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O desertor

 

      Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

                                                                       O DESERTOR

 

 

                                                           O enigma precisa ser decifrado,

                                                           antes disso, é observado.

 

                                                           Atento

                                                           sento-me

                                                           sinto

 

                                                           e recuo.

 

 desertor 3

 

 

                                                LE DÉSERTEUR

 

 

                                   L’énigme doit être  déchiffrée,

                                   d’abord, elle est observée.

 

                                   Attentif,

                                   je m’assois

                                   je sens

 

                                   et je recule

 

 

 

Croquibilu, a saga

 

 

 Eu meninoNa pedregosa Pedregulho, de terra vermelha e chão batido, com poucas ruas asfaltadas, o menino se esbaldava em total liberdade.

Próximo da casa o curral onde se buscava e bebia todas as manhãs o leite acabado de tirar. O campinho de futebol em frente, os eucaliptos, o grupo escolar um pouco acima.

Abaixo, atravessando uma vala equilibrando-se na pinguela estreita e improvisada com troncos de árvore, havia um grande pasto com um riacho, que empoçava e formava um brejo mais ao fundo . Foi ali que viu o sapão pela primeira vez. Havia outros, mas aquele era o rei, o macho alfa. Voltou várias vezes para admirá-lo. Num dia em que o sapão estava mais pachorrento do que de costume, atirou-lhe umas pedrinhas para que saltasse ou exibisse seu lingueirão repentino, mais rápido do que o saque de qualquer pistoleiro do Velho Oeste. Foi então que um dos amigos o alarmou:

─ Xiiiii, você não devia fazer isso, provocar o sapo! Agora tem de matar, senão ele vai à noite na sua cama e mija em você!

Não tinha coragem nem vontade de fazer mal algum ao pobre sapo, só queria mesmo atiçar ele um pouco. Claro que estava fora de cogitação matá-lo, mas ficou impressionado com a lorota do amigo, e passou duas ou três noites incomodado, acordando sobressaltado durante a noite. De dia, ia ver se o sapão continuava por lá. Será que de noite…?

Acabou contando sua aflição para o pai, que riu muito e lhe disse que aquilo tudo era bobagem. Foram juntos ver o sapão e na volta o pai, talvez para tranquilizá-lo de vez, contou-lhe que o avô era grande amigo dos sapos e até tivera um de estimação na fazenda que ficava ali perto, em Rifaina, na divisa com Minas Gerais, e que depois vendeu para quitar dívidas da grande crise cafeeeira.

─ Como você é neto do Coronel Asdrúbal, não precisa ter medo de sapos. Eles fazem parte da família…

Um dia, remexendo nos escritos do pai, reencontrou a história do sapo avoengo.

 

CROQUIBILU

AnnibalCroquibilu era um sapão de mais de um palmo grande aberto, e achou de vir aos pulos balofos até à escada, subindo-lhe igualmente os degraus, e achou-se afinal no piso do alpendre. Então, foi indo, e escolheu um lugar, ali no canto, entre um caixote e um latão, e se acomodou, confortável. Logo viria, pois era noite, a lamparina de querosene, que foi posta em cima do parapeito. E as mariposas, imediatamente, começaram a rodar em torno da luz. Aquilo foi um gozo para o sapão Croquibilu, pois era só estender a língua e papear as bicihinhas. No entanto, alguém o viu ali e gritou: “Que horror, um sapão!”, pois a Mãe tinha muito medo dos sapos. Mas o Pai também veio vindo, viu Croquibilu no seu sossego, e recomendou: “Deixem o sapo em paz!” E assim se fez.

Logo que amanhecia, mal o sol despontava no horizonte, o Pai pegava a vassoura, e ia empurrando o sapão: “Vamos, amigo!”, e Croquibilu saltava uns palmos adiante – póf! Chegavam ambos até a escada, e desciam-na do mesmo jeito até alcançar, varando a porteirinha, o pasto, onde o sapão ficava, ou ia para os brejos, não longe. Ao entardecer, porém, Croquibilu retornava, galgava os degraus da escada, e ia para o seu canto habitual, a papejar as mariposas.

Longo tempo este ritual se repetiu, e Croquibilu já era um membro estimado da família.

 

 Vô Asdrúbal

Muitos anos depois, a trineta do Coronel Asdrúbal desde cedo se mostrou maravilhada pelos sapos, um dos seus bichos prediletos.

Quem sabe um deles se transforme no seu príncipe encantado? Aí eles poderão dormir e sonhar juntos.

 

Manu Sapinha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Filhos da inocência

         

         Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

Pela ampla repercussão que tem em diferentes níveis da vida do País, entendo que o mais grave problema brasileiro é a explosão da reprodução humana nos grupos mais pobres e de menor escolaridade da população. É incompreensível a  desatenção do poder público, da instituição família e dos meios educacionais com relação a ele.

Eu me inquieto com os adolescentes, aqueles meninos e meninas,  que se tornam pais sem o desejarem aos treze, catorze ou quinze anos. É muito triste ver uma menina nesta idade engravidar sem querer engravidar e ter um filho sem que conscientemente o desejasse.

A vida dos adolescentes que involuntariamente se tornam pais passa normalmente por grandes transtornos. O menino, sem condição econômica de corresponder ao evento, muitas vezes abandona a menina e o filho ao Deus dará. Mas, se for pessoa sensível, terá de carregar pela vida toda a culpa pelo abandono. A adolescente, por sua vez, acaba tendo de deixar a escola e de assumir antes da hora um trabalho qualquer para criar sozinha o filho. 

Mas a precocidade na geração da prole produz resultados sociais que vão muito além dos problemas que afetam os jovens pais. Despreparados, do ponto de vista econômico e emocional, para cuidar da sua descendência, os jovens envolvidos acabam por sobrecarregar suas famílias. Mais tarde, com enorme frequência, aparecem os problemas dos próprios filhos na escola e, fora dela, na sociedade mais ampla. Seria de admirar que o crime e as drogas não encontrassem campo fértil, mais adiante, entre esses filhos de jovens que tão cedo se tornaram pais. 

Entre a população mais pobre e menos escolarizada a gravidez não desejada é também evento de enorme ocorrência. O resultado são os milhões de famílias que não conseguem obter sequer o necessário para a subsistência. A pobreza aguda e permanente das populações das periferias dos grandes centros e de muitas outras áreas do País guarda estreita relação com o problema da explosão da reprodução humana pela gravidez não desejada. Vai hoje pela casa dos treze milhões o número de famílias que recebem auxílio governamental direto para sobreviver.

Um sexualismo avassalador permeia toda a nossa cultura. A poderosa força do erótico está presente na TV, no cinema, na moda, na publicidade, nas revistas e nos jornais. As novelas são o exemplo mais notório. O ativismo sexual antes do casamento, que até meados dos anos 1960 era amplamente vedado às mulheres, hoje é comportamento habitual desde a adolescência.

A reprodução não desejada, que dificulta ou destrói qualquer planejamento de vida familiar, é problema sério de educação que não tem merecido a menor atenção do poder público. É preciso, pela educação sexual, tornar claro para todos, especialmente para as mulheres, que a natureza pode cobrar um preço elevado pela oportunidade do prazer sexual sem precaução. Houvesse mais cuidado nas relações destituídas da intenção de procriar e muito menos haveria para se discutir e para se legislar acerca da questão do aborto.     

Hoje, mais do que no passado, existem meios contraceptivos seguros para evitar a gravidez não desejada. O que falta é uma política que dê a todos, homens e mulheres, jovens e adultos, informação e acesso aos recursos que a ciência criou para este propósito. A ausência de ação da família e dos poderes públicos na área da reprodução humana pode, sem nenhum exagero, ser entendida como atentado a um direito elementar dos humanos: o direito que cada um tem de planejar sua vida e a vida de sua prole.

 

criança abandonada

 

 “O meu guri” (Chico Buarque), com Elza Soares

 

 

 

De esquinas e luz

 

      Selma Barcellos

Selma no Jardim de Luxemburgo

Queridos, na crônica da poeta portuguesa Maria do Rosário Pedreira, todos os motivos por que AMO estar na terrinha. São tantas esquinas, janelas, castelos, oliveiras, colinas, guitarras… Sua luz, quando é rio, chama-se Tejo; quando é sal, chama-se mar. E a  hospitalidade dos portuguinhas? Um abraço sem fim. Ainda ontem procurávamos um restaurante no centrinho de Cascais, quando fomos atraídos pelo convite irrecusável do garçom à porta do seu estabelecimento (favor ler com sotaque): “Estão almoçadinhos, estão?” Não deu outra, sapequei-lhe uma beijoca. E veio aquele peixe grelhado que só aqui se faz, mais o pão, o azeite, o vinho, os doces… Paixão.

 

 

 

 

“Em Portugal, o sol deita a cabeça no ombro dos muros e a chuva pinga afetuosamente nas calçadas, que têm desenhos a preto e branco para nos lembrar que vivemos num país antigo. Às vezes, exaltamo-nos com as coisas pequenas, mas lidamos com as grandes com uma brandura que é só nossa – basta dizer que fizemos uma revolução trocando o vermelho do sangue por o dos cravos. Parecemos tristonhos – e cantamos o fado de olhos fechados, porque a saudade é assunto sério – , mas ninguém como nós para inventar uma anedota mal o caldo se entorna, equilibrando qualquer tragédia com um sorriso.

Só temos um vizinho além do mar, mas é como se tivéssemos andado desde sempre de braço dado com o mundo, de tal forma recebemos o estrangeiro com o açúcar que levamos para o Brasil, o abraçamos com o calor proverbial das Áfricas e temperamos as conversas com a pimenta acartada da Índia em baús velhos.

Se o nosso espelho for um mapa, vemo-nos pequeninos, mas a verdade é que tudo se arruma com milagrosa harmonia no diminuto espaço que nos coube: a planície que o vento despenteia nas tardes de verão; o cume gelado das montanhas que nos derrete de espanto; as águas azuis que bordam uma costa tecida de areais a perder de vista ou escarpas que estendem a mão ao céu; os parques florestais onde todos os caminhos vão dar ao sossego e à beleza. Neste país, cidades cosmopolitas e buliçosas ombreiam com aldeias feitas de casas de bonecas e hortas que parecem de brincar; e as autoestradas que aproximam as nossas diferenças concorrem pacificamente com os minúsculos trilhos rasgados entre as pedras, nos quais ainda é possível encontrar um pastor empurrando, sem pressa, o seu rebanho.

Somos romanos, judeus, árabes e celtas, temos carapinha e olhos amendoados, sardas e pele curtida pelo sol; porque dentro de nós fala uma história com muitos séculos, na qual fomos longe e voltámos – e, ao voltarmos, deixámos igrejas, palácios e fortalezas, mas guardamos no coração o que os outros nos deram ou lhes pedimos emprestado. São eles, de resto, que nos fazem orgulhosos de sermos portugueses e dizem, por nós, o que quase temos vergonha de confessar, como se fosse atrevimento elogiar o lugar onde se nasceu. E, embora sejamos poucos, brincam na nossa língua tantos sotaques como eram as vozes do grande poeta Fernando Pessoa, que viu no nosso belo idioma nada mais nada menos que uma pátria. Estamos sempre de braços abertos para quem chega e é essa a melhor razão para nos vir visitar.”

 

“Meu amor marinheiro” (António Campos / Joaquim Pimentel), com Carminho 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=uez3xGXj7go[/youtube]

 

 

O queijo

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

De Gaulle dizia que era impossível governar um país como a França, que tem mais cinqüenta tipos de queijo. Creio que o general pretendia que, tanto como os queijos, havia na França tipos diferentes de pessoas: o rico, o pobre, o operário, o vagabundo, o doutor, o ignorante, o revolucionário, etc., o que tornava difícil contentar a uns e outros.

No Brasil, além dos queijos de origem francesa, italiana ou portuguesa, temos o queijo mineiro, entre os quais o da Serra da Canastra. O queijo mineiro, curado, de meia cura, ou fresco, é adequado para aqueles que, como os mineiros, estão sempre com um pé atrás. O mineiro não ata nem desata, mas faz colher de pau e borda o cabo.

Quando há revolução, o mineiro fica no meio, aguardando qual a tropa que mais avança. Se percebe que é a do lado direito, adere a ela; se do lado esquerdo, opta por este lado.

A história das conjuras e de Tiradentes, enforcado e esquartejado, ensinou-lhe que mais vale um boi para não entrar na briga. O que ele não quer é que lhe levem a boiada toda. 

O mineiro não fala, cochicha. Está sempre com um pé atrás e, quando sentado, ora se apóia num pé, ora noutro. Enquanto isso, pica fumo para o cigarro de palha. 

A diversidade de tipos regionais, entre nós é muito grande, desde o baiano parlapatão, ao pernambucano de faca em punho, o gaúcho das tropelias pelos pampas, ao carioca boa vida, e ao paulista para quem tempo é dinheiro e está sempre apressado. 

Acrescente-se que esta gente toda está misturada com portugueses, espanhóis, italianos, árabes, japoneses, alemães, além dos índios que aqui já estavam. 

Andando pelas ruas, vê-se uma variedade assombrosa de mulheres: as magras, as gordas, as morenas, as loiras, as ruivas, as mulatas, as negras, as baixinhas, as de mais um metro e noventa de altura, boas para trocarem as lâmpadas queimadas na minha casa.

Muito mais do que a França, com os seus mais de cinquenta tipos de queijo, o Brasil é uma nação ingovernável.

 

 

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”

 

ouro preto

“Para Lennon e McCartney” (Lô Borges / Márcio Borges / Fernando Brant), com Elis Regina

 

 

 

Parece mentira

 

           Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Tem coisas que eu nem gosto de contar porque parece mentira. Mas eu vou contar.

Era o ano de 1966 ou 1967. Meu amigo Roberto Pellegrino, o italiano, morava aqui em Ourinhos, mas namorava a Maria Inês — com quem veio a se casar —, que também morou aqui, mas havia mudado para Campinas, de modo que, de vez em quando, o Roberto tinha que ir a Campinas para namorar.

Uma vez, lá em Campinas, como parte do namoro, o italiano e a Maria Inês resolveram ir ao cinema. E foram. Era o Cine Carlos Gomes. Famoso. Importante.

Chegaram, compraram ingressos e entraram. Viram dois lugares bem localizados, foram lá e sentaram. O Roberto achou que estava um pouco quente e tirou o paletó. Não passou muito tempo, veio lanterninha e dirigiu-se ao italiano:

— O senhor, por favor, queira vestir o paletó. Não é permitido ficar sem paletó.

O Roberto já se dispunha a atender, quando viu ali perto um sujeito sem paletó pelo qual o lanterninha passara sem se incomodar. Falou:

— Mas olha ali aquele senhor, também sem paletó!

Aí o funcionário fulminou-o com o seguinte argumento:

— É, mas aquele rapaz já veio sem paletó. O senhor, não. O senhor veio de paletó. O senhor não pode ficar sem paletó. Não é permitido.

Foi assim.

 

Anos 60 do século passado. O Cine Ourinhos, único cinema da cidade na época, foi todo reformado. A plateia ganhou cadeiras novas. O balcão ganhou poltronas e se tornou chique. Nele, estabeleceram os proprietários, os homens só podiam entrar trajando paletó.

No início ocorreram alguns desencontros e mal-entendidos. Houve quem quisesse entrar no balcão sem paletó e quem imaginasse precisar ir de paletó para ingressar na plateia. Era novidade também para as bilheteiras e porteiros.

Uma bela noite, o professor Luiz Cordoni resolveu ir ao cinema. Foi, comprou ingresso para a plateia e se apresentou ao porteiro para entrar.

— O senhor não pode entrar.

— Por que não? Para a plateia, que eu saiba, não precisa paletó!

— É, mas o senhor está de suspensório.

De fato, o professor Luiz Cordoni usava suspensório.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=AY62QByUYJQ[/youtube]

 

 

Ponto a ponto, mano a mano

 

         Brenno Martins

Brenno (miniatura)

 

 

 

 

 

 

 

                                       Quero ficar junto a ti

                                       como juntas ficam as reticências…

                                       porque uma reticência só

                                       é só um ponto.

                                       Final.

 

                                       Diferente dos dois pontos:

                                       que esperam uma explicação

                                       e o amor não se explica…

                                       é só amor.

                                       Ponto final.

 

 

reticencias 

   

          Tom Gama

 Eu (preto e branco)

 

 

 

 

 

 

 

 

                              Com quantas linhas se escreve um conto?

                              Com quantos pontos me conto?

                              Em que ponto dessa tortuosa linha

                              paralela do infinito me encontro?

 

                              Só quando saio da linha

                              e salto fora da pauta

                              é que sinto o sobressalto da vida

                              ao compasso de mim mesmo.

 

                              Passo a passo me repasso

                              traço a traço me escrevo

                              até que a linha se apague

                              e acabe o conto sem ponto final

 

 

 “Desencontro” (Chico Buarque), com ele e Toquinho

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=yRckNmA05JI[/youtube]

 

“Sobrou desse nosso desencontro

Um conto de amor

Sem ponto final”

 

 

Rio – Lisboa

 

         Selma Barcell0s

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

Entre troca de fraldas e colo ao netinho, tempo para ler os mestres e me exibir em minha língua-vó.

Ora bem, penso que estou óptima. Capricho na entonação e pontuo as frases com um charmoso ‘não é?’, digo ‘mais pequeno’ e ‘muita fácil’ sem medo de perder o diploma, já não pergunto onde é o banheiro, a menos que procure o salva-vidas, tampouco se vendem broches; entendo quando se referem às aldrabices dos corruptos; escapo de convites com ‘tenho uma catrefada de coisas a fazer’; aqui e ali salpico um algures, primo bonito do alhures, e lá vou eu.

Não mais arregalo os olhos quando me oferecem um creme para a cara e já ouço com alguma naturalidade as expressões equivalentes a bunda, injeção e – céus! – criança. Gosto imenso de uma famosa propaganda de fraldas que diz “rabinho seco, rabinho são”. Muita boa, não é?

Aprendi que k é capa e que se algo está OK, está ocapa. Lindo pedir uma água lisa, um lume, dizer que determinado tempero sabe a mar, ouvi-los perguntar ‘estou a magoar?’. Tudo bem que uma certa tristeza – nostalgiazinha básica – está na essência dos sentires e cantares portugueses, assim como do indefectível adeus ao se despedirem. Não dizem tchau, até logo, até já. Contam-me que as cangalhas, os carros funerários, além de vários bancos para a família acompanhar o caixão, têm (tinham?) as laterais de acrílico para todo mundo ver. E sofrer junto.

Enfim, ando a fazer progressos. Inclusivamente (sim, aqui se usa) no vocabulário de berço do Cadu: já sei de chuchas, bibrões, traversinas…

No mais, como registrou Saramago, é seguir adiante. A viagem não acaba nunca. Paisagem e língua serão sempre novas.

 

Camões

 

 “Nem às paredes confesso” (Artur Ribeiro / Ferrer Trindade), com António Zambujo

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Q6FnndViPmA[/youtube]

 

 

 

Contradição

     

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                                                           CONTRADIÇÃO

 

 

                                                           interior

                                                           calor

                                                           bolor

 

                                                            exterior

                                                            calor

                                                            oloroso

 

                                                            interior/exterior

                                                            eu e vocês

                                                            eu e tudo

                                                            nós

 

                                                           se alguma coisa escapa

                                                           outra aparece.

 

contradição

 

 

 

Da arte de pentear os cabelos

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Em primeiro lugar, para pentear os cabelos é preciso ter cabelos, salvo se você for calvo como um ovo; então, você pode pentear a sua cabeleira postiça. Pode-se pentear com os dedos, com um pente ou com a escova. Se você for rico, prefira um pente de marfim. Se for remediado, ou pobre, um pente de qualquer massa de plástico serve. Ah, há também o pente fino, geralmente preto, para pentear os cabelos de quem está com piolhos neles ou na cabeça. As mulheres de antigamente eram muito prevenidas porque, depois de penteadas, feito um coque atrás, deixavam nele, fincado, um pente.

Não é usual pentear os cabelos dos sovacos, porque o costume é depilar os sovacos, e sovacos sem pelos como é que poderiam ser penteados?

Não sei se também se penteiam os pentelhos, mas acho que sim. O difícil é pentear os petelhos, porque eles são sempre sujeitos desgrenhados.

É claro que também se pode pentear a barba. Convém, não obstante, penteá-la depois de a botar de molho. Os que usam apenas um bigodinho, como eu, devem penteá-lo com um pentinho; já os sujeitos com bigodões, com um pente de bom tamanho.

Penteia-se melhor mirando-se no espelho. Então, o cara pode repartir os cabelos bem no meio da cabeça, ou num dos lados, numa risca certa. Sem espelho, todavia, o sujeito ou a sujeita conseguem pentear-se. E há as mulheres que trazem, na bolsa, um espelhinho, para isso. Aqui em Ribeirão Preto, onde há muitas poças dágua nas ruas, que são viveiros de pernilongos, consegue-se pentear abaixando-se e olhando a sua imagem refletida numa poça.

Quando o ônibus estaciona num ponto da estrada, isto é, diante de um grande restaurante, os passageiros saem depressa dele, e correm para o que chama de toalete, e ali, depois de verter água e aliviar-se, podem lavar as mãos e pentear-se diante dos espelhos na parede. E é claro, as mulheres também. O que não aconselho é o motorista, dirigindo o carro, ao mesmo tempo pentear-se, olhando para o espelho retrovisor do veículo. Mas há quem o faça, e esbarronda o carro na traseira de um caminhão. Neste caso, vai em seguida pentear-se no quinto dos infernos, ou no céu.

Para pentear-se, depois de lavada a cabeça, enxugados e secados os cabelos, convém usar um fixador qualquer, brilhantina, gumex, glostora, laquê, ou coisa semelhante. Goma arábica não é indicada.

Atualmente, as moças não se penteiam. Ao contrário, metem os dedos na cabeleira e a afofam, de tal modo que se tornam ninhos de guaxo.

O que também se usava antes, para manter os cabelos no lugar, era uma redinha. E as mulheres usavam papelotes, e agora bóbis. Uma mulher de papelotes ou de bóbis, fica parecendo um extra-terrestre. E talvez seja.

Havia cabeleiras de mulheres (e ainda há, creio) que caiam até os pés. Não era fácil para elas pentearem tais cabeleiras. Elas chamavam as mucamas, que então as penteavam muito bem, e ainda lhes faziam cafuné. Uma delícia.

Eu não sou mulher, mas tenho a minha mucama. Chamo-a:

— Josefa, vem pentear os meus cabelos e fazer-me cafuné.

Ela vem.

Lamento se você não tem uma mucama. Trate de arranjar uma.

E vá penteando-se, até que não lhe reste nem um fio de cabelo.

 

 Millôr

Ontem hoje e amanhã

O homem o cabelo parte

Parte o cabelo com arte

Até que o cabelo parte.

(Millôr Fernandes)