“Diz que fui por aí” (Zé Keti / Hortêncio Rocha), com Maria Bethânia
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=6t7jkPR4Uac[/youtube]
“Diz que fui por aí” (Zé Keti / Hortêncio Rocha), com Maria Bethânia
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=6t7jkPR4Uac[/youtube]
Nilton Chiaretti
VIVER
Pois que eu vou por ali.
Não andei até aqui por nada,
e nada vai me acorçoar a volta.
Lá só fui remoinho.
Fiz muita poeira para pouca serventia.
Nasci cipó enrolado em tronco,
desses que encompridam passo sem percorrer distância,
e vivi em segurança tão sombreada, que medrei do sol.
Evitei olhares amorados
como fossem olhos de cobra verde
e não deixei quem lavrou meu corpo, colher minha alma.
Temia que a dor de amor doesse mais que não tê-lo.
Fechei-me igual bago de paina verde,
mas sem a beleza do seu madurar.
Não planei no vento como a paina aventa.
Fui semente que apodreceu e secou no galho.
Meu rio nunca tropeçou em pedras
nem abocanhou barrancos.
Meu rio corria manso e sem riscos,
mas desrumado de porto.
Lá eu nunca sonhei, pois o sonho tirava o sono
e o sono era mais importante que sonhar.
Fui demais cauteloso nas coisas da vivência
e perdi sem jogar.
Essas perdas me fizeram chegar até aqui.
Estou desaprendendo o meu viver
para desaprumar meu antigo rumo.
Por isso é que eu vou por ali.
Dia 9 de junho, às 19h30, no Estúdio Kaiser de Cinema (Ribeirão Preto), lançamento do novo livro do poeta.
Vamos por lá, prosear com ele.
Selma Barcellos
Dois dedinhos de prosa (e verso) sobre amigos, em silêncio companheiro, obsequioso…
Uma longa mesa de amigos, na churrascaria Plataforma, era o refúgio de Tom Jobim contra o sol do meio-dia e o tumulto das ruas do Rio de Janeiro.
Naquele meio-dia, Tom sentou-se em mesa separada. Num canto, ficou tomando chope com Zé Fernando Balbi. Compartilhava com ele o chapéu de palha, que usavam em turnos, um dia um, no dia seguinte o outro, e também compartilhavam outras coisas:
– Não – disse Tom, quando alguém chegou perto. — Estou numa conversa muito importante.
E quando outro amigo se aproximou:
– Você me desculpe, mas nós temos muito para falar.
E a outro:
– Perdão, mas nós dois estamos discutindo um assunto sério.
Nesse canto separado, Tom e Zé Fernando não se disseram uma única palavra. Zé Fernando estava em um dia fodido, num desses dias que deveriam ser arrancados do calendário e expulsos da memória, e Tom o acompanhava, calando chopes. E assim ficaram, música do silêncio, do meio-dia até o final da tarde.
Não tinha mais ninguém por lá quando os dois foram-se embora, caminhando devagar.
(Eduardo Galeano, em ‘Bocas do Tempo’)
*******
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
(Paulo Leminski)
“Over de rainbow” (Harold Arlen / E.Y. Harburg), com Melody Gardot
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=1-aX6I2BMZI[/youtube]
Adalberto de Oliveira Souza
DELAÇÃO
Estardalhaços,
capitulações e quedas,
presentes em um cabedal
Arrasado,
um ardente inferno
indefectível e frio.
Como o aço,
o carretel do destino
em cores esparsas
e cabriolas intempestivas
instantâneas e mormente
cadentes as estrelas
suprem a falta
da falsa aparição
tão necessária
para o sonho,
as ruínas, os calafrios do pesadelo
e a certeza, qual certeza?
Gravidade sem mais senão
simples descalabro.
“The sound of silence) (Paul Simon), com Simon & Karfunkel
[youtube] http://www.youtube.com/watch?v=I2-AZzcQHns[/youtube]
Annibal Augusto Gama
Num conto de Vladimir Nobokov, leio a frase: “o silêncio caiu”. Suponho que a tradução do seu texto, do inglês para o português, seja correta. E, sabidamente. Nobokov era um estilista. Mas pergunto a mim mesmo: o silêncio cai?
Alguém, há muito, muito tempo, escreveu: “o silêncio caiu”. Depois disso, centenas, milhares de outros escritores, repetiram: “o silêncio caiu”. A frase torno-se um clichê.
Ora, o silêncio não cai. Não é um, saco de chumbo, para cair do teto. Depois, ao invés de cair, pode também levantar-se do chão. Expandir-se, envolver uma sala e as pessoas que se acham nela.
Também habitualmente se diz ou se escreve: “A noite caiu”. Pois bem: A mim me parece que a noite não cai. Ao contrário. ela parece brotar do chão. O que cai é o sol, no horizonte.
Admite-se que a chuva caia, ou que o vento uive na folhagem das árvores. Mas essas frases, de tão repetidas, viraram lugares comuns, que já não nos dizem nada.
Elas compõem o que se denomina “fraseologia” de um idioma. E quase ninguém escapa disso, que já nada significa.
Homero escreveu, na sua épica: “os dedos róseos da aurora”. Era poético, numa época em que os deuses e as deusas habitavam a Terra. O mundo estava cheio de ninfas.
Muitos, muitos séculos depois, aqui no Brasil, no parnasianismo, Raimundo Correa faria aquele verso: “Raia, sanguínea e fresca, a madrugada”.
E as pombas vão e vêm…
Para um verdadeiro escritor, ou poeta, escrever é de novo descobrir o mundo. Vê-lo com os olhos que nunca outro o viu.
Todavia, a maior parte deles, repete os clichês.
Por isso mesmo, Vallery dizia que não seria capaz de escrever um romance. Porque,.em alguma parte dele, teria de escrever: “Madame, comment allez vous?”
“Funeral de um lavrador” (João Cabral de Melo Neto / Chico Buarque), com Rolando Boldrin e Renato Teixeira
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=0VWbHb8QCyo[/youtube]
O Estrela Binária tem a honra de receber em sua órbita o consagrado escritor Antonio Carlos Viana, que por intermédio do nosso colaborador Adalberto de Oliveira Souza nos deu a honra de enviar dois contos para ser publicados aqui. Nascido em Aracaju, Sergipe, Antonio Carlos Viana, não se considera um “escritor regional”, pois suas histórias transcorrem tanto no interior nordestino quanto em Paris. Morou, ainda, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. É mestre em teoria literária pela PUC-RS e doutor em literatura comparada pela Universidade de Nice, França. Tradutor e professor universitário aposentado, publicou, entre outros, os livros “Brincar de manja” (Cátedra, 1974), “Em pleno castigo” (São Paulo, Hucitec, 1981), “O meio do mundo” (Libra & Libra, 1993), tendo recebido o prêmio APCA 2009 de melhor livro de contos por “Cine privê”.
Nossa alegria eram os enterros. A noite era de muita cantoria, as velhas berrando as dores, numa voz sofrida, cortada apenas pelo choro de um ou outro parente do morto. Era um dia de festa para quem não tinha nada de melhor sobre a face da Terra. Só os maiores podiam acompanhar no outro dia, os pequenos não, ficavam logo cansados. Por isso todos nós queríamos crescer depressa. Quem podia ir punha a melhor roupa e ficava aflito para o caixão aparecer na porta cheia de gente. Era nossa chance de ir além daquele lugar de casas acanhadas, onde mal chegavam os agentes de saúde uma vez por ano. O enterro não tinha hora para sair, dependia da maré. Quando baixava, fosse qual fosse a hora, lá íamos nós, sempre sob um sol de comer os miolos. Antes, íamos caçar pedras, com que enchíamos os bolsos. Quanto mais redondinhas melhor.
A hora da despedida era sempre a mais difícil, os parentes se deitavam sobre o caixão como se não quisessem deixá-lo partir. Os gritos eram de enlouquecer e contaminavam até os que não tinham nada a ver com a história. Impossível não sentir pelo menos um nó na garganta. Cada um pegava sua água, porque a jornada era longa. Quem podia levava alguma coisa para matar a fome. Tempo de caju, levávamos caju. Tempo de goiaba, levávamos goiaba. As mulheres abriam as sombrinhas desbotadas, os homens iam de chapéu, os meninos amarravam uma camisa na cabeça.
O caminho até o cemitério era pelo meio do mangue, onde corriam uns caranguejinhos pequenos chamados gorés, que davam ali como praga. Quando a maré subia, os coitados ficavam desamparados nas trilhas de barro não invadidas pela água. O cortejo ia no maior silêncio, só quebrado pelo chape-chape da água e de nossos pés esmagando os gorezinhos, sem nenhuma piedade. Dava até aflição por dentro. Contávamos baixinho para ver quem esmagava mais. As casas sumiam pouco a pouco, até só restar a maré, nós e o morto. O mangue era um nunca mais acabar de água, era só água, água e água. Às vezes o vento soprava, um sopro leve e bom, que nos trazia um cheiro de mato verde misturado com sal. Quando o enterro era de tarde, tínhamos de apressar o passo, a luz do dia não demorava a ceder.
No meio do caminho, quando os homens encontravam um lugar mais espaçado, arriavam o caixão pra aliviar o peito da opressão do cansaço. Enxugavam a testa e diziam que tinham de correr porque ainda faltava um bocado. Parecia que o morto pesava mais do que em vida. O maior medo era que o cemitério fechasse e aí iam ter de voltar com o caixão. Era raro acontecer, mas quando acontecia, tínhamos de queimar castanha a noite inteira e muito velame-do-campo para espantar o mau cheiro que saía pelas brechas das tábuas ordinárias. Só assim o morto não ficava sozinho. Era bom porque a fumaça também espantava os mosquitos.
Depois do descanso, retomávamos o caminho. Quando chegávamos mais adiante, os homens arriavam o caixão mais uma vez e ficavam como se estivessem perdidos. A gente olhava para os quatro cantos e só via lama, água e muito, muito céu. Um descampado de meter medo se caísse um aguaceiro. Ainda bem que não caía. Depois de muito caminhar, chegávamos a uma pequena elevação com uma santa-cruz, o único ponto a nos orientar. Ela marcava o lugar onde um homem fora assassinado, coisa de muito tempo, quando muitos de nós ainda nem eram nascidos. Era o momento mais esperado. Tirávamos as pedras do bolso e jogávamos na cruz. Diziam que eram para espantar o espírito do morto e ele nunca mais voltar para assustar os vivos.
Quando chegávamos ao cemitério, a cova, felizmente, já estava aberta. Não tinha padre, não tinha nada, só muita areia e barro em volta do buraco. O coveiro nos esperava como quem espera um inimigo. Sempre reclamava da demora, que não era brincadeira ficar naquele desamparo, sob sol tão quente. Tinha só uma casinha onde ele guardava seus apetrechos, as pás e as enxadas, e também um carrinho de mão, onde a gente botava caixão de anjinho para não ficar no chão. Em cima das covas, só uma cruz com o nome do morto, os túmulos mais antigos cobertos de muito mato, só um ou outro tinha um vaso com uma flor de plástico derretida pelo sol. Os homens se benziam, a gente acompanhava, uma voz de mulher puxava uma salve-rainha, mãe de misericórdia, esperança nossa, enquanto o caixão descia devagarinho. Só um ou outro soluço, mas era raro. Os que choravam mesmo ficavam em casa para não atrapalhar. Depois era só o baticum dos bolos de barro, cada um escolhia o melhor torrão, que jogava com a maior força no caixão, como se estivesse se vingando do morto. A sorte é que quem morre não sente nada, nem barulho, nem tristeza, nem saudade, nada. Uma bênção, como diziam.
A volta era sempre mais difícil, não por causa do morto que a gente deixou lá, mas por causa da maré. Os chinelos dependurados nos dedos, pisa aqui, pisa ali, para não escorregar ou cair nas areias movediças. Por isso levávamos sempre um cachorro, que ia na frente. Quando a maré tinha baixado de vez, a briga era com a lama, qualquer desatenção nos fazia escorregar e chegar em casa mais melados do que um catador de caranguejo. Quando era maré alta, era melhor. As mulheres arregaçavam as saias até as coxas. Nas noites de lua cheia, era um deslumbramento, as nesgas de carne cintilavam junto com o resplendor da água. Quando uma se atolava, as risadas estouravam e todo mundo se juntava para puxá-la do atoleiro. Chegávamos em casa muito tarde da noite, todos cansados e sujos, só não tristes, já esquecidos do morto.