Além de Ziraldo, encontrei-me com Michelangelo Merisi, o Caravaggio, na semana passada em São Paulo.
Terça-feira, dia 7, aproveitei o intervalo para o almoço de um seminário jurídico de que participava e corri até o Masp para dar uma olhada na exposição “Caravaggio e seus seguidores”. Não sabia que às terças a entrada é gratuita para todos, e embora chegasse uns quinze minutos antes da abertura, peguei uma fila que dava voltas no famoso vão do Masp. Mesmo assim, demorou menos do que esperava, pouco mais de uma hora, para conseguir entrar.
Penso às vezes que minha alma é barroca, tanto me comovo com a arte daquela época. Talvez todas as almas sejam barrocas.
Caravaggio e Velazquez, em especial, provocam em mim sensações e sentimentos que sequer consigo expressar. Diante de “Las Meninas” no Prado fiquei paralisado nem sei por quanto tempo, sem disposição para prosseguir na visita. Consegui afinal fazê-lo, mas antes de ir embora, voltei para de novo me paralisar em frente do quadro, sem coragem de me despedir.
Algo parecido se repetiu desta vez com “San Girolamo che scrive” exibido na mostra do Masp, com outros seis quadros reconhecidamente de Caravaggio, e mais alguns dos seus seguidores.
“São Jerônimo que escreve” é o primeiro com que se depara ao ingressar na exposição. De início várias pessoas se acumularam à minha frente e esperei, paciente, que se afastassem em direção às outras obras. Ao ficar sozinho pude me transportar e transtornar contemplando o quadro.
Como é característico de Caravaggio, a escuridão toma conta da composição, enquanto um jorro de luz, que vem não se sabe de onde, resplandece a cabeça calva, lustrosa e as mãos de São Jerônimo.
A caveira ao lado, também sob o foco de luz, contrasta e compactua com o crânio do santo, numa mescla de sagrado e profano, real e metafísico, “carnalidade com o êxtase místico”, que “revela e oculta, cria uma relação extraordinária entre ver e não ver”, segundo bem anota Fabio Magalhães, um dos curadores da mostra.
E vi então a unha do polegar da mão direita, que sustém a pena!
Meu Deus, o que é aquilo?
Os matizes delicadíssimos da coloração, as ranhuras, as sujidades entranhadas sob a ponta da unha! E quando se desloca diante do quadro, a incidência da luz se modifica e outros detalhes e tonalidades se revelam!
Cheguei a pensar seriamente em ir embora sem ver mais nada, para levar comigo o impacto daquela visão.
Não resisti, porém, a percorrer as outras maravilhas, como o escudo da “Medusa Murtola”, a primeira versão da Medusa da Galleria degli Uffizi, em Florença. Consta que Caravaggio a pintou olhando-se no espelho, encarnando o monstro e concebendo a expressão de espanto e pavor da decapitação.
Há, ainda, duas versões do célebre “San Francesco in meditazione”, uma admitida como obra de Caravaggio (que me pareceu claramente superior) e outra, uma cópia, que pode ou não ter sido feita por ele.
Depois de ver toda a exposição, voltei ao São Jerônimo e lá permaneci por um bom tempo mais. Como nos bons tempos de estudante, encanei solenemente, e sem nenhuma culpa, as atividades daquela tarde no seminário jurídico. Não tinha cabeça para mais nada.
Nunca mais escaparei das unhas de Caravaggio e do seu São Jerônimo que escreve.
Nenhuma reprodução será capaz de mostrar o que vi, senti e tentei escrever acima.
Quanta luz… Da tela e do texto.
Sim, Antonio, são barrocas as almas.
Beijocas!