Posts from abril, 2014

Cachoeirense ausente (e que falta faz…)

 

 

         Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois de alguma insistência, Rubem Braga resolveu aceitar o título de “Cachoeirense Ausente de 1951”, homenagem criada anos antes pelo irmão Newton para saudar os filhos ilustres da terra.

Rabugento que só, avisou às irmãs que não queria fazer discurso na praça, cumprimentar desconhecidos, nem ir ao Baile da Cidade. Não teve jeito. Fez os três.

A descontração só viria mais tarde, quando pôde enfim bebericar seu uisquinho com os amigos que levara ─ Vinicius, Millôr, Sabino, Otto Lara e Ceschiatti. No dia seguinte, apenas um compromisso oficial: inaugurar o aeroporto da cidade, tantas vezes reinaugurado e abandonado.

Hospedaram-se no melhor hotel de Cachoeiro de Itapemirim, nas proximidades da estação ferroviária, o que deixou os amigos desesperados com as manobras barulhentas das locomotivas madrugada adentro. Até que Millôr ─ ou teria sido Sabino? ou Vinicius?, ninguém sabe ao certo ─ , bateu no quarto de Braga:

─ Rubem, a que horas este hotel chega a Vitória?

Garotos formidáveis.

Mas que mania essa de ligar nossos brilhos literários e artísticos a aeroportos. Será que Millôr, a exemplo de Tom, vai virar um daqueles com forro desabando e urubus fazendo social com os passageiros?

Ele até sugeriu algo como “reconheço que nunca fiz nada para posteridade. Mas a posteridade bem que poderia fazer alguma coisa por mim. Por exemplo – me arranjar algum desses empréstimos a fundo perdido.” Não foi atendido

Braga, um apaixonado por jardins, virou nome de orquídea. Linda, vermelho-púrpura.

E Millorzinho, hein?

 

 

Rubem Braga e o seu quintal aéreo

Rubem Braga no seu mítico quintal aéreo do apartamento em Ipanema

 

 

 

Tatuagem

 

 

 

Elis e César Camargo Mariano estavam apaixonados.

Vejam a troca de olhares, as mãos que se buscam.

O amor no ar, a canção maravilhosa de Chico e Ruy Guerra, a interpretação sempre deslumbrante de Elis e o arranjo refinadíssimo de César fazem do vídeo um dos mais lindos já postados no Estrela Binária.

 

 

“Tatuagem” (Chico Buarque / Ruy Guerra), com Elis Regina e César Camargo Mariano

 

 

 

 

Impossibilidade

 

 

        Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                           IMPOSSIBILIDADE

 

 

                                                           Como apagar

                                                           o indelével?

                                                           Nada se apaga

                                                           Tudo se impregna no tempo,

                                                           A lembrança pode se distrair,

                                                           mas a marca permanece,

                                                           a cicatriz,

                                                           visível ou invisível.

                                                           Às vezes, dói.

 

                                                           Quando se tem consciência

                                                           lamenta-se,

                                                           Quando não

                                                           suspira-se.

                                                           A vida continua,

                                                           mesmo assim.

 

cicatriz 2

 

 

 

Solidão nunca mais

 

 

garcia.marquez

 

 

Gabriel é um mensageiro divino, anunciador de novos tempos.

Coube-lhe, segundo os cristãos, anunciar as vindas de João Batista e do Messias, que celebraria a nova aliança com os homens.

Foi ele também o encarregado de revelar o Corão ao Profeta, conforme creem os mulçumanos.

Para os que professam outra fé, um outro Gabriel veio anunciar um mundo novo, uma realidade mágica envolta numa auréola de sonhos e encantos que transfiguraram o universo literário.

Os que habitam nesse universo paralelo podem viver cem anos de solidão, mas não podem viver sem palavras. É com palavras que dão sentido ao que são, ao que acontece, ao que sentem. São viventes tecidos de palavras, o seu modo de viver se dá na palavra e como palavra.

Por isso, conforme registra o discípulo Alberto Manguel em uma de suas epístolas, quando os habitantes da Macondo revelada por Gabriel foram atacados por uma espécie de amnésia progressiva, para não esquecer do que o mundo significava para eles, fizeram rótulos e os penduraram em animais e objetos: “Isto é uma árvore”, “Isto é uma casa”, “Isto é uma vaca, e dela se obtém o leite, que, misturado com café, nos dá café com leite”.

Viver para contá-la. Depois de muito nos contar e alumbrar, Gabriel se foi de mansinho, no seu outono de patriarca, crônica da uma morte anunciada.

Mas não haverá solidão. Por ter estado entre nós e deixado sua palavra, jamais estaremos sós.

 

 

 “Dança da Solidão” (Paulinho da Viola), com ele e Marisa Monte

 

 

 

Assentimento

 

 

 

sentimentos 3

 

                                       sentimentos são sedimentos

                                       camadas superpostas

                                       (de dentro para fora)

                                       que uma vez expostas

 

                                       (de fora para dentro)

                                       descarnam e deixam claro

                                       o que nem mesmo a gente

                                       soubera assim assente

 

 

 

Sentimentos

 

 

 

“Sentimentos” (Mijinha), com Paulinho da Viola

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=A590p5AA65c[/youtube]

 

 

 

Gostoso demais

 

 

“É tão difícil ficar sem você
O teu amor é gostoso demais
Teu cheiro me dá prazer
Quando estou com você
Estou nos braços da paz.”

 

 

“Gostoso demais” (Dominguinhos / Nando Cordel), com Maria Bhetânia

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=M3kHQrdixn0[/youtube]

 

 

 

Notícias de abril

 

         Selma Barcellos

Selma (perfil)

 

 

 

 

 

 

 

 

For God’s sake, é abril, mas não invento. O Reino Unido de Elizabeth II, a Fofa (amo-a de chapeuzinho roxo), aderiu à tal Festa do Feromônio, recentemente, em East London. Foi o primeiro encontro do tipo.

Dá-se assim: você dorme sem perfume ou desodorante por três noites seguidas com a mesma camiseta de algodão, guarda a peça num saco plástico bem vedado e leva a embalagem para a festa. Ao adentrar o recinto, recebe um rótulo azul ou rosa a ser colado no saquinho, um número (só você conhece sua senha), e tem a preciosidade espalhada numa mesa do pub. Os fregueses cheiram a camiseta, escolhem a preferida e são fotografados com a peça eleita. A imagem é projetada na parede e se você gostar de quem gostou do seu cheiro, pode começar a paquera.

Vejam, concidadãos. Nada contra o objetivo da empreitada. Profeta Millôr já dizia que se Deus fosse contra a paquera não teria feito o pescoço com tal mobilidade. Mas, o pescoço, não o nariz, assim, onde não foi chamado. Façam-me o favor.

Ainda na semana passada, nosso “Rio de Sempre” abordava o tema com legítima nostalgia, perguntava pelo olhar 43, a piscadela, o fiu-fiu, os piropos delicados… A blogueira, dessas que têm saudade até do futuro, em se tratando de cheirinho, perguntava pelo Vetiver deles, pelo Muguet delas… Estes, sim, colavam na roupa da sloper da alma.

O que escreveria mestre Braga sobre tais esquisitices, hein? Ele, o ‘velho urso’ de olhar sem cerimônia, que, um dia, a caminho de um final feliz, viu nascer-lhe uma flor na lapela.

Coisa mais linda, li há pouco, o galanteio do Paulo Rónai para Nora, ao receber a primeira ilustração que ela fizera para um livro dele: “Você não pode contribuir em todos os aspectos da minha vida?” Aaaah, teve jogo… Por décadas.

Sejamos sinceros, a notícia que vos trouxe não muda os rumos da humanidade. Sequer merecerá uma pesquisa do Ipea. Mas vale como registro de tempos bizarros. Pouca sutileza, escasso romantismo, raras delicadezas. Muita gente só, vendo a festa da janela… Trancada do lado de fora da vida.

Quimica_amor

 

 

 

El Enamorado

 

 

Poema de Alfredo Fressia, com tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

                Alfredo Fressia

          (sobre o poeta aqui)

Alfredo Fressia

 

 

 

 

 

 

 

                                                         EL ENAMORADO

 

Alfredo Fressia

 

                                                                I

 

                                     Te busco en el castillo de mi cuerpo, soy

                                     un rey abandonado en su palacio,

                                     soy el tirano de mis mudos huesos.

                                     Clausurado en mi cuerpo, te persigo

                                     en la carrera de mi sangre

                                     te veo en los ojos que me arden

                                     hasta girar la órbita de su reposo último,

                                     te siento impenetrable entre mi vientre

                                     como uma dura catedral de vino.

                                     Rey demente en su país de sangre,

                                     te recorreré por estancias agrietadas

                                     hasta que estalles la frontera de mi piel,

                                     hasta que alumbres mi hueso con tu hueso,

                                     hasta que oigan caer el esqueleto

                                     tu acantilado varón

                                     y mi destierro.

 

                                                               II

 

                                     La noche, la alta noche sostenida

                                     de celeste sonata y lenta esfera,

                                     sucumbe si te pienso,

                                     oh noche de tu cuerpo, desvarío

                                     de laúd, cuerdas que sólo yo tañía.

                                     Te oigo todavía vibrando entre mis manos

                                     y la noche de nadie y lenta esfera

                                     crece sola, arde sola

                                     para nadie

                                     su incendio de sonata.

 

 

enamorado

 

 

                                               O APAIXONADO

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

                                          I

 

         Procuro-te no castelo de meu corpo, sou

         um rei abandonado em seu palácio,

         sou o tirano de meus ossos mudos.

         Enclausurado no meu corpo, eu te procuro

         no percurso do meu sangue,

         eu  te vejo nos olhos que me ardem

         até girar a órbita de seu último repouso,

         te sinto impenetrável entre meu ventre

         como uma dura catedral de vinho.

         Rei demente em seu país de sangue,

         percorrerei por quartos fissurados

         até que estoures a fronteira da minha pele,

         até que ilumines meu osso com o teu,

         até que ouçam cair o esqueleto

         tua falésia de varão

         e meu desterro.

 

                                           II

 

         A noite, a alta noite sustentada

         pela sonata celeste e a esfera lenta

         sucumbe quando penso em ti

         oh noite de teu corpo, desvario

         de alaúde, cordas que só eu tangia.

         Ouço-te ainda vibrando entre minhas mãos

         e a noite de ninguém e a esfera lenta

         cresce sozinha, arde sozinha

         para ninguém

         seu silêncio de sonata.

 

corpos