Posts by Antonio Carlos A. Gama

O julgamento celestial

 

Nestes tempos tão bicudos

por que passa a Madre Igreja

(dizem que em decadência),

Papa indo, Papa vindo,

não custa se precatar,

ouvindo a voz da experiência…

 

 

              Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1 

 

 

 

 

 

 

Suponho que no céu, como aqui, há várias instâncias, desde um juiz singular até os tribunais coletivos e o Supremo Tribunal Celeste. Desta maneira, o pecador pode recorrer de um juiz para outro, e ir até o Supremo Tribunal Celeste, quando a pena ou a absolvição serão definitivas. Enquanto isso, ele gozará de liberdade, e poderá conviver com os santos. Advogados e chicanistas é que não devem faltar por lá, e é de se crer que também haja algum compadrismo, e quem vá cochichar na orelha dos juízes. As questões de ordem igualmente serão muitas, e suspenderão o julgamento de mérito. As nulidades processuais, ilegitimidade das partes, e outras, inépcia da inicial, também hão de valer.  Afinal os julgamentos protelar-se-ão, pois não deixará de existir algum juiz que peça vista dos autos, e fique com eles por séculos e séculos, porque tem a eternidade a seu favor. A prescrição também valerá, bem como ação revisional. Por último, cansados, os juízes baterão o martelo. A suspensão condicional da pena será cumprida no purgatório. Assim, dificilmente o pecador será condenado definitivamente, com trânsito em julgado da sentença, e será enviado para o inferno. O Promotor de Justiça há de ser, naturalmente, o Diabo. Os advogados, os nossos santos de devoção. E há santos de grande influência e prestígio, sempre ouvidos com acatamento, como Nossa Senhora, São Francisco de Assis, e Santo Antônio, que conseguiu tirar o pai da forca.

Eu, por mim, já outorguei mandato, com plenos poderes, a Nossa Senhora Aparecida e a Santo Antônio. Se for o caso, ela ou ele impetrarão habeas-corpus, para mim. E hão de obtê-lo. 

Cada dia e cada noite, levo novos subsídios para os meus defensores, através de orações. Tenho também alguns álibis: não estava ali, nem lá, quando o fato aconteceu. 

Há ainda os pecados veniais, e de bagatelas, que passam, sem julgamento. E a prisão domiciliar, por força, existirá.

Enquanto isso, a citação pode ser evitada, achando-se o réu em lugar incerto e não sabido. Por isso mesmo, não dou o meu endereço a ninguém.

Abuso processual? Não, senhor, tenho o direito de me defender.

Creio também que lá se fazem reformas processuais e do Código Penal, e alguns crimes de outrora foram abolidos. Nem é admissível a “reformatio in pejus”. 

Por isso, estou tranquilo, e acho que não irei para o inferno. 

Vocês, meus amigos e eventuais leitores, devem fazer como eu: contratem logo os seus advogados 

Há ainda o juiz arbitral, que são os padres, nos seus confessionários.

Só vai para o inferno quem quer, e por pecados cabeludos.

Ainda assim, acho que as sentenças celestes jamais transitam em julgado. Adão e Eva estiveram lá por bons tempos, e Cristo não foi buscá-los?

O Diabo é um mau causídico, e acabará por fechar a sua banca.

 

 

Michelangelo (O Juízo Final, Capela Sistina)

 “Juízo Final”, Michelangelo, Capela Sistina

 

 

Retalhos

 

 

Carnaval (Portinari) 

 

O carnaval passou, ou ainda não, pois que em Salvador e Recife a festa continua pelo menos até o próximo domingo, e no sábado haverá o desfile das Escolas campeãs no Rio de Janeiro. 

Há algum tempo o desfile das Escolas de Samba do Rio deixou de ser festa autenticamente popular para se tornar mais um espetáculo desta nossa sociedade do espetáculo. Com rara exceção, os autênticos foliões foram substituídos pelos famosos e turistas que se fazem de foliões, e os tais enredos patrocinados são mais malucos do que o “Samba do Crioulo Doido”, do inesquecível Sérgio Porto (cavalo mangalarga marchador? Façam-me o favor!). Por isso fiquei muito contente com a vitória de Vila Isabel de Noel, botando água no feijão e enfeitiçando com o samba-enredo antológico dos mestres Martinho da Vila e Arlindo Cruz (parece que também houve patrocínio, mas pelo menos o enredo e o seu desenvolvimento foram no velho estilo).

Afora o maravilhoso trevo pernambucano e alguns outros gêneros locais, o auge do carnaval como festa popular se alimentava da sua canção símbolo, as deliciosas marchinhas. Além de perfeitas para se brincar o carnaval, com variações rítmicas que fazem os foliões ora pular, ora deslizar languidamente. As marchinhas com suas letras fáceis de decorar, irônicas, maliciosas, críticas ou românticas, sempre politicamente incorretas (“O teu cabelo não nega, mulata […] mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero o teu amor”; “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é?”)  refletiam o próprio espírito libertário do carnaval, a irreverência da voz do povo, hoje ensurdecida pelo aparato estrondoso dos trios elétricos, que são para mim um verdadeiro flagelo.

As origens do carnaval se perdem no tempo. Segundo os estudiosos, remontam às orgias pagãs do Egito e da Grécia, ou às bacanais de Roma. No Brasil, o carnaval foi introduzido pelos portugueses, com seu entrudo grosseiro e agressivo. Pouco a pouco, o nosso carnaval foi ganhando feições próprias, mais doces e marotas, da mesma forma que colocamos açúcar na ríspida pronúncia lusitana.

No começo, a trilha sonora do nosso carnaval foram as polcas e valsas abrasileiradas, as cantigas e quadrilhas, o xote e até mesmo trechos de ópera, que passaram a conviver com o desabusado maxixe, do qual teria se originado o samba. 

A célebre Pelo Telefone, primeira canção a ser gravada com a designação de samba — na verdade um maxixe com diversas variantes, apropriado e glosado por Donga (Ernesto dos Santos) —, foi o grande sucesso do carnaval de 1917. Naquela mesma época também se formaram as primeiras sociedades carnavalescas, que mais tarde se transformariam nas Escolas de Samba.

Antes disso, porém, em 1899, a pioneiríssima Chiquinha Gonzaga já havia composto a marcha-rancho Ó Abre Alas, para o cordão Rosa de Ouro, que é cantada até hoje e tida como o marco das canções feitas especialmente para o carnaval, com letra e melodia simples e fáceis de cantar.

As marchinhas propriamente ditas começaram a se disseminar a partir da segunda década do século XX e alcançaram o seu apogeu nos anos 30, 40 e 50. Declinaram paulatinamente nos anos 60, até serem eclipsadas por outros gêneros, entre os quais os sambas-enredo, que foram ganhando espaço e ligeireza, na mesma proporção em que perderam qualidade. Daí para a praga da axé-music foi um pulo ou um furo, que redundou no carnaval redundante e pasteurizado de hoje.

Os nossos maiores compositores, todos eles, compuseram canções carnavalescas inesquecíveis: Noel Rosa, Wilson Batista, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Herivelto Martins, Adoniran Barbosa, até mesmo Chico Buarque e Caetano Veloso, para citar apenas alguns. Mas os dois grandes craques da marchinha foram sem dúvida Lamartine Babo (A,E,I,O,U; Cantores de Rádio; Grau Dez, Joujoux e Balangandãs; Linda Morena; O teu cabelo não nega) e Braguinha, o João de Barro (As Pastorinhas ― em parceria com Noel; Pirata da perna de pau; Chiquita Bacana, Touradas de Madri; Yes! Nós temos banana; Balancê, Vai com jeito; Linda loirinha). Não se pode esquecer João Roberto Kelly que também foi um grande compositor de marchinhas (talvez o último dos moicanos), e emplacou vários sucessos (Rancho da Praça 11 ― em parceria com Chico Anysio; Mulata iê iê iê; Cabeleira do Zezé). 

As marchinhas sobrevivem e ganham novo fôlego graças aos blocos de rua do Rio de Janeiro, que têm aumentado extraordinariamente a cada ano, alguns arrastando um milhão de pessoas pelas ruas (o que também já é demais), numa demonstração inequívoca do fascínio que os velhos carnavais ainda exercem sobre os verdadeiros foliões.

Na minha memória afetiva, as duas últimas grandes canções de carnaval foram as marchas-rancho Máscara Negra (de Zé Keti e Pereira Mattos, clique no título para ouvir), que ficou com o 1º lugar na premiação promovida em 1967 pela Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro e tem a maestria de alternar o andamento da marcha-rancho (Quanto riso! Oh, quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão) com o bulício da marchinha (Vou beijar-te agora / Não me leve a mal / Hoje é carnaval), e Bandeira Branca (de Max Nunes e Laércio Alves, idem), o canto do cisne da grande estrela Dalva de Oliveira e também o grito agônico dos carnavais de outrora, que se foram para nunca mais.

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=hVUUYiINSe0[/youtube]

 

 

Ao meu brotinho legal

 

 

Passado o Carnaval, Selma bate um papo reto com a Selminha dezesseis.
E o que diriam vocês para vocês aos dezesseis?
Vão daí…

 

   Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

(by Dani Shitagi)

 

 

O que eu diria à jovem Selminha aos 16?

 

Dance mais de rosto colado. A mãe é muito exagerada.

Pense duas vezes antes de abandonar o balé. Também, querendo abraçar o mundo com as pernas! Inglês, francês, piano…

Curta muito a viagem de presente pra Europa. Nunca mais 18 anos.

Indecisa entre Paul Newman e Robert Redford, né? Super te entendo. Raindrops keep fallin’ on my head…

Fumar jamais. Nisso a mãe tem razão. Nossa pele agradece. Mas se joga no protetor solar. Pintinhas no colo. Câmbio.

Forme-se em Jornalismo. Escreva. Namore entre os pilotis da PUC. Continue escrevendo. No meio do caminho, um prêmio, um blog (depois explico o que é, você vai adorar)…

Mas… na boa? Será com crianças, giz e apagador que você irá se esbaldar. Impossível alguém profissionalmente mais realizada, acredite.

Sabe aquela viagem aos 18? Casamento na sequência. Nosso belo príncipe, à espreita, só aguardando a hora de apear. Dois filhos fantásticos. E atenção para o momento Guinness Book: gravidez do segundo com o primeiro completando 1 mês (mês!) e 15 dias de nascido. Que tal? Brasília… Hehe.

Próximos capítulos? O mar de Itacoatiara, a rede na varanda, o Morro das Andorinhas, os ipês em flor, os meninos e os boxers crescendo, aprontando, as temporadas na Califa…

Depois conto mais. A gente se esbarra.

Minha jovem Selminha, obrigada pelo astral, pelo bom humor… Como diz a canção, cada vez que a bruxa me assombra, é você quem me dá a mão.

Beije muuuito o pai e a mãe. Saudade imensa daqueles dois.

É nóis.

 

Visita! Algo me diz que você ainda guarda aquela gibizada com seus ídolos de infância…

 

 

 

 

Uma rosa nasceu…

 

 

“Carolina” (Chico Buarque) Chico Buarque / Carminho

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=lz6ODngWwcY[/youtube]

 

 

 

A primeira menina

 

 

PARA CAROLINA,

QUE UM DIA ME FEZ PAI,

E NOUTRO BELO DIA, AVÔ.

 

 photo

 

 

                                    Esta a sina da menina:

                                    dar trabalho à mamãe

                                    até um dia luzidio

                                    em que ela se torna a mãe.

 

                                    Mesmo sendo um sonho lindo

                                    da menina Carolina

                                    só se fala em Manuela

                                    e se esquece da mãe dela!

 

                                    Mas hoje o dia é só dela

                                    da menina Carolina

                                    que nos gerou Manuela

                                    de presente no seu ventre.

 

                                    O Marcel está no céu

                                    e os avós ainda além,

                                    mas não duvide ninguém

                                    que a primeira é Carolina

                                    cuja sina enternece,

                                   e da primeira menina

                                   a gente nunca se esquece.

 

 

Carol, Marcel, Manu

 

 

Perfil do Instante

 

      Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2) 

 

 

 

 

 

 

                                                            PERFIL DO INSTANTE

 

 

                                                Para a posse do amanhã,

                                                é preciso improvisar

                                                um canto retorcido,

                                                uma carícia torturante.

 

                                                Não se tem o tempo,

                                                vasculham-se todos os tempos,

                                                e simplesmente,

                                                permanecemos.

 

                                                Então,

                                                levantamos do chão,

                                                começamos uma festa

                                                revolta,

                                                báquica,

                                                cabalística,

                                                gregoriana,

                                                labiríntica

                                                e um circo é formado.

 

                                               Trapezistas,

                                               coristas com cavalos,

                                               palhaços agrupados

                                               e num passe de mágica

                                               o mundo se recompõe.

 

                                               Por isso,

                                               aceita-se o momento

                                               com o apego terno

                                               e tênue

                                               pois tudo se esvai

                                               e nova providência

                                               urge que se tome

                                               porque o amanhã virá

                                               implacável.

 

carnaval 

 

Nota da Redação:  Um poema é tanto melhor tantas as leituras que enseja. Talvez não seja esse o dizer do poeta. Mas ao reencontrar o poema (do livro “Captura”, São Paulo, 1989,  João Scortecci Editora) assim o reli e capturei, neste instante. Apenas um dos muitos perfis do instante.

 

 

Na boca!

 

 

 

manuel-bandeira-com-livros

 

 

 

                                                                   NA BOCA

 

                                                                                                                          Manuel Bandeira

 

 

              Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval

              Paixão

              Ciúme

              Dor daquilo que não se pode dizer

 

              Felizmente existe o álcool na vida

              e nos três dias de carnaval éter de lança-perfume

              Quem me dera ser como o rapaz desvairado!

              O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas

              e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:

              ― Na boca! Na boca!

              Umas davam-lhe as costas com repugnância

              outras porém faziam-lhe a vontade.

 

              Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

 

              Dorinha meu amor…

              Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro: ― Na boca! Na boca!