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Ausências

 

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto

 

 

 

 

 

 

 

AUSÊNCIAS

 

 

                                               Ausências inesquecíveis,

                                               ausências perecíveis,

                                               vis,

                                               ignotas e abjetas.

                                               Ausências sempre atuais.

                                               Assíduas, pontuais,

                                               impressionantes.

 

                                               Cadeiras vazias,

                                               sofás abandonados,

                                               poltronas corroídas,

                                               cidades-fantasmas.

 

                                                Ausências que nos abalam.

                                                e que sentimos

                                                nas nossas ausências,

                                                dolorosas, amorosas e,

                                                mesmo, edificantes.

                                               Outras, nem a falta sentimos.

                                               Nos abandonamos a essas ausências,

                                               que nos acompanham,

                                               percebemos pouco ou muito

                                               sofrendo ou indiferentes,

                                               até felizes.

                                               De qualquer forma,

                                               elas são tão marcantes.

                                                Às vezes as perseguimos,

                                               quando se fazem tão presentes e

                                               quando nos levam para alhures, algures,

                                               nenhures e ficamos intácteis e transtormados e

                                               transformados

                                               ou impassíveis.

                                               Amiúde, nem a falta sentimos,

                                               entretanto seguramente,

                                               voltamos a nos entregar a essas ausências,

                                               as percebemos.

                                               Elas são realmente marcantes,

                                               perduráveis,

                                               indefectíveis.

 

ausências

 

 

 

 

O tédio e o remédio

 

        Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

Se Brás Cubas pretendeu inventar e fabricar um emplasto contra a hipocondria e a melancolia, creio que uma droga mais benfazeja, em pílulas, em xarope, ou em pó, deveria ser fabricada contra o tédio. Acho que esta flor amarela do tédio, com o seu odor putrecente, é que está definhando a humanidade e acabará por nos sepultar a todos.

Vamos para um lugar e para outro, e é sempre a mesma coisa, sempre o mesmo aborrecido contorno, que faz muitos de nós nos afogarmos no álcool, ou nos afogarmos propriamente dito. Vai ano, entra ano, são as mesmas comemorações de nada. Já não nos surpreendemos com as matanças, a ladroeira, a corrupção, a miséria, a fome, e as mesmas doenças.

Tão aborrecida se tornou a existência, que aquele Major inglês, referido por Monteiro Lobato, suicidou-se, cansado de desabotoar e abotoar a farda todos os dias.

Não há publicidade (e ela se produz às toneladas) que nos convença de que esta ou aquela cidade é a melhor que existe, e de que vivemos no melhor dos mundos. Você viaja para Londres, para Paris, para Viena, para Nova Iorque, para Amsterdã, ou para São Bento do Sapucaí, e tudo é a mesmíssima coisa.

Os jornais publicam semanalmente um suplemento de turismo, há uma agência de viagens em cada esquina, mas você vai ou fica, para continuar enfadado. Aqui, no Brasil, então, tudo é repetitivo: os mesmos canalhas, os mesmos bandidos repetem-se nas instituições, e suas caras estão nos canais de televisão e nas revistas, todas as horas. Já não há nem mesmo anedotas novas. Padronizou-se a burrice, nesta aldeia global, e não há como escapar. Homens e mulheres vestem a mesma roupa. Já não há nenhuma idéia nova.

 

                        “Sobre a minh´alma, como sobre um trono,

                        Senhor brutal, pesa o aborrecimento.

                        Como tardas em vir, último outono,

                        Lançar-me as folhas ao vento!”

 

É o que diz Olavo Bilac, no soneto “Tédio”. E é o mesmo “spleen” de Baudelaire, em quatro poemas:

 

                        “Quand le ciel bas et lourde pèse comme un couvercle

                        Sur l´esprit gémissant en proie aux longs ennuis,

                        Et que de l´horizon embrassant tout le cercle

                        Il nous verse un jour noir plus triste que les nuits.”

 

Urge um remédio contra o tédio. Será a obra de caridade maior que se pode fazer a todos nós.

Enquanto ele não aparece, vamos desvivendo.

 

emplasto brás cubas

 

 

 

De azul e amigos

 

         Selma Barcellos

Selma (perfil)

 

 

 

 

 

 

 

 

Com seu invejável poder de síntese, Verissimo está a cavaleiro quando diz que “escrever é fácil, difícil é resumir”. Coisa de craque este relato dele de um encontro com Suassuna, Millôr…
Babei. Literalmente.

 

 

 

 

O  ENCONTRO

 

Os peixinhos nadavam por entre as nossas pernas. Estávamos no mar em frente à casa do José Paulo e da Maria Lecticia Cavalcanti, Praia do Touquinho, Lagoa Azul, Pernambuco, Brasil, América do Sul, Terra, Via Láctea, universo, com água pela cintura. Quem éramos nós? Millôr e Cora, Gravatá, Lucia, eu e peixinhos anônimos.

Zé Paulinho e Maria Lecticia tinham providenciado tudo para que o prazer dos seus hóspedes fosse completo: sol decididamente pernambucano, céu e mar de um azul irretocável, uma mesa flutuante com guarda-sol em cima coberta de coisinhas para comer e bebidinhas para beber.

A um sinal do Zé Paulinho, vinham mais camarão, mais marisco, mais caipirinha, mais pássaros, menos pássaros, mais brisa, menos brisa — e de repente, descendo na nossa direção pela praia como uma aparição, um convidado convocado pelos Cavalcanti para que o dia fosse mais que perfeito: o Ariano Suassuna. De calção de banho!

Ele entrou no mar, e os peixinhos continuaram nadando entre as nossas pernas, sem nenhuma curiosidade intelectual. Eles só estavam ali para pegar os restos da mesa flutuante, alheios ao grande momento, como se um encontro de Millôr Fernandes e Ariano Suassuna com água pela cintura acontecesse todos os dias.

Nós, ao contrário dos peixinhos, nos encharcávamos do momento. Eu, chupando um picolé de mangaba — eu mencionei que também havia picolés de mangaba? — finalmente descobria o sentido da palavra “embasbacado”.

Depois do encontro no mar, um almoço magnífico — não fosse comandado pela dona Maria Lecticia. E o dia mais que perfeito terminou com uma visita a um terreno próximo onde o Zé Paulinho criava bodes. Nosso anfitrião queria nos mostrar um animal que importara da África do Sul e que, de tão antipático e posudo, recebera do Suassuna o apelido de “Somebode”.

 

(Luis Fernando Verissimo, 27/7/2014, em O Globo)

 

Um poema de los 60

 

 

 

MUERTOS

 

Josefina Plá

 

Si nos dejaseis un momento solos
oh muertos muertos muertos
Si os quedaseis siquiera
fuera del agua fuera
de ese rayo de sol en donde danza el polvo
fuera de la hoja verde
fuera del aire que entra en mis pulmones
 
Si os quedaseis prendidos a la tierra esperando
Pero no lo habéis invadido ya todo
la sal el pan la fruta
y el rocío y el césped
 
Después entrasteis
─ huéspedes sin color ─ en el recuerdo
Y nos pusisteis sombra en la mirada
y poblasteis el puente del beso entre los labios
y pudristeis los sueños
 
Si nos dejaseis un momento solos

 

                                     

 Josefina Plá

Josefina Plá (1903-1999) nasceu nas Ilhas Canárias, viveu e morreu em Assunção no Paraguai
 
 
“Augusto Roa Bastos, el más conocido de los escritores paraguayos, decía que Josefina Plá, Rafael Barrett y Hérib Campos Cervera habían sido sus maestros. La admiración del autor de Yo el Supremo hacia Josefina era tal que la postuló en dos ocasiones para el Premio Cervantes, sin éxito, pues por entonces, y hasta ahora, la obra de esta gran escritora no estaba en el mercado editorial internacional.” (Alfredo Fressia)

 

                                                  

MORTOS

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

Se nos deixásseis um momento sós

Oh mortos mortos mortos

Se nos deixásseis sequer

fora da água fora

desse raio de sol onde dança o pó

fora da folha verde

fora do ar que entra em meus pulmões

 

Se ficásseis presos à terra esperando

Mas não o haveis invadido já tudo

o sal o pão a fruta

e o orvalho e a relva

 

Depois entrastes

─ hóspedes sem cor ─ na recordação

E nos pusestes  sombra no olhar

e povoastes a ponte do beijo entre os lábios

E apodrecestes os sonhos

 

Se nos deixásseis um momento sós

 

 

 

Curtir a vida

 

       Annibal Augusto Gama

Annibal fumando

 

 

 

 

 

 

Além de várias acepções, entre a quais a principal será “preparar o couro de modo a torná-lo imputrescível”, o verbo curtir admite a significação popular de “gozar a vida”.

A vida é saboreável, como a comida, a bebida. Os curtidores da vida estão nas praias, nos bares, em viagens. Vestem-se sumariamente, são barulhentos, arrojam-se às cotoveladas para pegar o primeiro lugar; arredam de si qualquer espécie de preocupação, não permanecem em casa, gostam do luxo, dos carros de último modelo, potentes, de uma aparelhagem complicada, não têm escrúpulos, são ricos porque se meteram em negociatas rendosas, ou herdaram dos pais grossa fortuna. Esbanjam. Ignoram os pobres, os sofredores, repelem-nos, não crêem em Deus nem no Diabo. A vida, para eles, é aproveitar. Têm muito zelo pelo corpo, cultivam-no em ginásticas, massagens. Enfim, são os gozadores.

Em cada época, o sabor da vida foi diferente. Na belle époque, o prazer era o chique, os espetáculos públicos, as festas, os restaurantes, os balneários, a aventura amorosa. Vestia-se de redingotes, cobria-se com a cartola, usava-se a bengala. As mulheres tinham indumentárias complicadas, peles caras, muitas joias, chapéus monumentais. O curioso é que esta gente toda se vestia quase sempre de preto.

Atualmente, prefere-se o despojamento. A nudez exibe o corpo. Também o peso variou: a gordura foi substituída pela magreza, pelas mulheres anoréxicas. Em Roma, no tempo do Império, eram os banhos, os banquetes, as comilanças com os homens deitados, a conversação. Não se andava. Os ricos, os nobres, eram carregados. Barbas derramadas, o Senado, as guerras de conquista. Na Idade Média, foram o ascetismo, as catedrais góticas, o recolhimento. Temia-se pelo fim do mundo. As classes sociais eram nitidamente separadas. O campo, os vilarejos, dependiam dos castelos, que eram fortalezas.

No Brasil, apesar dos regabofes que sempre houve, vagavam pelas ruas das cidades imundas, os escravos, submetidos aos trabalhos mais penosos pelos ricaços. A mucama abanava e fazia cafuné nas amas. Também os senhores levavam-na para a cama. Mas a frugalidade era quase geral; comia-se pouco e mal. Quase tudo era importado, até os botões e os palitos Fidalgo. O mais eram a rapadura, o queijo, as carnes. Os bandeirantes, os viajantes, passavam fome. Ainda hoje, a maioria da população passa, mas é diferente.

Os homens ricos são colecionadores, e colecionam toda sorte de bugigangas. Têm adegas de vinhos preciosos.

O sabor da vida depende do tempero que se lhe dá. Daí também as conquistas marítimas dos portugueses, em busca das especiarias. Ainda hoje se fala da pimenta do reino, e do queijo do reino; do bacalhau do Porto.

Champanhe e caviar, eis o prato predileto dos ricos. As comidas exóticas de Lucano, como a língua de rouxinóis.

Eu, por mim prefiro o frango ao molho pardo, ou de cabidela. Ou a feijoada, prato dos negros escravizados. Com uns goles de cachaça.

 

 

Gama-Gomes no verão de Paris 2014

 

                Bell Gama

bell gama

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma contagem regressiva de pouco mais de 200 dias nos trouxe novamente para Paris. No ano passado, em setembro, já havíamos feito a saudável loucura de alugar um apartamento no Marais e ficar a família toda por quase 20 dias desfrutando da cidade luz. No último dia desta viagem, com um brinde de Billecart Rosé nos prometemos que voltaríamos para ficar mais tempo.

E o dia era 17 de julho. Nos encontramos em Guarulhos. Desta vez, sem a Jú, que arrumou o emprego que tanto sonhava e teve que ficar em São Paulo (ela fará falta!). E, mais uma vez sem a minha mãe que aproveita a data para tirar férias de nós. Até a hora do embarque, Carol e eu não acreditávamos ainda na viagem. Ela repetia sem parar se era possível ser tão feliz.

 

Manu alimentando o Babu no caminho do aeroporto para Saint Germain

Manu alimentando o Babu no caminho do aeroporto para Saint Germain

 

Ao pisarmos em Paris e encontrarmos o sorriso largo do Raymond que mais uma vez nos buscou no Charles de Gaulle descobrimos que é possível ser tão feliz. Desta vez, optamos por um apartamento em Saint Germain. Apartamento incrível que descobrimos ser de um dos brasileiros que mais admiro. Ainda não vou revelar o nome porque essa é uma outra história e fica o suspense.

 

Manu faz a sua primeira pose na vizinhança

Manu faz a sua primeira pose na vizinhança

 

Adaptados, era hora do tradicional Monoprix. Mais uma vez, chocamos os franceses pela quantidade de coisas que compramos. Aqui, as pessoas compram o suficiente para uma refeição e/ou um dia. E nós (mania de brasileiros) enchemos o carrinho. Obviamente com duas Veuve Clicquot e duas Moet Chandon mais um tanto de vinho, outro tanto de cerveja, queijos incríveis, frutas, pães e tudo que a gente tinha saudade. Na hora de voltar para a Rue do Bac, 40 sentimos a pressão do calor francês. O termômetro marcava 34 graus e nosso corpo pingava de suor. Já percebi que vai ser uma temporada muito diferente do que estou acostumada. Tanto que escrevo esse texto de top, shorts e Havaianas (coisa que nunca usei em Paris).

 

Família Gama Gomes no Sena

Família Gama-Gomes no Sena

  

Muito cansados do voo lotado nos forçamos a cumprir a minha tradição. Pela sétima vez começo a minha viagem pelo mesmo lugar: um brinde na torre. O Babu escolheu um vinho Pinot Noir da Bourgogne (nada mais francês).

 

O brinde da Torre

O brinde da Torre

 

Então eu a vi. Ela estava lá me esperando de novo.

Agora, podemos começar.

Ela me espera todos os anos

Ela me espera todos os anos

 

Bell Gama

julho/2014

 

 

 

Mudanças

 

         Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                 MUDANÇAS

 

                                                 Revistar gavetas

                                                 é revisar a alma,

                                                 é procurar o âmago

                                                 no passado

                                                 para recuperar o presente,

                                                 é reconstruir,

                                                 e reconstruindo

                                                 reformar a vida.

 

                                                 A terra pode

                                                 tremer,

                                                 já que tudo pode

                                                 mudar,

                                                 quando se revista

                                                 gavetas.

 

gavetas 2 (dalí)

 

 

 

O bilboquê

 

            Annibal Augusto Gama

Annibal fumando

 

 

 

 

 

 

 

Está na prateleira, ao lado das garrafas de bebidas. De vez em quando olho-o, mas não me animo a pegá-lo e a manipulá-lo. Perdi o jeito de embocar a bola, pendurada num cordão, na haste. Os meninos e as meninas que hoje são velhos eram muito hábeis com o bilboquê. Mas ele desapareceu, como desapareceram os carrinhos de rolimã e os piões. Os brinquedos mudaram, são muito outros. Há alguns meses, vi um pescador lançar ração a mais de cinqüenta metros, do outro lado da margem do lago aonde vou pescar. Impossível, como é que ele conseguia fazer aquilo? Dirigi-me então até ele e vi que, para lançar tão longe a ração, ele usava um estilingue. Os pescadores são inventivos e hábeis.

Com que brincam os meninos, hoje? Brincam com bonecos sofisticados e com aparelhos eletrônicos. Não sabem fabricar os próprios brinquedos. Não trazem no bolso o canivete marca corneta. Não sobem nas árvores. Nos regos, não fazem pontes para as formigas passar. As calçadas, nas ruas, já não são propícias para as danças e as cantigas de roda. Coelho sai! Não sai! O coelho não sai mais. Também, acabaram os quintais e os cavalos de pau, feitos de um cabo de vassoura. O assobio, o assobio, com que trocávamos mensagens de um quintal a outro, já não os ouço. Sentados diante da tela da televisão, ou do micro, os meninos se embasbacam. E onde foram parar as bolinhas de gude?

Fui soldado, creio que capitão, de uma guerra de mamonas, lançadas contra a hoste inimiga com as atiradeiras. As bolas de meia, e depois de borracha, com as quais jogávamos futebol nas ruas, não existem mais. As mães já não gritam da janela: “Olhe o sereno, menino! Já pra dentro!” 

Nas noites de chuva, brincava-se de esconder dentro de casa. Uma noite escondi-me dentro de um guarda-roupa, entre travesseiros com cheiro de alfazema, e adormeci.

Mas de manhã o sol voltou a aparecer, e fomos riscar na calçada, com carvão, a sua carantonha.

As enxurradas corriam pelas sarjetas, e íamos lançar nelas os barquinhos de papel.Todos os barquinhos naufragaram. O menino de ontem é hoje um velho obsoleto.

 

barquinho de papel

 

“O barquinho” (Ronaldo Bôscoli / Roberto Menescal), com Stacey Kent

 

 

 

Adalberto abre a gaveta

 

 

Adalberto (matéria jornal) 

 

Adalberto abre a gaveta

 

ALEXANDRE GAIOTO

 

Adalberto de Oliveira é um poeta sem pressa. Só agora, com o lançamento da obra “Corrosão” (Maçã de Vidro Edições), ele encerra a trilogia poética iniciada com as publicações independentes  de “Camuflagem” (1975) e “Captura” (1979). O livro recém-lançado reúne 72 poemas, que vêm sendo escritos desde 1999. Há, na obra, versos inéditos e outros que já haviam sido disponibilizados no blog Estrela Binária (www.estrelabinaria.com), administrado desde o ano passado pelo autor. “Demorei muito tempo para publicar o final da trilogia porque a rotina acadêmica prejudicava minha produção literária”, comenta Adalberto, que começou a ministrar aulas no departamento de Letras da UEM em 1988 e se aposentou no ano passado. Atualmente, a participação acadêmica de Adalberto é esporádica, fazendo parte de alguma  banca examinadora de dissertações e em outros momentos realmente  especiais. “Publiquei muitos artigos científicos na minha vida, mas é um tipo de produção que ninguém lê. A poesia ainda tem um pequeno público que não é tão grande quanto o dos romances, mas é um público, ele  existe”, diz. 

Cânone

Leitor de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Adalberto diz que suas influências  ainda se estendem a Baudelaire e Rimbaud. “Li todo o cânone brasileiro e o francês. São minhas influências básicas”, diz. Com a aposentadoria no ano  passado, Adalberto deu vida ao blog Estrela Binária. E vem se mantendo fiel à proposta inicial:  publicar um poema inédito a cada terça-feira. “Isso foi muito bom para  a minha produção, porque eu me obriguei a escrever e, assim, fui acumulando uma série de poemas. Às vezes, escrevo cinco poemas num só dia. Há outros momentos em  que passo um mês sem escrever um único verso”, comenta.  Com a trilogia encerrada, Adalberto agora está de olho no próximo passo literário. “Tenho uns  80 poemas inéditos. Talvez, eu  publique esse material num volume só, reunindo minhas obras completas, retomando alguns  poemas que foram publicados em revistas francesas e no meu outro livro, ‘Enigmas e Sensações’”, adianta. Com Adalberto solto à literatura, o universo acadêmico, infelizmente, perde um grande  professor. Os leitores em geral  ganharam, por outro lado, um  grande poeta.

 

Reconstruindo a desordem

 

LUZIA TOFALINI

professora de Letras da UEM

 

“Corrosão” sonda os meandros das esquinas da vida, trazendo à tona enigmas impenetráveis. Ao revelar a profundidade do ser humano, a obra constitui-se como um signo do mundo. As poesias aí contidas, frutos da cosmovisão e da atitude reflexiva do artista, vêm deleitar o leitor, preenchendo o espaço da necessidade de belo e de grandioso aspirado pelo espírito humano. Reflexão e filosofia são evidentes no livro. Basta atentar para a frase escrita pelo autor na contracapa: “A vida é um desejo fragmentado pela morte”. Os temas englobam desde o cotidiano até o universal. A dor existencial, metafísica, fazse presente em poemas como “Capitulações e queda”, “Vem, chega aqui, há sangue no chão” ou “Labirinto sortilégio”. A movimentação temporal também é representada, seja quando o passado é rememorado, como no poema “Ócio obrigatório” ou “Num átimo”, seja quando é constatada a irreversibilidade do tempo, como em “Impossibilidade”, “Metamorfose” e “Na sucessão dos dias, dos amores”; ou, ainda, quando aponta para o futuro, como em “Futuríveis” e “Quando menos esperarmos explodirá uma bomba”. Adalberto de Oliveira Souza, apaixonado por poesia e pela versatilidade que ela tem de sugerir sentidos, sabe que a linguagem comum é incapaz de traduzir todo o contingente das verdades mais profundas que habita a interioridade humana. Eis o motivo pelo qual se fez transfigurador da beleza e tradutor de realidades subjetivas, falando, como diria Araújo Jorge, o esperanto das imagens e dos símbolos. Desencantado e deslumbrado, ao mesmo tempo, diante da magnitude daquilo que vê, o poeta de “Corrosão” põe-se a falar, justamente porque acredita que a poesia tem uma força capaz de reconstruir a desordem. Por isso, muitos poemas partem do cotidiano e, transcendendo o tempo e o espaço, apontam para o perene e o absoluto. Para o artista Adalberto de Oliveira Souza, o poeta não precisa se apoderar de arsenais bélicos para transformar o mundo, mas mergulhar no abismo do seu próprio “eu”, colher ideias, emoções, sensações, transfigurá-las em símbolos, em imagens, e fazer de sua poesia um instrumento com dupla função: propiciar o conhecimento profundo da natureza humana e do mundo circundante; e, de posse desse conhecimento, intervir sobre a realidade. 

 

 O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ
Sábado, 14 de junho de 2014

 

 

“CORROSÃO” está à venda na  Livraria Cultura

 

 

 

O homem que olhava pela janela

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

 

Regularmente, tarde da noite, vou à janela iluminada da minha casa, e vejo o homem que, ao longe, parece também olhar da janela, igualmente iluminada, do seu sobrado. Ele olha para fora, durante algum tempo, e depois se afasta. Também eu, ao cabo de uns dois minutos, me afasto. Passa-se ainda algum tempo, e o homem que, do sobrado, olha pela janela, fecha-a e apaga a luz. Faço o mesmo.

Isto acontece todas as noites, e quase de madrugada.

Considerei bem todos esses fatos, e cheguei à conclusão, medindo a distância, que precisava conhecer o homem que olhava da janela, todas as noites.

Durante o dia, andei pelas ruas, e acabei descobrindo o sobrado, do qual o homem espia pela janela, recolhe-se e, depois, fecha a janela e apaga a luz.

O sobrado tinha um pequeno jardim à frente, uma cerca alta, de ferro e um portão. E a campainha.

Apertei a campainha e, decorridos alguns minutos, alguém apareceu na porta e perguntou:

─ Que é que o senhor deseja?

Respondi-lhe que precisava falar com ele. E vi que era um homem magro, de baixa estatura, já velho.

─ Pois fale daí mesmo ─ ele acrescentou.

Disse-lhe que dali não, precisava que ele me deixasse entrar e então nos entenderíamos.

Com relutância, ele abriu o portão. Entrei, e segui-o até uma sala.

─ Agora, o senhor diga-me o que tem a me dizer, e acabemos com isso.

Expliquei-lhe que o via, todas as noites, e tarde, ele olhando da janela iluminada do seu sobrado e eu, da minha casa o observava.

─ Ah, então, o senhor é que aparece numa janela iluminada, todas as noites?

De fato era eu. Ele olhava da janela do seu sobrado, e eu olhava da janela da minha casa.

─ O senhor mora sozinho? ─ eu quis saber.

─ Moro. E o senhor?

Também eu morava sozinho.

Assim, tudo entendido entre nós ambos, despedi-me e fui embora.

E continuamos os dois a olhar pela janela iluminada, todas as noites.

O que não sei é se é ele que me olha da janela, ou se sou eu que o olho da janela.

 

“Janelas Abertas” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), com Tom e Gal Costa

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