Posts by Antonio Carlos A. Gama

Meu tempo é hoje

 

 

No esplêndido documentário “Meu tempo é hoje” (a que tornei a assistir ontem) Paulinho da Viola fala bastante sobre o tempo, mas diz não ter saudade, nem viver no passado: “Meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado, o passado vive em mim”

E se o passado, tudo aquilo que nos toca e sensibiliza, as coisas boas, que passamos ou de que apenas sabemos, levamos conosco, vivem com a gente, então é presente.

Paulinho, na sua majestosa singeleza, completa setenta anos, e o presente é nosso de ser presente com ele.

 

 

[youtube]https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=z4Iq01eom-I[/youtube]

 

 

 P.S. O outro Paulinho, amigo amigo, do poema abaixo, também é assim. Leva consigo o passado e dele faz presente a ele e a nós.

 

 

Amigo amigo

 

 

Enquanto não convenço Paulinho a se tornar colaborador permanente do “Estrela Binária”, subtraio-lhe os versos amigos, de aperitivo para os amigos.

 

 

 

 

Amigo amigo

 

Paulinho Lima

 

                                           Olá, amigo! Estou a fim de papo.

                                           O bar amigo enfeita a alma de quem espera.

                                           A música instiga a inspiração de ontem.

                                           A bebida cheira desejo de deuses.

 

                                           A cidade, amigo, grita, clama, verseja.

                                           E eu, mortal amigo

                                           Ouço o silêncio dos mudos e dos surdos

 

                                           Tenho vontade de falar.

                                           Escolho você amigo.

                                           A sede não me impede de dar os goles que não dei

                                           E o melhor, amigo, vou continuar com sede.

 

                                           Cruzo o olhar amigo.

                                           Vejo mesas vazias com cadeiras cheias,

                                           Copos melancólicos sintonizando garrafas alegres.

                                           O alarido amigo enforca o meu olhar.

 

                                           Palpito sílabas, todas sem o adereço das palavras.

 

                                           O tempo, acelerado amigo, contrasta com a lerdeza das horas.

                                           Meu pensamento amigo acompanha a fumaça dos cigarros apagados.

 

                                           Amigo! De pouco falar e nada ouvir a palavra não sai.

 

                                           Amigo amigo! Será que vou viver só com as minhas sílabas? 

 

 

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Ladra com brinco de pérola

 

 

 

 

Naquela semana o já veterano promotor de justiça era o encarregado de atender o público (não existia ainda a Defensoria Pública, e os promotores cobriam grande parte da demanda), que abarrotava a salinha de espera e transbordava pelo corredor afora.

Ouvia (sobretudo queriam ser ouvidos), esclarecia, aconselhava, orientava, conciliava, expedia intimações, pedia aos cartórios os autos do processo para explicar o que estava acontecendo, e por aí ia…

Passava das 19 horas quando último cliente do dia entrou.

― Boa tarde.

― Boa tarde. Sente-se, por favor.

Acomodou-se numa das poltronas, bem na pontinha, as pernas juntas, as mãos entrelaçadas sobre o colo.

― Pois não. No que posso ajudar o senhor?

― Doutor, o seguinte é esse. Namorei com a Lucinda. Ela diz que não quer nada comigo, mas ficou com o meu tesão. Quero que ela devolva o meu tesão, doutor! 

Contendo o riso, pediu para que repetisse a história. Repetiu igualzinho.

Fazer o quê?

A tarde caía. Estava exausto. Resolveu se divertir um pouco com aquilo.

― Um instantinho só, que vou chamar um especialista para o seu caso.

Foi até o gabinete do outro promotor veterano, amigo desde o concurso de ingresso na carreira, que sempre fora um grande gozador e vivia aprontando com os outros promotores, juízes, advogados, funcionários. Ele já estava de saída, mas o levou para ouvir o relato.

― Por favor, o senhor pode explicar de novo o seu problema aqui para o meu colega?

Contou tudinho do mesmo jeito.

― Mas isso é muito grave ― disse logo o especialista. Apropriação indébita de tesão! Vamos mandar uma intimação para a moça. O senhor volta no dia marcado para resolvermos tudo.

Depois que o cliente saiu, o expert pontificou:

― Essa Lucinda deve ser alguma piranha. Precisamos ver como ela é. Coitado do rapaz…

No dia e hora aprazados, Lucinda, linda e na flor dos seus 16 anos, recatada tal a moça com brinco de pérola, compareceu acompanhada dos pais cheios de zelo.

Ficaram apenas com os três no gabinete. Arrependidos e envergonhados como dois moleques apanhados com a boca na botija, buscaram uma saída desesperada para o imbróglio.

― Vocês conhecem o rapaz que está ali na sala de espera? Ele foi namorado da menina?

O pai tomou a palavra:

― Conhecemos sim, doutor. É o Armandinho, mora na nossa quadra, filho do Seu Armando da farmácia. Ele é meio gardenal. Vive amolando a Lucinda, mas eles nunca namoraram nem nada.

― Deus me livre!, reforçou Lucinda.

― Pois é. Ele esteve aqui contando uma história estranha e falando da Lucinda. Percebemos que deve ter algum problema e ficamos preocupados com o que possa fazer. Por isso chamamos vocês aqui, para alertar. Tenham cuidado. Se ele continuar a incomodar ou fizer alguma ameaça, voltem aqui ou chamem a Polícia.

― Ele não faz nada não, doutor. É um pobre diabo. Mas vamos ficar de olho. Muito obrigado, responde o pai.

Dispensaram a família penhorada e só depois de uns 20 minutos mandaram entrar o Armandinho.

― Tudo resolvido, Seu Armando. Falamos com a Lucinda, o pai e a mãe dela. Eles já foram embora e deixaram o seu tesão na sua casa. Quando o senhor voltar, vai encontrar ele lá. Mas preste atenção: não se aproxime nunca mais da Lucinda, porque se o seu tesão ficar com ela de novo vai dar usucapião,  ela pode ficar com ele para sempre e não poderemos fazer mais nada… Entendeu bem?

― Entendi, doutor. Pode deixar. Muito obrigado, doutor.

Graças aos céus, nenhum dos interessados jamais voltou para reclamar de algo.

 

 

A voz rouca da crooner

 

 

 

 

 

 

Não sei se chega a ser um fetiche, ou se trata de simples maluquice.

Me apaixono fulminante e perdidamente por todas as mulheres que vejo cantando com razoável talento e algum charme.

Quero me declarar a elas, largar tudo por elas, sumir dali com elas…

Se estiver meio mamado e for num fim de noite, aí então é preciso ter cuidado…

São demais os perigos dessa vida!

Menos mal que passa logo, assim como começou.

E posso continuar a ouvi-las, estrelas, sem receio de perdê-las.

Mas, a uma crooner de voz rouca resistir quem há de?

 

 

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 Áurea Martins, “A voz rouca da crooner”, de Ivor Lancelotti e Márcio Proença

 

 

Miopia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

  

“Ele queria ver mais as coisas, todas, que o olhar não dava”.

Guimarães Rosa –  Manuelzão e Miguilim

 

 

“D-E-G-H”

“Parabéns!” – Disse o oculista à garota.

Ela não comemorou. Sua irmã um pouco mais velha acabara de ganhar óculos. Seu pai usava óculos. Sua mãe não usava por teimosia, mas era míope. Depois da consulta, ela passou a ser a única que enxergava diferente.

Inconformada, pediu aos pais um par de óculos. Eles sempre respondiam caçoando da garota:

“Para você, só óculos escuros!”

Ela não se conformava e todo ano, quando a irmã voltava ao médico, aproveitava a consulta e pedia para que sua visão fosse medida novamente. Enquanto o grau de sua irmã aumentava, a visão dela continuava perfeita. Acertava sempre todas as letras. Algumas vezes pensou em errar de propósito, mas nunca teve coragem pois tinha medo de acharem que ela não havia sido alfabetizada corretamente e a obrigarem a frequentar aulas particulares.

Além dos óculos, ela queria colocar gesso e aparelho.

O gesso conseguiu. Rompeu o ligamento do tornozelo sete vezes. Não de propósito, já que depois da primeira torção viu que aquilo doía pra diabo. Como uma praga, a cada passo em falso, seu tornozelo voltava a parecer uma bola de tênis. Piorou quando passou a usar salto alto. Sentiu-se uma idiota por não conseguir andar tão bem quanto as amigas. Mas a falta de elegância tinha a explicação que tanto a orgulhava.

O aparelho nos dentes ela também nunca conseguiu. Algumas vezes colocava um clipe de papel esticado na boca e contava para todos na escola que havia colocado aparelho. Na época, os meninos ficavam encantados. Diziam que meninas de aparelho beijavam diferente. Seu primeiro namorado usou aparelho, e quando ela o viu comendo coxinha desistiu de consertar seus dentes quase perfeitos.

Um dia, a garota que agora já era mulher, pegou uma forte conjuntivite. Sua vista ficou embaçada por mais de um mês. No começo, ela achou graça e não foi ao médico. Depois, entrou em desespero. Tudo o que ela costumava ver com nitidez estava embaçado e sem definição.

Decidiu voltar no oculista que cuidava de seus olhos perfeitos há mais de vinte anos. Mal conseguia ver o semblante envelhecido do médico. Ele quase não a reconheceu.

Fim do tratamento. Voltou ao retorno da consulta, pois sua vista continuava embaçada. Ainda desesperada, perguntou ao oculista:

“Não vou sarar nunca?”

Neste momento, ele lhe deu o presente que ela sempre esperou:

“0,75 de miopia”

Ela sorriu e mesmo com as pupilas dilatadas foi à ótica mais próxima, comprou os óculos do seu sonho.

Agora ela enxergava como todos os membros da família.

 

Bell Gama – agosto 2008

 

De mim para você

 

 A “garota Selminha”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(by Wayne Miller)

 

 

Guardo comigo as lembranças do que eu era-a-a-a… Favor, antes de ouvir a música, entrar no clima dos bailes da vida:

Vestido de cetim, decote-canoa de um ombro ao outro, justinho até a cintura marcada por uma faixa de cor diferente com laço e camélia. A saia meio armada respondia pelos efeitos especiais. Escarpins de brilho perolado. Cabelos? Abafa o caso.

Os rapazes (de smoking, se o baile era de formatura, viravam praticamente um Clooney) chegavam pertinho e sussurravam: _ Dança comigo?

Chato só quando eles vinham em nossa direção e tiravam a amiga ao lado. Tóin! Sem falar no “chá de cadeira” quando os astros não eram por nós. Bad days.

A orquestra de metais tocava uma série de sucessos durante 15, 20 minutos, tempo suficiente para rolarem desde antologias como “Selma, que você almeje tudo que deseje!”, até o mantra repetido pelo figuraça que passava o tempo da dança perguntando o que a gente achava disso ou daquilo. E, invariavelmente concordando, mandava com entonação de época: _ Somam dois!

Claro que seu apelido na roda ficou “Somam dois” e claro que morro de saudades dele. Não sei por onde anda, se “cresceu-vos” e multiplicou, se está somando em Brasília…

De qualquer forma, é dele a música “rosa pink” de hoje. Aquela que deixava a pista lotada e a galera ali, somando emoções. Muitas emoções.

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=9r2pEdc1_lI[/youtube]

 

                                                      _ Gosta dessa música?

                                                       _ Somam dois!

 

 

De pai para filho (a)

 

 

Para Bell

 

Aos cinco ou seis anos, o menino passou uma temporada de férias na casa dos avós paternos, na Franca do Imperador.

A cidade ainda era calma, mas ele apenas tinha permissão para ir sozinho até a esquina, a uns vinte metros, sempre pela calçada e jamais, jamais atravessar a rua.

No ponto final da sua grande aventura, bem na esquina, ficava o bar do Seu Tomás, que vendia sorvetes, pastéis, balas, pirulitos, e onde se comprava a garrafinha de guaraná permitida no almoço de domingo.

Era lá no Seu Tomás que o menino sempre ouvia um vozeirão entoando uma música diferente, que bulia com ele, às vezes o deixava alegre e saltitante, outras vezes, com uma tristeza entranha.

Um dia quis saber:

― Seu Tomás, quem tá cantando?

― Oxente, é o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, o maior cantor do Brasil!

E Seu Tomás foi buscar a capa do disco para lhe mostrar, com aquele sujeito vestido de vaqueiro, um sorrisão na cara, empunhando uma sanfona branca. Vaqueiros para ele eram os caubóis de que tanto gostava, mas Seu Tomás lhe explicou que aquela era a roupa dos vaqueiros do sertão do Brasil, coisa bonita de se ver.

Nunca mais se esqueceu daquela figura e daquelas canções. Luiz Gonzaga foi seu primeiro ídolo musical.

Tempos depois, o menino já era um moço, começava a faculdade, queria derrubar a ditadura, odiava os milicos, escrevia uns poeminhas envergonhados, compunha algumas canções com os amigos, tocavam, cantavam, participavam de festivais, queriam mudar o mundo.

Um novo Gonzaga surgiu na vida dele então, e suas canções de protesto, depois as românticas e os sambas o botavam comovido como o diabo. Explode coração!

Era um rapaz magrinho, barbudo, de cara fechada, sempre com um cigarro na mão ou na boca. Ficou conhecido como Gonzaguinha, filho do outro, o Gonzagão, que andava sumido.

Soube então que pai e filho tinham uma relação complicada, distante, com mágoas recíprocas do passado. Até que um dia os dois passaram a se apresentar juntos e a percorrer todo o Brasil, reconciliados, fazendo um sucesso estrondoso.

Gonzagão deve ter partido feliz. Cerca de dois anos após, Gonzaguinha também se foi, num acidente de automóvel.

De repente, tudo aquilo  ― e muito mais ― estava ali, vivificado na tela do cinema em São Paulo, numa tarde de sábado.

O menino, o moço, o pai e avô ao lado da filha do meio, ambos emudecidos e engasgados com o que assistiam.

Quando o filme acabou e as luzes se acenderam, ela não se importou de exibir os olhos vermelhos e ainda lacrimejantes.

Ele colocou os olhos escuros para disfarçar (que bobagem…).

Saíram juntos de mãos dadas para a noite que caía e para a vida que os esperava.

Era bom saber que nunca estiveram distantes, mas estavam cada dia mais próximos.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=63Na62E0LZk[/youtube]

 

 

 

Virtualidade

 

 

 

 

                             

 

 

 Brenno Augusto Spnelli Martins

 

 

 

                              É como se fosse um link

                              o amor curtido à distância.

                              Se não deu certo um lance,

                              não precisa nem xilique…

                              basta apenas um click

                              e o amor se desmancha.

 

                              E agora?

                              Mas…

                              e depois?

 

                              Como arquivar a ilusão?

                              Onde postar a emoção?

                              Compartilhar a paixão?

 

                              Onde baixar essa dor?

                              Cadê o download do amor?

                              Como excluir a saudade?

 

                              Como salvar a verdade?