uma TV de tela grande que se perde em meio a centenas de livros e dezenas de quadros dele próprio.

Volumes e mais volumes se multiplicam nas estantes das salas de visita e de jantar.

Aos poucos, os livros começam a se empilhar na mesa de centro, à medida que são exibidos, aos poucos, pelo dono da casa, um senhor elegante, de cabeça e fala afiadas, com quase 89 anos –a serem completados em dezembro. São cerca de 5.000 em sua biblioteca, dos quais mais de 3.000 são literatura e o restante, da área jurídica.

Promotor aposentado com atuação importante em Ribeirão Preto (313 km de São Paulo), Annibal é também escritor com sete livros publicados pela editora Funpec e artista plástico –embora não se considere um– com cerca de 200 quadros pintados.

Também ilustra os próprios livros e outros, de amigos que lhe pedem o favor.

Em sua produção literária há romances, contos e poesias. Ainda tem, diz, pelo menos 30 outros livros prontos para serem publicados. Em breve, deve publicar o romance “Damião Damião”.

O homem modesto, de conversa deliciosa, quase sempre com um cigarro nos dedos –fuma dois maços por dia–, já recebeu, pelos poucos livros que publicou, elogios em análises literárias feitas por críticos consagrados.

Um dos apreciadores é o escritor e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, convidados da Feira do Livro de Ribeirão neste ano.

“Gama é um caso raro na literatura brasileira, porque começou tarde e nasceu pronto.”

  Silva Junior/Folhapress  
O escritor Annibal Gama durante entrevista em sua casa, em Ribeirão Preto
O escritor Annibal Gama durante entrevista em sua casa, em Ribeirão Preto

 

De acordo com o crítico, em geral as pessoas começam a publicar ainda jovens, “quebrando a cara”. Alguns se arrependem e, na maturidade, renegam sua obra.

“É uma pessoa que tem a consciência do que está fazendo, tanto na poesia, que é muito significativa, como nos contos”, diz Sant’Anna.

Outros grandes veículos de comunicação foram além nos louros. Crítica de “O Estado de S. Paulo” escreveu que ele “mereceria estar entre os maiores nomes de nossa poesia do [fim do] século 20”.

 

FORA DOS HOLOFOTES

Ainda assim, Gama segue praticamente no anonimato, que ele justifica com a falta do hábito de leitura do brasileiro e distribuição de livros deficitária pelas editoras.

Dos outros 30 prontos, pretende publicar mais algum? “Ah, não. Não vale a pena, ninguém lê”, lamenta.

A opinião diverge da do neto. Eduardo Gama, 35, planeja o lançamento de “Damião Damião”. Quer cuidar da diagramação à divulgação e logística, até em Curitiba.

Também gostaria de publicar outros títulos arquivados do avô, com quem mora, como o “Manual para Pentear Macacos” e o “Manual para Dirigir no Trânsito”. Segundo Eduardo, são títulos divertidos e gostosos de ler. “Ideais para uma viagem.”

 

NOVELISTA PRECOCE

A vasta obra de Gama foi acumulada durante toda a vida. O primeiro publicado, “Manual para Aprendiz de Fantasma”, só saiu em 2001. Mas o primeiro que ele escreveu, recorda, data de quando tinha oito ou nove anos.

Foi um romance policial de cerca de 200 páginas, escritas a mão e à luz de lampião. Chamava-se “Vítimas de Satã” e se passava em Londres.

As novelas policiais, aliás, trazidas pelo pai à fazenda Rio Branco, em Rifaina, onde moravam, inspiraram o interesse do menino. Mais tarde, estudando em Franca, começa a publicar textos na imprensa local. E a paixão pelas letras nunca mais acabou –hoje é colunista do jornal de Ribeirão “A Cidade”.

Gama estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP, em São Paulo. Como promotor, atuou em São Paulo e mais dez cidades da região, para onde resolveu se mudar.

“A Promotoria me deu oportunidade de conhecer muita gente, muitos tipos engraçados e outros, esquisitos”, recorda. Ainda assim, diz que a inspiração não vem dos casos investigados pelo Ministério Público do Estado. Surge de qualquer coisa. Até uma simples palavra pode acender a imaginação.

Sua carreira profissional rendeu destaque no documentário “Texto & Testa”, do também promotor Marcelo Pedroso Goulart.

Como leitor, idolatra, no Brasil, Machado de Assis e Eça de Queiroz. Do exterior, prefere os ingleses e franceses.

Seu interesse pelas artes plásticas surgiu quando estudava em São Paulo. A influência mais forte em seus traços são de Di Cavalcanti, com quem conviveu. “Era um tremendo gozador”, afirma.

Brinca ao dizer que começou a pintar por necessidade, porque ia a exposições de arte e não tinha dinheiro para adquirir as obras. “Imagine se eu tivesse comprado um ou dois quadros do Di [Cavalcanti]. Imagina o quanto valeriam hoje?”

 

SENTIDO DA VIDA

Os quadros, assim como sua biblioteca, cobrem as paredes dos corredores e de seu escritório, na parte superior da casa. Nas pinturas, fica evidente seu primeiro grande amor, Jaçanan Silva Gama, a Nanãn.

Os dois começaram a namorar quando ele tinha 18 anos. Casaram-se antes de ele concluir a faculdade. Só se separaram há seis anos, quando ela morreu.

Os quadros retratam a passagem dos anos da companheira. “A mulher é a família. Quando ela morre, a família se dispersa.”

Annibal confessa que está “sem rumo” até hoje, depois da morte da mulher com quem viveu 70 anos.

“A vida perdeu o sentido para mim”, afirma, com os olhos discretamente marejados, ao lembrar da mulher. A saudade provocada pela distância é amainada pela religiosidade. Católico, crê que a vida continua após a morte.

“Essa questão de crer ou não crer em Deus é insolúvel. Todos têm seus momentos de dúvida. Mas, pensar que morreu, acabou, é um absurdo”, diz, mais exaltado.

“Que sentido teria a vida? Posso pensar que minha mulher acabou?”, questiona, novamente com o choro contido.

Depois, mais tranquilo, segurando o copo de uísque que toma todos os finais de tarde, fala com desenvoltura sobre autores, a necessidade de educação e dos políticos brasileiros –“não gosto de nenhum deles”.

Em tom jocoso, mas com brilho nos olhos, se diz com vontade de lançar um jornal de oposição –“contra tudo”.

 

 

P.S.

 

 

PS 

 

Todo postscriptum

já antes está escrito

e é tudo a ser dito.

 

                        

 

Os “The Friends”

 

     Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reúnem-se regularmente. Almoços sem hora para acabar. Amigos irmãos. Beijam-se na chegada e na saída. No cardápio, caipirinhas, abobrinhas, queixas da patroa, das tungadas do governo, da próstata, atualização do obituário, piadas (repetidas à exaustão) e “olha a gostosa que entrou”, “mas é bom demais ser avô”, “tô tomando ginkgo, a memória tá outra”…

Já aconteceu daquele que não bebe – o “transporre” – tocar a campainha, conduzir o ruinzinho até o sofá da sala, sob o olhar fulminante da mulher, e sair batido. Ou preencher, a pedido de outro alegrinho, seu cheque do rateio e, de troça, anotar uma quantia absurda no canhoto, sem data nem local, para desespero da criatura amnésica ao se deparar com a cifra dias depois.

Toca o celular e meu marido me pede que fale com um deles.

_ Oi, Brito, tudo bem?

_ Tudo ótimo! Selma, lembra do MARIO?

_ Claro, aquele que te… Brincadeira, Brito. Peraí. Mario… Mario… da Rita?  Os que moraram no mesmo bloco da gente em Brasília?

_ Não, o MARIO de Mediar, Ansiar, Remediar, Incendiar e Odiar! Estão aqui caindo na minha pele, apostando que é “intermedia”. Fala aí, professora, não é “intermedeia”?

_ Quanto vale a aposta? Quero 10%.

Ouvi as gargalhadas. Meninos no pátio do recreio. Companheiros de uma vida.

Por eles um anjo intermedeia.

 

P.S.: Mal o marido chegou, chamei-o para ler o post. Emocionado, tirou do bolso o bilhete acima.

 

 

A Explosão

 

         Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

                                    A EXPLOSÃO

 

 

                        O sonho subtrai o tédio

                        que avança na noite,

                        e amplia o norte.

                        Para o leste a tempestade,

                        para o oeste o incêndio,

                        para o sul

                        corre a corrente

                        cheia de calor.

 

                        O fogo

                        meridianamente

                        atinge seu âmago.

 

                        Explode um canto

                        num gesto árduo

                        numa intenção

                        tecida de arame.

                         

 

 

                                                           L’EXPLOSION

 

 

                                               Le rêve soustrait le chagrin

                                               qui avance dans la nuit

                                               et amplifie le nord.

                                               Vers l’est la tempête,

                                               vers l’ouest l’incendie,

                                               vers le sud

                                               un courant souffle

                                               tout chaleureux.

 

                                               Le feu méridien

                                               atteint son noyau.

 

                                               Un chant explose

                                               dans un geste pénible,

                                               dans une intention

                                               tissée de barbelé.

 

arame farpado 3

 

 

A Meritolândia

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 

Há um país na linha do equador (ao sul, ao norte, a leste ou a oeste, tanto faz) que se chama Meritolândia (vide “Dictionaire des Lieux Imaginaires”, de Alberto Manguel).

Nele, todos são meritórios, mas os juízes são meritíssimos. A escolha para os cargos públicos ali se faz pelo mérito, pelo demérito e pelas fichas-sujas. Estas predominam, e quanto mais comprida for a capivara dos candidatos, na Polícia, mais votos eles obtêm.

Nele já também se experimentou a maracutaia, que foi substituída, com vantagem, pela marmelada. A marmelada é o doce predileto da população que também adota, como moda, os panos quentes.

O sujeito que diz que não disse e que disseram o que ele não disse, ganha mérito. Em tal situação, o dito país é o mais civilizado da América Latrina. Nele já foram experimentados o pluripartidarismo, o unipartidismo, e o trespartidarismo, para se evitar o cambalacho debaixo do tacho. E até já houve um partido denominado arenito, que foi o partido político maior do mundo.

Petelhos e pentelhos acordaram no desacordo. Mas afinal chegou-se ao partido QPM, que quer dizer “quem pode manda”, quem não pode faz xixi na cama. 

O seu sistema eleitoral está sempre se aperfeiçoando, e já se usou o bola na rede e não chute para escanteio. Agora o seu lema é bola pra frente. Os planos do governo gostam muito de um traque, apelidado de PAC. Acho que o nome veio do tropel dos cascos de cavalos: paque, paque, paque, paque. Por isso mesmo, as cavalgaduras são muito meritórias.

Ultimamente, criou-se um partido chamado SF, isto é safadeza, que tirou pedaços de uns e outros que eram a mesma moleza. Ele não é da direita, nem da esquerda, nem do centro, muito ao contrário.

Os ministros são nomeados pelo número de dedos. Quanto mais dedos, mais habilitados para roubar. Isto não impediu que um presidente de tal nação não tivesse um ou dois dedos, tal era a sua arte.

Este país é muito feliz, porque nele não há inflação, há apenas infração. E cada dia se cria uma nova infração, de modo que o Código Penal regurgita de infrações. Não há, porém, pena a ser aplicada, porque pena é coisa de galinha.

 

pais-das-maravilhas

 

 

 

O horror, o horror

 

 

 

atropelamento em ribeirão preto

 

 

Em 1890, Jósef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski, polonês naturalizado britânico, subiu o Rio Congo e durante essa jornada presenciou um dos períodos mais sangrentos da triste história africana, cuja população à época, escravizada na extração de marfim, estima-se que tenha sido reduzida à metade.

Anos mais tarde, já convertido no escritor Joseph Conrad, publicou a obra-prima Coração das Trevas, com claras reminiscências daquela aventura assombrosa. O protagonista do romance, Marlow, é encarregado de subir um rio até o posto comandado por Kurtz, um europeu que enlouquecera entre os selvagens. Kurtz só aparece nas últimas dez páginas, mas sua presença pesa sobre o livro todo. Esse personagem, louco ou lúcido demais (o que talvez seja a pior forma de loucura), equilibra-se na tênue linha entre civilização e selvageria. Suas palavras finais resumem não apenas a história colonial da África, mas de toda a humanidade: “O horror, o horror.”

Francis Ford Coppola, a partir do livro de Conrad, e deslocando a ação para o Vietnã, realizou em 1979 outra obra-prima, o filme Apocalypse Now, com Marlon Brando no papel de um Kurtz coronel desertor do exército norte-americano.

Ontem, mais de 120 anos depois da experiência sinistra de Joseph Conrad no Rio Congo, nesta aprazível São Sebastião do Ribeirão Preto, que acabara de completar 157 anos no dia anterior, outrora denominada “Capital da Cultura”  e “Califórnia Brasileira”, um energúmeno endinheirado, subindo com sua possante Range Rover por uma das principais avenidas da cidade, pela qual caminhavam milhares de pessoas, de forma absolutamente pacífica e ordeira, manifestando o descontentamento cívico e ao mesmo tempo a esperança do povo brasileiro em transformar o Brasil num país melhor e mais igualitário, sentindo-se contrariado pelo bloqueio de sua augusta passagem, atirou o transatlântico terrestre sobre a multidão, matando um jovem de 18 anos e ferindo várias outras pessoas.

Não, não adianta buscar explicações.

A única explicação é aquela mesma constatada por Conrad: o horror, o horror!

Apenas o horror!