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De esquinas e luz

 

      Selma Barcellos

Selma no Jardim de Luxemburgo

Queridos, na crônica da poeta portuguesa Maria do Rosário Pedreira, todos os motivos por que AMO estar na terrinha. São tantas esquinas, janelas, castelos, oliveiras, colinas, guitarras… Sua luz, quando é rio, chama-se Tejo; quando é sal, chama-se mar. E a  hospitalidade dos portuguinhas? Um abraço sem fim. Ainda ontem procurávamos um restaurante no centrinho de Cascais, quando fomos atraídos pelo convite irrecusável do garçom à porta do seu estabelecimento (favor ler com sotaque): “Estão almoçadinhos, estão?” Não deu outra, sapequei-lhe uma beijoca. E veio aquele peixe grelhado que só aqui se faz, mais o pão, o azeite, o vinho, os doces… Paixão.

 

 

 

 

“Em Portugal, o sol deita a cabeça no ombro dos muros e a chuva pinga afetuosamente nas calçadas, que têm desenhos a preto e branco para nos lembrar que vivemos num país antigo. Às vezes, exaltamo-nos com as coisas pequenas, mas lidamos com as grandes com uma brandura que é só nossa – basta dizer que fizemos uma revolução trocando o vermelho do sangue por o dos cravos. Parecemos tristonhos – e cantamos o fado de olhos fechados, porque a saudade é assunto sério – , mas ninguém como nós para inventar uma anedota mal o caldo se entorna, equilibrando qualquer tragédia com um sorriso.

Só temos um vizinho além do mar, mas é como se tivéssemos andado desde sempre de braço dado com o mundo, de tal forma recebemos o estrangeiro com o açúcar que levamos para o Brasil, o abraçamos com o calor proverbial das Áfricas e temperamos as conversas com a pimenta acartada da Índia em baús velhos.

Se o nosso espelho for um mapa, vemo-nos pequeninos, mas a verdade é que tudo se arruma com milagrosa harmonia no diminuto espaço que nos coube: a planície que o vento despenteia nas tardes de verão; o cume gelado das montanhas que nos derrete de espanto; as águas azuis que bordam uma costa tecida de areais a perder de vista ou escarpas que estendem a mão ao céu; os parques florestais onde todos os caminhos vão dar ao sossego e à beleza. Neste país, cidades cosmopolitas e buliçosas ombreiam com aldeias feitas de casas de bonecas e hortas que parecem de brincar; e as autoestradas que aproximam as nossas diferenças concorrem pacificamente com os minúsculos trilhos rasgados entre as pedras, nos quais ainda é possível encontrar um pastor empurrando, sem pressa, o seu rebanho.

Somos romanos, judeus, árabes e celtas, temos carapinha e olhos amendoados, sardas e pele curtida pelo sol; porque dentro de nós fala uma história com muitos séculos, na qual fomos longe e voltámos – e, ao voltarmos, deixámos igrejas, palácios e fortalezas, mas guardamos no coração o que os outros nos deram ou lhes pedimos emprestado. São eles, de resto, que nos fazem orgulhosos de sermos portugueses e dizem, por nós, o que quase temos vergonha de confessar, como se fosse atrevimento elogiar o lugar onde se nasceu. E, embora sejamos poucos, brincam na nossa língua tantos sotaques como eram as vozes do grande poeta Fernando Pessoa, que viu no nosso belo idioma nada mais nada menos que uma pátria. Estamos sempre de braços abertos para quem chega e é essa a melhor razão para nos vir visitar.”

 

“Meu amor marinheiro” (António Campos / Joaquim Pimentel), com Carminho 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=uez3xGXj7go[/youtube]

 

 

Parece mentira

 

           Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Tem coisas que eu nem gosto de contar porque parece mentira. Mas eu vou contar.

Era o ano de 1966 ou 1967. Meu amigo Roberto Pellegrino, o italiano, morava aqui em Ourinhos, mas namorava a Maria Inês — com quem veio a se casar —, que também morou aqui, mas havia mudado para Campinas, de modo que, de vez em quando, o Roberto tinha que ir a Campinas para namorar.

Uma vez, lá em Campinas, como parte do namoro, o italiano e a Maria Inês resolveram ir ao cinema. E foram. Era o Cine Carlos Gomes. Famoso. Importante.

Chegaram, compraram ingressos e entraram. Viram dois lugares bem localizados, foram lá e sentaram. O Roberto achou que estava um pouco quente e tirou o paletó. Não passou muito tempo, veio lanterninha e dirigiu-se ao italiano:

— O senhor, por favor, queira vestir o paletó. Não é permitido ficar sem paletó.

O Roberto já se dispunha a atender, quando viu ali perto um sujeito sem paletó pelo qual o lanterninha passara sem se incomodar. Falou:

— Mas olha ali aquele senhor, também sem paletó!

Aí o funcionário fulminou-o com o seguinte argumento:

— É, mas aquele rapaz já veio sem paletó. O senhor, não. O senhor veio de paletó. O senhor não pode ficar sem paletó. Não é permitido.

Foi assim.

 

Anos 60 do século passado. O Cine Ourinhos, único cinema da cidade na época, foi todo reformado. A plateia ganhou cadeiras novas. O balcão ganhou poltronas e se tornou chique. Nele, estabeleceram os proprietários, os homens só podiam entrar trajando paletó.

No início ocorreram alguns desencontros e mal-entendidos. Houve quem quisesse entrar no balcão sem paletó e quem imaginasse precisar ir de paletó para ingressar na plateia. Era novidade também para as bilheteiras e porteiros.

Uma bela noite, o professor Luiz Cordoni resolveu ir ao cinema. Foi, comprou ingresso para a plateia e se apresentou ao porteiro para entrar.

— O senhor não pode entrar.

— Por que não? Para a plateia, que eu saiba, não precisa paletó!

— É, mas o senhor está de suspensório.

De fato, o professor Luiz Cordoni usava suspensório.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=AY62QByUYJQ[/youtube]

 

 

Ponto a ponto, mano a mano

 

         Brenno Martins

Brenno (miniatura)

 

 

 

 

 

 

 

                                       Quero ficar junto a ti

                                       como juntas ficam as reticências…

                                       porque uma reticência só

                                       é só um ponto.

                                       Final.

 

                                       Diferente dos dois pontos:

                                       que esperam uma explicação

                                       e o amor não se explica…

                                       é só amor.

                                       Ponto final.

 

 

reticencias 

   

          Tom Gama

 Eu (preto e branco)

 

 

 

 

 

 

 

 

                              Com quantas linhas se escreve um conto?

                              Com quantos pontos me conto?

                              Em que ponto dessa tortuosa linha

                              paralela do infinito me encontro?

 

                              Só quando saio da linha

                              e salto fora da pauta

                              é que sinto o sobressalto da vida

                              ao compasso de mim mesmo.

 

                              Passo a passo me repasso

                              traço a traço me escrevo

                              até que a linha se apague

                              e acabe o conto sem ponto final

 

 

 “Desencontro” (Chico Buarque), com ele e Toquinho

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=yRckNmA05JI[/youtube]

 

“Sobrou desse nosso desencontro

Um conto de amor

Sem ponto final”

 

 

Rio – Lisboa

 

         Selma Barcell0s

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

Entre troca de fraldas e colo ao netinho, tempo para ler os mestres e me exibir em minha língua-vó.

Ora bem, penso que estou óptima. Capricho na entonação e pontuo as frases com um charmoso ‘não é?’, digo ‘mais pequeno’ e ‘muita fácil’ sem medo de perder o diploma, já não pergunto onde é o banheiro, a menos que procure o salva-vidas, tampouco se vendem broches; entendo quando se referem às aldrabices dos corruptos; escapo de convites com ‘tenho uma catrefada de coisas a fazer’; aqui e ali salpico um algures, primo bonito do alhures, e lá vou eu.

Não mais arregalo os olhos quando me oferecem um creme para a cara e já ouço com alguma naturalidade as expressões equivalentes a bunda, injeção e – céus! – criança. Gosto imenso de uma famosa propaganda de fraldas que diz “rabinho seco, rabinho são”. Muita boa, não é?

Aprendi que k é capa e que se algo está OK, está ocapa. Lindo pedir uma água lisa, um lume, dizer que determinado tempero sabe a mar, ouvi-los perguntar ‘estou a magoar?’. Tudo bem que uma certa tristeza – nostalgiazinha básica – está na essência dos sentires e cantares portugueses, assim como do indefectível adeus ao se despedirem. Não dizem tchau, até logo, até já. Contam-me que as cangalhas, os carros funerários, além de vários bancos para a família acompanhar o caixão, têm (tinham?) as laterais de acrílico para todo mundo ver. E sofrer junto.

Enfim, ando a fazer progressos. Inclusivamente (sim, aqui se usa) no vocabulário de berço do Cadu: já sei de chuchas, bibrões, traversinas…

No mais, como registrou Saramago, é seguir adiante. A viagem não acaba nunca. Paisagem e língua serão sempre novas.

 

Camões

 

 “Nem às paredes confesso” (Artur Ribeiro / Ferrer Trindade), com António Zambujo

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Q6FnndViPmA[/youtube]

 

 

 

Contradição

     

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                                                           CONTRADIÇÃO

 

 

                                                           interior

                                                           calor

                                                           bolor

 

                                                            exterior

                                                            calor

                                                            oloroso

 

                                                            interior/exterior

                                                            eu e vocês

                                                            eu e tudo

                                                            nós

 

                                                           se alguma coisa escapa

                                                           outra aparece.

 

contradição

 

 

 

Da arte de pentear os cabelos

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Em primeiro lugar, para pentear os cabelos é preciso ter cabelos, salvo se você for calvo como um ovo; então, você pode pentear a sua cabeleira postiça. Pode-se pentear com os dedos, com um pente ou com a escova. Se você for rico, prefira um pente de marfim. Se for remediado, ou pobre, um pente de qualquer massa de plástico serve. Ah, há também o pente fino, geralmente preto, para pentear os cabelos de quem está com piolhos neles ou na cabeça. As mulheres de antigamente eram muito prevenidas porque, depois de penteadas, feito um coque atrás, deixavam nele, fincado, um pente.

Não é usual pentear os cabelos dos sovacos, porque o costume é depilar os sovacos, e sovacos sem pelos como é que poderiam ser penteados?

Não sei se também se penteiam os pentelhos, mas acho que sim. O difícil é pentear os petelhos, porque eles são sempre sujeitos desgrenhados.

É claro que também se pode pentear a barba. Convém, não obstante, penteá-la depois de a botar de molho. Os que usam apenas um bigodinho, como eu, devem penteá-lo com um pentinho; já os sujeitos com bigodões, com um pente de bom tamanho.

Penteia-se melhor mirando-se no espelho. Então, o cara pode repartir os cabelos bem no meio da cabeça, ou num dos lados, numa risca certa. Sem espelho, todavia, o sujeito ou a sujeita conseguem pentear-se. E há as mulheres que trazem, na bolsa, um espelhinho, para isso. Aqui em Ribeirão Preto, onde há muitas poças dágua nas ruas, que são viveiros de pernilongos, consegue-se pentear abaixando-se e olhando a sua imagem refletida numa poça.

Quando o ônibus estaciona num ponto da estrada, isto é, diante de um grande restaurante, os passageiros saem depressa dele, e correm para o que chama de toalete, e ali, depois de verter água e aliviar-se, podem lavar as mãos e pentear-se diante dos espelhos na parede. E é claro, as mulheres também. O que não aconselho é o motorista, dirigindo o carro, ao mesmo tempo pentear-se, olhando para o espelho retrovisor do veículo. Mas há quem o faça, e esbarronda o carro na traseira de um caminhão. Neste caso, vai em seguida pentear-se no quinto dos infernos, ou no céu.

Para pentear-se, depois de lavada a cabeça, enxugados e secados os cabelos, convém usar um fixador qualquer, brilhantina, gumex, glostora, laquê, ou coisa semelhante. Goma arábica não é indicada.

Atualmente, as moças não se penteiam. Ao contrário, metem os dedos na cabeleira e a afofam, de tal modo que se tornam ninhos de guaxo.

O que também se usava antes, para manter os cabelos no lugar, era uma redinha. E as mulheres usavam papelotes, e agora bóbis. Uma mulher de papelotes ou de bóbis, fica parecendo um extra-terrestre. E talvez seja.

Havia cabeleiras de mulheres (e ainda há, creio) que caiam até os pés. Não era fácil para elas pentearem tais cabeleiras. Elas chamavam as mucamas, que então as penteavam muito bem, e ainda lhes faziam cafuné. Uma delícia.

Eu não sou mulher, mas tenho a minha mucama. Chamo-a:

— Josefa, vem pentear os meus cabelos e fazer-me cafuné.

Ela vem.

Lamento se você não tem uma mucama. Trate de arranjar uma.

E vá penteando-se, até que não lhe reste nem um fio de cabelo.

 

 Millôr

Ontem hoje e amanhã

O homem o cabelo parte

Parte o cabelo com arte

Até que o cabelo parte.

(Millôr Fernandes)

 

 

 

Professores e Alunos

 

            Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

— O senhor aí, que está dando tapinhas nas cabeças do colega. Pra fora da classe!

— Quem professor!? Eu!?

— É, o senhor mesmo. Pra fora da sala!

— Mas eu não fiz nada, professor!

— Eu vi. Vai pra fora da sala!

— Ah, eu não vou, professor.

— Vai pra fora.

— Eu não vou, professor.

— Não vai!?

— Não.

— Pois então fique.

Esse era um professor que tive, meio século atrás. Não lembro o nome dele, até porque todo mundo o conhecia por professor Parafuso. Suas aulas eram uma verdadeira bagunça, e acho que não há necessidade de explicar a razão.

professores e alunos 2

 

Foi em 1852, na Escola Profissional de Ourinhos, na Vila Margarida, lá no fim da Rua 7 de Setembro, perto da linha do trem. Os professores falaram. As professoras falaram. O diretor foi de classe em classe. O uniforme é cáqui. Inteiramente cáqui. Aquele brim meio cor de barro. Vocês sabem. Calça e camisa cáquis. A partir do dia primeiro do próximo mês, ninguém entra na escola sem uniforme. Essa ladainha foi repetida cansativamente durante um mês inteiro 

No primeiro dia do mês seguinte, todo mundo apareceu trajando uniforme cáqui. Calças e camisa cáquis. Uma beleza!

Todo mundo, menos um. Um só. O Aristodemo, filho de um comerciante da Barra Funda, estava de verde. Calças e camisas verdes. Mas precisamente, verde-garrafa.

— Eu não tenho dúvida. Eu ouvi muito claramente e por diversas vezes que o uniforme tinha que ser inteiramente verde-garrafa.

A molecada tinha entre doze e catorze anos. Imagine o leitor a gozação em cima do pobre do Aristodemo, que, aliás, já era visado por causa do seu nome atrapalhado.

***

E já que estamos falando de professores e alunos, aproveitemos para apreciar alguns dos absurdos que o homem é capaz de produzir numa redação de exame vestibular. Vejas as afirmações a seguir. 

Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.

O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro d’água.

As aves Têm na boca um dente chamado bico.

O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia.

Quando um animal irracional não tem água para beber, só sobrevive se for empalhado.

O Chile é um país alto e magro.

Na Grécia, a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam.

As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.

Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia.

O terremoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas.

A harpa é uma asa que toca.

Menos desmatamentos é igual a mais florestas arborizadas.

 

 

[youtube] http://www.youtube.com/watch?v=_wGPeLJfoYs[/youtube]

 

 

Meninos, eu li

 

       Selma Barcellos

Selma no Jardim de Luxumburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

Da nossa correspondente em Portugal

 

 

No “Expresso” de 22/11, a propósito de “Tony Nagy, que está a ser investigado por suspeitas de enriquecimento ilícito, fugiu para o velho continente e pediu demissão por e-mail.” , comentário de um leitor que se assina Spitzer:

“O Brasil está a desenvolver-se. Há lá muita corrupção, como em todo o lado, mas lá começa a ser escândalo. Os corruptos têm de fugir do Brasil!

Quando é que os corruptos portugueses também terão de fugir?

Eu não quero viver num país onde os corruptos andam à solta, impunemente, e se tornam ministros e «conselheiros de Estado». Eu quero viver num país de onde os corruptos tenham de fugir, com medo da justiça. Eu quero viver num Brasil!”

 

 ***

 

No “Diário de Notícias” de 24/11, seção Classificados Relax VIP:

 

ANA

Senhora portuguesa, viúva, a  passar dificuldades financeiras, convive com cavalheiros em troca de ajuda! Sem experiência… Desde já agradeço pela atenção…!

 

***

 

Mas hein?

 

 

Litanie

 

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                   LITANIE

 

                   Il faut continuer

                   pas à pas,

                   il faut renverser

                   de tous les côtés,

                   Il faut réviser

                   ligne par ligne,

                   il faut résister

                   à tous les moments,

                   il faut tergiverser

                   de toutes les manières,

                   il faut se contrôler

                   soi-même,

                   il faut comprendre

                   beaucoup,

                   il faut réitérer

                   ce que l`on croit,

                  il faut croiser

                   les regards,

                   il faut maîtriser

                   notre conduite,

                   il faut retenir

                   ce qu`on a appris,

                   il faut dépasser

                   les obstacles,

                   il faut oser continuer,

                   il faut revenir

                   au point de départ,

                   il faut s`attacher

                   à ce qu`on aime,

                   il faut oublier

                   ce qu`on aime pas,

                   il faut récupérer

                   ce qu`on a perdu,

                   il faut rendre

                   la vérité

                   il faut atteindre

                   la liberté

                   il faut revoir

                   les ans passés,

                   il faut prévoir

                   l`avenir douteux,

                   il faut se perdre

                   pour se retrouver

                   il faut rechercher

                   pour trouver quelque chose,

                   il faut s`extenuer

                   pour se reposer

                   il faut…

                   il faut…

                   il faut…

 

 

                                               LADAINHA

 

                                               É preciso continuar

                                               passo a passo,

                                               é preciso demolir

                                               de todos os lados,

                                               é preciso revisar

                                               linha por linha,

                                               é preciso resistir

                                               em todos os momentos,

                                               é preciso tergirversar

                                               de todas as maneiras,

                                               é preciso controlar-se

                                               a si mesmo,

                                               é preciso compreender

                                               muito,

                                               é preciso reiterar

                                               o que a gente crê,

                                               é preciso cruzar

                                               os olhares,

                                               é preciso dominar

                                               nossa conduta,

                                               é preciso reter

                                               o que apreendemos,

                                               é preciso ultrapassar

                                               os obstáculos,

                                               é preciso ousar

                                               continuar,

                                               é preciso voltar

                                               ao ponto de partida,

                                               é preciso se ater

                                               ao que se ama,

                                               é preciso esquecer

                                               o que não se ama,

                                               é preciso recuperar

                                               o que se perdeu,

                                               é preciso contar

                                               a verdade,

                                               é preciso atingir

                                               a liberdade,

                                               é preciso rever

                                               os anos passados,

                                               é preciso prever

                                               o futuro duvidoso,

                                               é preciso perder-se

                                               para se encontrar

                                               é preciso pesquisar

                                              para encontrar alguma coisa,

                                               é preciso extenuar-se

                                               para se repousar,

                                               é preciso…

                                               é preciso…

                                               é preciso…

 

 litania

 

 

O inferno

 

            Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

Quando menino, eu acreditava no céu e no inferno. Era um pavor. O céu, lugar de mil delícias, eu não conseguia imaginar uma figuração mais concreta. Mas o inferno, esse me atormentava como lugar de inefáveis sofrimentos. Eram os fogos, as trevas e os ferros mais apavorantes que a mente humana pode imaginar, fustigando dia e noite nossas pobres carnes e mentes. E, no comando de tudo, horrorosos demônios chifrudos e rabudos que se divertiam e se inebriavam com a nossa dor.

Mas havia algo ainda pior do que o tormento em si. Algo com que minha cabeça de criança nunca pôde concordar, mas que era meu terror permanente. Para mim, pior do que o tormento, pior do que todos os suplícios, era a ideia da condenação eterna. Jamais pude aceitar que a danação ao inferno fosse eterna, fosse pra sempre, pra nunca mais acabar. Nunca. Uma vez condenado à suprema degradação era o sofrer e sofrer, pela eternidade, para o sempre que jamais termina.

Esse pavor do inferno me fazia um menino medroso. Tinha medo doentio da morte. Mas um dia o seu Abilinho disse para minha mãe que era capaz de curar meus medos. Era capaz de curar a ponto de me tornar, depois, um sujeito abusador. O seu Abilinho era um caboclinho esperto e bem falante, dado a orações curativas e benzeduras. Era compadre de dona Albina, a nossa vizinha, que tinha cinco filhos e um marido que bebia muito. O seu Abilinho estava tentando curá-lo da bebida.

Tudo o que seu Abilinho precisava para me curar era que eu fosse com ele ao cemitério. Não achei graça nenhuma na proposta, mas acabei concordando. Fomos. Minha mãe, dona Albina e dois dos filhos dela foram juntos. No cemitério, o seu Abilinho nos levou para passear por entre os túmulos, parando aqui e ali, quem sabe para nos acostumar com a morte. Depois de um bom tempo, pediu para que os outros esperassem e que eu o acompanhasse a um certo lugar. Esse certo lugar, logo descobri, era nada mais nada menos do que o ossuário, um poço largo onde eram lançados os restos finais daqueles que já haviam passado pela vida. Ali, o seu Abilinho me fez olhar demoradamente dentro do poço. Eram tíbias, fêmures, úmeros e crânios, destacando-se dos ossos menores em decomposição. Uma espécie de lixão dos mortos.

Antes de abandonarmos o local, o seu Abilinho abaixou a cabeça e emudeceu numa longa oração lá sua. Quando terminou disse:

— Agora, vamos embora.

Ainda hoje, passado mais de meio século, quando acontece de eu me mostrar descrente em relação às coisas do outro mundo, minha mãe, que é muito religiosa, diz:

— Bem que o seu Abilinho falou que você ia ficar abusante.

 

 

inferno-_-quadro-anonimo-_1

Inferno, quadro anônimo português, possivelmente de 1520