“Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar”
“Cais” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos), com Milton e Carminho
“Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar”
“Cais” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos), com Milton e Carminho
Adalberto de Oliveira Souza
O SONHO E O SONO
Numa curva
cacos ferem passos
travam o horizonte.
Traços
sabem amargos
o expoente
do sonho e, no sono,
dura certeza
cifrada em duas,
dois tempos somados.
Um, ocorrido na respiração
deitado no sono.
Outro,
golpe contínuo,
ou graça passageira,
ou pesadelo preciso,
livro multicor,
ligando ressoante
sonho e sono
por uma cicatriz
ardente,
invisível
por um triz e
distante do cais da manhã.
Annibal Augusto Gama
Que diabo de língua é esta, em que “retreta” significa “formatura de soldados ao fim do dia para se verificar se todos estão presentes”, “criada de serviço particular da rainha”, “concerto popular de uma banda de música em praça pública” e “latrina”?
Dirão que em todos os idiomas é a mesma coisa, que um vocábulo pode significar muitas coisas, diversas umas das outras, e até contraditórias. E é verdade.
No entanto, os dicionários têm duzentas, trezentas mil palavras. Certo é, porém, que não usamos senão umas seiscentas palavras para nossa comunicação cotidiana, e olhe lá. Há variações, como quando dizemos para uma mulher: “Eu te amo”, “eu te adoro”, “eu te quero”, “sou capaz da matar por você”, conforme o grau da paixão ou da mentira. À minha amada eu vou buscar a Lua, e ponho as estrelas no seu colo.
E ainda há aqueles que inventam palavras, os neologismos, e outros que vão buscar as mais arcaicas palavras, ou usam da gíria, como se usava “o tufo do mufurufo”.
Não bastasse isso, enxertamos palavras e expressões francesas, inglesas, italianas, espanholas, em nossos textos e em nossos diálogos. E nem me refiro ao latim, com os seus conceitos lapidares.
No entanto, no entanto, estamos, de uns setenta anos para cá, diante das gerações sem palavras, em que um cara diz para outro: “Ô bicho, me dá essa coisa aí para fazer uma coisa”.
A perversão da língua e da linguagem, nos canais de televisão, no comércio, na publicidade, é também uma realidade. Ou o estropiamento da pronúncia das palavras e os pontapés na gramática.
Vai ainda que, cada profissão tem o seu vocabulário próprio. Escutem uma conversa entre dois médicos, ou entre dois advogados.
O idioma universal, artificialmente criado, como o esperanto, ou o volapute, foi um ideal que malogrou.
Achamo-nos no pleno reinado da Torre de Babel.
Não é difícil, com isto tudo, verificar que estamos constantemente enganados, fraudados, furtados, principalmente pelos políticos e pelos economistas.
Há ainda uma linguagem supostamente técnica, para nos confundir
O meio não é a mensagem, é a massagem e o ruído.
E que se falar da linguagem dos gestos, da chamada linguagem corporal, dos sinais, dos símbolos?
Que é que eu hei de te dizer, minha amada? Deito a cabeça no teu colo e te contemplo em silêncio.
“A negação de Cristo” (Caravaggio)
CONSENTIMENTO
Neguei
Neguei
Neguei
Muito mais do que três vezes
Este amor sem vez.
Quando o galo cantou,
Enrouquecido me calei.
(Quem cala só sente.)
“Negue” (Adelino Moreira / Enzo de Almeida Passos), com Maria Bethânia
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=s_yCl9DS7rY[/youtube]
Selma Barcellos
Sempre achei que a partir da análise de parábolas iniciais é possível saber se o sistema será estocástico ou não. E que o Conjunto de Cantor, abstração em que na sua forma ideal o terço do meio de uma linha no valor entre 0 e 1 é removido ao infinito, deixando para trás uma população de pontos de corte não concentrados em valor especial, é a solução.
De forma que aplausos tardios para o merecidamente contemplado Artur Avila, aquele moço formidável da Matemática. Cá de minha parte, permaneço em total contemplação com a entidade, inatingível desde os bancos escolares.
Jamais gostei de matemática, gente. Era pura e aplicada, isso eu era. Nunca entreguei prova só assinada, como fazia Quintana em sua igual ojeriza à matéria, nem fui reprovada. Mas, balão cativo, sonhava em me evadir daquelas aulas.
Minha paixão sempre foi português. Adorava calcular a raiz etimológica de palavras primas, decifrar frações próprias e ordinárias da alma dos poetas…
Álgebra, sim, me encantava. Tinha letrinhas.
Mestre Millôr está contigo e não abre, Selminha…
Poesia Matemática
Millôr Fernandes
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
“Quem és tu?”, indagou ele
em ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.
“Ausência” (Vinicius de Moraes / Marília Medalha), com Marília
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=iku6IIqIa1Q[/youtube]
Deixa secar no meu rosto
Esse pranto de amor que a presença desatou
Deixa passar o desgosto
Esse gosto da ausência que me restou
Eu tinha feito da saudade
A minha amiga mais constante
E ela a cada instante
Me pedia pra esperar.
E foi tudo o que eu fiz, te esperei tanto
Tão sozinha no meu canto
Tendo apenas o meu canto pra cantar
Por isso deixa que o meu pensamento
Ainda lembre um momento a saudade que eu vivi
A tua imagem fiel
Que hoje volta ao meu lado
E que eu sinto que perdi.
Adalberto de Oliveira Souza
AUSÊNCIAS
Ausências inesquecíveis,
ausências perecíveis,
vis,
ignotas e abjetas.
Ausências sempre atuais.
Assíduas, pontuais,
impressionantes.
Cadeiras vazias,
sofás abandonados,
poltronas corroídas,
cidades-fantasmas.
Ausências que nos abalam.
e que sentimos
nas nossas ausências,
dolorosas, amorosas e,
mesmo, edificantes.
Outras, nem a falta sentimos.
Nos abandonamos a essas ausências,
que nos acompanham,
percebemos pouco ou muito
sofrendo ou indiferentes,
até felizes.
De qualquer forma,
elas são tão marcantes.
Às vezes as perseguimos,
quando se fazem tão presentes e
quando nos levam para alhures, algures,
nenhures e ficamos intácteis e transtormados e
transformados
ou impassíveis.
Amiúde, nem a falta sentimos,
entretanto seguramente,
voltamos a nos entregar a essas ausências,
as percebemos.
Elas são realmente marcantes,
perduráveis,
indefectíveis.
“Modinha” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), com Robertá Sá e Yamandu Costa
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=i0I2jN0pGRY[/youtube]
Annibal Augusto Gama
Se Brás Cubas pretendeu inventar e fabricar um emplasto contra a hipocondria e a melancolia, creio que uma droga mais benfazeja, em pílulas, em xarope, ou em pó, deveria ser fabricada contra o tédio. Acho que esta flor amarela do tédio, com o seu odor putrecente, é que está definhando a humanidade e acabará por nos sepultar a todos.
Vamos para um lugar e para outro, e é sempre a mesma coisa, sempre o mesmo aborrecido contorno, que faz muitos de nós nos afogarmos no álcool, ou nos afogarmos propriamente dito. Vai ano, entra ano, são as mesmas comemorações de nada. Já não nos surpreendemos com as matanças, a ladroeira, a corrupção, a miséria, a fome, e as mesmas doenças.
Tão aborrecida se tornou a existência, que aquele Major inglês, referido por Monteiro Lobato, suicidou-se, cansado de desabotoar e abotoar a farda todos os dias.
Não há publicidade (e ela se produz às toneladas) que nos convença de que esta ou aquela cidade é a melhor que existe, e de que vivemos no melhor dos mundos. Você viaja para Londres, para Paris, para Viena, para Nova Iorque, para Amsterdã, ou para São Bento do Sapucaí, e tudo é a mesmíssima coisa.
Os jornais publicam semanalmente um suplemento de turismo, há uma agência de viagens em cada esquina, mas você vai ou fica, para continuar enfadado. Aqui, no Brasil, então, tudo é repetitivo: os mesmos canalhas, os mesmos bandidos repetem-se nas instituições, e suas caras estão nos canais de televisão e nas revistas, todas as horas. Já não há nem mesmo anedotas novas. Padronizou-se a burrice, nesta aldeia global, e não há como escapar. Homens e mulheres vestem a mesma roupa. Já não há nenhuma idéia nova.
“Sobre a minh´alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas ao vento!”
É o que diz Olavo Bilac, no soneto “Tédio”. E é o mesmo “spleen” de Baudelaire, em quatro poemas:
“Quand le ciel bas et lourde pèse comme un couvercle
Sur l´esprit gémissant en proie aux longs ennuis,
Et que de l´horizon embrassant tout le cercle
Il nous verse un jour noir plus triste que les nuits.”
Urge um remédio contra o tédio. Será a obra de caridade maior que se pode fazer a todos nós.
Enquanto ele não aparece, vamos desvivendo.