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Sem

 

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

    (seu violão e o pôr do sol) 

Brenno e o violão

 

 

 

 

 

 

 

                                   Quando a jornada é louca

                                   Fica no fundo da boca

                                   Um gosto de gosto oco

                                   Porque a vida escapa um pouco

                                   Fica o relógio sem corda

                                   A cerveja fica tórrida

                                   Amendoim sem caroço

                                   A girafa sem pescoço

                                   O elefante sem tromba

                                   Ou o oásis sem sombra.

 

                                   Quando o azul fica cinzento

                                   Fica sem pinto o jumento

                                   Fica sem pinto a galinha

                                   Fica sem asa a andorinha

                                   Beija-flor fica sem flor

                                   Carmelita sem pudor

                                   Romance sem namorada

                                   E a fogueira apagada

                                   Fica o cachorro sem osso

                                   Bóia-fria sem almoço.

 

                                   Quando o caminho é incerto

                                   Fica longe o que era perto

                                   O café sem cafeína

                                   Cigarro sem nicotina

                                   Fica o doce sem açúcar

                                   A filharada sem Lucas

                                   Parece um vinho sem álcool

                                   Ou um artista sem palco

                                   Ou torcedor que não xinga

                                   Ou então um beijo sem língua.

 

                                   Quando o chão é movediço

                                   Fica o final sem início

                                   É como abelha sem mel

                                   Ou o samba sem Noel

                                   A centopéia sem pé

                                   A seleção sem Pelé

                                   João Bosco sem violão

                                   E a transa sem tesão

                                   Tim Maia sem um quilo do bom

                                   E a poesia sem Drummond.

 

                                   Quando o horizonte se esconde

                                   E o mundo fica sem onde

                                   Acaba a cor da paixão

                                   E a corda do coração

                                   Fica a bússola sem norte

                                   E o jogo de azar sem sorte

                                   Fica o crime sem  bandido

                                   E a vida sem sentido

                                   Como a morte sem nascer

                                   Ou como eu sem você.

 

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Sentimento Bissexto

 

 

Mais um sucesso do trio

e eu fico bissexto tio

babuzando a Luiza

que meu sonho cristaliza

de uma crooner assim maneira

me embalando a vida inteira

que no rock eu me vou.

 

 

 

 

Sentimento Bissexto 

(Composição de Brenno e Claudia, interpretação Luiza)

 

Tudo bem eu reconheço
Esse meu sentimento bissexto
Tá em mim e quando ele vem
Fico assim
São como tiros soltos a la Tarantino
A bala perdida mudando o destino
Parece que o cara morre mais
Parece que eu amo mais
Eu te bebo on the rocks
Eu te quero on the road
Eu te como in the box
Eu te escuto rock’n’roll
Eu te cheiro in the fields
Eu te fumo on the hill
Eu te amo I love you
Eu te danço rock’n’roll

 

 

Demorô, vó!

 

      Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

Você passa a vida acarinhando seus livros prediletos, sentindo até o cheirinho da época em que foram lidos, tirando-lhes o pó, protegendo-os das traças para entregá-los em ato solene aos netinhos e o que acontece? Uma engenhoca sedutora, mimo digital com milhares de livros eletrônicos, pouco mais de 200g e espessura milimétrica, chega para desbundar sua biblioteca hereditária. É duro.

Serão e-readers os netos… Que argumentos usarei para que se encantem e viajem nos meus barquinhos de papel? Como convencê-los de que aqueles tesouros arqueológicos na estante da vovó têm valor inestimável?

Missão impossível concorrer com o barato de virar páginas a um simples toque; de ver uma orelha virtual registrar onde se interrompeu a leitura (psiu, não espalhem, eu marcava livro com pétala de flor…); de usar óculos e poder perdê-los entre almofadas – o corpo da letra amplia; de esbarrar em palavra desconhecida e ter o significado ali, ao pé da página (repouse em paz, Aurelião); de cansar de ler silenciosamente e uma voz seguir adiante. Com música ao fundo. Covardia.

Mas tem lá seus pontos fracos o brinquedinho… Nele tudo aparece em preto, branco ou cinza e a cartela da vida é outra. A voz que lê usa a mesma entonação para uma ata de condomínio e um poema de Bandeira. Sem contar que não permite aquele diálogo incessante a que se referia Maurois – “o livro fala e a alma responde”. Não tem perfume. Jamais será arte. E tenho dito.

Porém, como ele representa menos árvores derrubadas, soluciona problemas de ordem prática e – maravilha! – pode ser cura para azia e preguiça de ler de crianças, jovens, uns e outros… prometo tentar.

Se cansar de ficar “muderninha”, tem erro não. Os netos saberão onde me encontrar. Periga só de cair pirlimpimpim da estante e, enfeitiçados, rolarmos juntos no tapete, mais os tuaregues, o saci, o Quixote…

 

LIVROS-E-KINDLE

 

 

Um caminho para o céu (antes do avião)

 

 

              Nicolas Sauvage

Nicolas e família

 

 

 

 

 

 

 

Este poema e o anterior “Esperança” (aqui) de Nicolas Sauvage foi escrito para uma exposição “L`art au défi de l`esperance”, que foi realizada em janeiro de 2013 na Prefeitura do VI Distrito de Paris com a colaboração do artista plástico Eric Michel, com a intenção de fazer um livro objeto. Como veem, há um teor místico.

 

 

un chemin vers le ciel (avant l’avion)

 

quand j’étais enfant sur les petites routes de campagne

à vélo je me souviens de rouler sous le plafond nuageux

les rayons du soleil traversaient de biais une grande trouée

la lumière se posait en oblique comme la main de Dieu

que l’on voit dans les tableaux sombres à l’interieur des églises

 

rouler

ne pas penser à toi

penser en toi

 

rouler

me coucher avec toi m’allonger en toi

dormir avec toi dormir en toi

 

rouler

me réveiller contre toi

en toi éveillé

 

penser en toi sur cette route de campagne et garder l’équilibre

à vélo sous le plafond nuageux et

la lumière du soleil fait une échelle posée là pour aller au ciel

est-ce une main trop large à serrer trop claire à regarder

 

Nicolas Sauvage

 

bicicleta 4 (3)

 

um caminho para o céu (antes do avião)

 

quando criança nas pequenas estradas do campo

de bicicleta me lembro andar sob o céu escuro

os raios de sol atravessavam em viés uma grande brecha

a luz se punha obliquamente como a mão de Deus

que a gente via nos quadros sombrios no interior das igrejas

 

pedalar

não pensar em você

pensar em você

 

pedalar

deitar-me com você me estender com você

dormir com você dormir em você

 

pedalar

despertar contra você

em você desperto

 

pensar em você nessa estrada do campo e manter o equilíbrio

na bicicleta sob o céu escuro

a luz do sol coloca ali uma escada para ir para o céu

é uma mão tão grande para apertar e clara demais para olhar

 

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

 

Creio em Deus Pai…

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

Tendo sido batizado na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, aos três anos, sendo meu pais o Doutor Ciríaco André de Matos Pereira e Dona Mariana Correia Matos Pereira, padrinhos o Cavalheiro Fidalgo Tomé de Abreu e Albuquerque e sua mulher Dona Carlota Figueiredo de Albuquerque, oficiante o Padre Domingos da Santa Fé, tornei-me católico, apostólico romano, por força do compromisso que em meu nome fez a Deus o meu padrinho.

Até os quatro anos, não pensei em Deus nem na sua corte de anjos e santos. Até que comecei a ouvir os trovões e o raios, tão abundantes em nossa cidade, que abalavam nossa casa e faziam minha mãe ir acender velas para Santa Bárbara e São Jenônimo, exclamando, aterrada,“Deus nos acuda, é o fim do mundo!”

Comecei então a saber que Deus, ainda que nos mandasse trovões e raios que te partam, ao mesmo tempo nos socorria e acudia. E que havia também, ao seu lado, os santos e as santas, intermediários das nossas súplicas. Também, aos sete anos, levaram-me a ser catequizado, para mais tarde receber a Primeira Comunhão.

— Crês em Deus? —  perguntava-me a minha catequizadora, uma senhora gorda, de bandós e cabelos brancos, e eu respondia: “Sim, creio”. E ela prosseguia: “Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Honrarás pai e mãe. Não cobiçarás a mulher do próximo.”

Ensinou-me ela, também, o Pai Nosso que estais nos céus, a Ave Maria, o Credo, e outras orações. E eu devia, pela manhã, ao despertar e à noite, ao ir dormir, além de escovar os dentes, ajoelhar-me à beira da cama e rezar algumas orações. Por outro lado, a Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, representados por um triângulo equilátero, me perturbava. E ainda mais quando, já na escola, eu via o triângulo equilátero dentro do qual havia um olho aberto e a legenda “Deus me vê”. Deus me via todo o tempo, era um espião.

Terror e amor…

Tomei conhecimento também do Diabo, que era um sujeito muito safado, com chifres, rabo, pés de cabra e fedendo a enxofre.

Não obstante, meu Pai, quando estava encolerizado, costumava dizer: “O Diabo que te carregue!”

Os nomes sujos eram proibidos e, se acaso os pronunciássemos, minha Mãe mandava: “Vá lavar a boca, menino!”, e aplica-me um beliscão. Na casa, o único que não era mandado lavar a boca, nem era beliscado, era o meu Pai.

Na abóboda pintada da Igreja, eu via Deus barbudo, o seu filho Jesus, e o Espírito Santo, que era uma pomba. E nuvens, profetas, santinhos e santarrões, além do altar-mor e dos nichos com as imagens dos e bem-aventurados.

Cantava-se, em coro:

 

                                   “No céu, no céu,

                                   Com minha Mãe estarei…”

 

Ora, minha Mãe estava em casa, ou ali sentada, num banco, coberta por um véu negro.

As procissões da Semana Santa, ou de outros dias santificados, saiam da porta da Igreja e o povo desfilava pelas ruas, atrás dos andores carregados por pessoas vestidas de opa, com a Banda de Música atrás. O turíbulo, o cheiro de incenso, na nave, as beatas ajoelhadas, os sinos batendo. 

De costas, o padre murmurava:

— Introibo ad altarem Dei.

E o coroinha completava 

— Ad Deum qui laetiificat juventutem meam.

Na outra calçada, de outro lado da rua, um pouco acima da nossa casa, uma menina me olhava e eu olhava a menina.

 

 

 

Nota do Editor

A menina na outra calçada era minha mãe, que um dia, disputando uma cadeirinha com o menino, arranhou-lhe fundo o rosto, deixando uma cicatriz.

Passados muitos anos, o menino já moço voltaria à cidade da infância, de onde se mudara. Acabava de ter um trabalho premiado na “Semana Euclidiana”, realizada em São José do Rio Pardo, e aproveitava para passar alguns dias na Guaxupé natalícia e rever amigos e familiares.

Reencontrou-se então com a menina que o havia ferido, também já moça.

Soube, então, que a marca que ela lhe deixara seria para sempre.

(Os nomes no primeiro parágrafo são fictícios)

 

 

Pit-mamãe

 

      Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Querida ex-colega de trabalho envia notícias da chegada do primeiro netinho (bem-vindo, Bernardo!) e anexa esta charge. De imediato, a lembrança de certa “ pit-mamãe” , em relato de tempos atrás.

 

 

Não vejo novelas. São suficientes a ida ao salão, as mulheres comentando, e as dezenas de revistas que folheio enquanto as luzes do cabelo “acendem”. Daí saber que a atual “trama das oito” aborda uma pit-família. Pimpolho manda e desmanda, destrata a professora e é, invariavelmente, acobertado pelos pais em suas gracinhas.

Em recente reportagem intitulada “Pit-alunos levam professores a procurar divã”, leio o seguinte depoimento: “Um professor do curso de Direito foi procurado por um aluno que contou ser policial militar reformado por problemas psiquiátricos. O aluno começou a dizer que precisava de nota 6 para passar e que estava com vontade de matar alguém naquele dia.” O professor nem titubeou: “Toma um 8 e não se fala mais no assunto.”

O que anda acontecendo, senhores? Estive em sala de aula por 27 anos e não tenho uma pit-história?  “Os tempos eram outros, tia Selma!” , dirão alguns. Nem tanto, pois que parei ao final de 2007. Quero crer que contei com o auxílio luxuoso do meu amor pela profissão e da escola e seus setores disciplinares priorizando o diálogo.

Mas houve uma vez um verão em que precisei chamar determinada mãe para uma conversinha. Não lembro o sexo do filhote, nem se o motivo era falta de estudo ou má disciplina.

Só sei que, final de expediente, sentada à mesa corrigindo alguns trabalhos, escuto um “boa tarde, professora”. Levanto a cabeça para responder e vejo adentrar o recinto uma mãe de… quimono. Sim, quimono, havaianas e suor, muito suor. Meio aberto, o uniforme deixava à mostra seu pescoço e seu plexo “de responsa” . Os braços não ficavam totalmente abaixados. A marrenta criatura ainda era faixa marrom, ou seja, estava a um golpe da preta. E se a sparring fosse eu?

Pedi que sentasse, por favor, e ela o fez. Só que… em cima da carteira. E, balançando as pernas musculosas, mandou um direto: “Qual é o problema?”. Confesso que não me intimidei. Apenas respirei fundo por viver tão bizarra situação e apliquei um “Mãezinha, é o seguinte…”.

Acho que aquele diminutivo surtiu efeito de um ippon… Molinha, molinha, ela me ouviu até o final, agradeceu, pulou fora do tatame, ops!, da carteira, e caminhou serena em direção ao corredor da escola, já às escuras.

Sei não… Se a figura não foi contratada para mostrar sua arte em algum seriado de TV, ficou molinha para sempre, uma flor de candura fazendo crochê enquanto pimpolho não chega para estudarem juntos.

Nunca mais tive notícias.

 

 

Geratriz (II)

 

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2) 

 

 

 

 

 

 

                                                           Magia

 

 

                                                           Perfuro

                                                           o fundo da fala,

                                                           fabrico da saliva

                                                           uma caixa,

                                                           transformo-a em silêncio

                                                           no silêncio mais negro

                                                           e me cubro desta noite.

                                                           Amanheço,

                                                           manhã difusa,

                                                           mutismo de setas.

 

                                                           Para melhor uso

                                                           de minha intenção,

                                                           lacro a caixa fabricada

                                                           com o parafuso sujo

                                                           tirado da língua.

 

parafuso 

 

 

 

Os urubus, as aves e outros pássaros

 

             Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 

Os urubus, no chão, com um arranque, batiam as asas ― flap! flap! flap! ― subiam, subiam, e ficavam fazendo curvas lá no alto, no céu azul. Quando chovia, e depois que as águas deixavam de cair, vinham pousar na cumeeira do telhado, e ali permaneciam, hieráticos, de asas abertas, para as secar. Se caminhavam no chão do quintal, pareciam desajeitados. Não eram muito estimados, aves pretas que viviam de carniça. Mas tudo tem a sua utilidade neste mundo, até os carrapatos.

Havia, porém, as aves e os pássaros gentis, o beija-flor, as andorinhas, os sanhaços, os canarinhos da terra, a rolinha fogo-apagou, o tico-tico, o joão-de-barro, as pombinhas, a viuvinha, os bem-te-vis, os periquitos, os pássaros-pretos, a tesourinha, tantos, tantos, inumeráveis. Ao longe, no dia abrasador, a araponga malhava no ferro. Nos descampados, as seriemas, nos ervaçais as codornas. A coruja, coitada da coruja!, não era benvista, embora sábia, porque se lhe atribuía o mau agouro, Rasgava mortalha, ao redor das casas onde havia um moribundo. Na fazenda, acharam uma grande coruja, ferida na asa. Trouxeram-na para casa, e deixaram-na empoleirada num quarto de despejo, onde ele passou a tratá-la, trazendo-lhe regularmente pedaços de carne e água. Agarrada no pau da cabeceira de uma cama, ela estagiou ali, alguns dias, e já reconhecia o rapazinho. Tic-tic-tic, fazia-lhe com o bico curvo. Até que se curou, e ele a levou para o parapeito da janela aberta. Ia anoitecer, e a corujona sondou, sondou os arredores . Em seguida alçou vôo. Mas ainda voltou para se despedir dele e, uma vez ou outra, ali aparecia, para o saudar.

Era na época em que, em todas as antologias, havia o soneto de Raimundo Correa:

 

                                   Vai-se e primeira pomba despertada…

                                   Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas

                                   De pombas vão-se dos pombais, apenas

                                   Raia sanguínea e fresca a madrugada…

                                   […]

                                  

                                   Também dos corações onde abotoavam,

                                   Os sonhos, um por um, céleres, voam,

                                   Como voam as pombas dos pombais;

 

                                   No azul da adolescência as asas soltam,

                                   Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,

                                   E eles aos corações não voltam mais…

 

O Irmão Reitor, marista, do ginásio, professor de português, insistia, em cada nova classe de alunos, em declamar o soneto de Raimundo Correa. Ficava de pé, atrás da sua mesa, rubicundo, e agitava as mãos e os braços  enfiados na batina negra. As pombas voavam, Ele, porém, parecia antes um urubu.

Em muitas casas, nos seus poleiros, havia papagaios.  Desbocados alguns, berrando palavrões. Outros rezavam o padre-nosso. Bebiam café.

 

                                                Purrupaco, tataco,

                                               A mulher do macaco,

                                               Ela pinta, ela borda,

                                               Ela toma tabaco,

                                               Torrado num caco…

 

Você, hoje, parece que viu passarinho verde…

E há aquela estória de Millôr Fernandes, do cuco do relógio que, na hora de bater as horas, saia da sua casinhola e perguntava: “Ei, velhinho, que horas são?”

Todas as gaiolas estão com a portinhola aberta.

Os passarinhos fugiram.

 

 

“Passaredo” (Francis Hime / Chico Buarque), MPB4

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=8ZbfbyLoCCE[/youtube]

 

 

Querido diário

 

    Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manhã de check-up: 

 

Saio quase duas horas antes por causa do trânsito infernal. Chego pontualmente e ainda mofo para ser atendida em exames marcados.

Aguardo minha vez com aquelas risadas tor-tu-ran-tes de Ana Maria Braga na TV da sala de espera. Não consigo ler meu livro. Não posso fugir. Corto os pulsos? Ao menos eu entraria logo.

Uma jovem folheia “Caras”, sacode o carrinho do bebê com os pés e imita um chocalho ininterrupto com a voz. A criança grita fininho. Sabe motor de dentista?

Toca um celular. O ring é um cidadão aos berros: “Ora comigo! Sai deste corpo que não te pertence! Sangue de Cristo tem poder!” Que isso.

Na volta, já perto de casa, mais engarrafamento. São 40 cones para 10 homens asfaltarem UM buraco, em horário de pico, num trecho afunilado da estrada.

À tardinha… o impensável: “Senhora, queira desculpar, mas vamos estar repetindo um dos seus exames porque faltou luz* e nós o perdemos. Não se preocupe, vamos estar disponibilizando o horário que lhe for mais conveniente”.  _ De madrugada!, respondo. Mentira, rosno.

Querido diário, eu não acho, tenho certeza. Nunca mais domínio sobre a qualidade do nosso tempo, pessoas silenciosas, inteiras (suas metades estão sobre a mesa, no bolso, nas mãos), respeito mínimo, privacidade… Nunca mais restaurantes calmos, praias quase vazias…

Admirável mundo novo.

 

 

 

*Que faltou luz. Simplesmente o  profissional que me atendeu não dominava aquela estrovenga de medir esqueleto e o exame ficou ilegível. Rrrrr…

 

 

Geratriz

 

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

 

FUNIL INVERSO

  

 

A unidade

guindado num poço

o funil

a idade.

Posição falsa,

falácia, falcatrua.

Pretensão unívoca

e uma retidão contrária

à área de pouso.

Neste funil

não passa caldo

só saldo de um jogo.

Solto da gravidade

retém

disperso por ócio

ou negócio da China

um caleidoscópio.

A ubiquidade

fora do poço

a única idade.

 

Water reflection inside of well, directly above