TODAS AS PALAVRAS
A palavra é larva
que se transmuda
desprende da língua muda
e no seu voo sonoro
engravida os ouvidos
repetindo o milagre
da Imaculada Conceição.
A palavra lavra
a folha branca
depositando no seu ventre liso
negras sementes
que fecundam os olhos
e a imaginação.
Como no poema de Bandeira
a minha vida fica
cada vez mais cheia
de palavras
(e de minhas tantas tolices)
todas as palavras menos uma
a que você nunca me disse.
“Tantas palavras” (Dominguinhos / Chico Buarque), com Chico
Desde pequeno Adamastor sentia uma dor de lado, umas pontadas esquisitas, no final do arco das costelas.
Isso não o impedia de ser um menino normal, que corria pelos jardins do antigo casarão do avô paterno, trepava nas jabuticabeiras, goiabeiras e mangueiras do vasto pomar para saborear os frutos no pé ou apenas se divertir. Gostava de brincar sozinho, imitar o canto dos pássaros, conversar com bichos ou seres imaginários.
De vez em quando a dor o incomodava, mas foi se acostumando com ela, e até se aproveitava de vez em quando para aumentá-la e assim faltar da escola ou da missa.
Preocupados, os pais o levaram a vários médicos que não encontraram nada de errado.
Quem deu a palavra final e tranquilizadora foi o velho médico da família, com sua sapiente experiência: “Isso não é nada. Quando ele crescer, sara.”
Adamastor cresceu com a misteriosa dor de lado. Já rapazola, podia defini-la melhor. Não era propriamente uma dor, mas uma sensação estranha, um desconforto, parecido com aquela fisgada de estômago vazio quando se está com muita fome.
Aos 18 anos, na faculdade, Adamastor conheceu Eveline, e desde a primeira vez em que a viu se sentiu tragado pelos seus olhos de mel, enroscado nos seus cabelos longos e serpejantes.
No baile dos calouros, depois de muita troca de olhares e sorrisos, e de algumas cubas-libres para criar coragem, tirou-a para dançar um bolero, a dor de lado dardejando mais do que nunca.
Quando a tomou nos braços e colaram os rostos no meio do salão, sentiu o perfume de maçã que ela exalava e lhe lembrou o aroma do pomar da casa do avô.
Como por encanto, a dor de lado sumiu.
Falta de ar, palpitações e tonturas passariam a acompanhá-lo pela vida afora.
https://www.youtube.com/watch?v=-JV1u0txHz0
“Dois pra lá, dois pra cá” (João Bosco / Aldir Blanc), com Elis Regina
QUANDO ENCONTRA O MEU…
“Este seu olhar” (Tom Jobim), com Rosa Passos
A alemã BVG, companhia de transporte público, implantou um portal de mensagens em seu site para pessoas que se esbarram nos metrôs da vida e, comportamento padrão do povo, não trocam palavra durante o trajeto, entreolham-se rapidamente, mas ficam sonhando com um reencontro: “4 de dezembro, 13h, esperamos juntos pelo metrô sentido Rudow. Você (mulher, botas e olhos marrons) entrou no mesmo vagão que eu (homem, jaqueta cinza e sacola da loja Conrad). Vamos nos ver?”.
Sei não… Tivéssemos hábitos berlinenses, a jovem “eu (loirinha, kilt e casaco de banlon, apostilas de Jornalismo), que ontem fez o percurso PUC /Praça XV com você (moreno, calça Lee, turma de Engenharia (?), perfume de Vétiver)” teria morrido de tédio. O melhor da faculdade era exatamente a paquera no trajeto.
E a categoria “imobilizados”, mencionada no artigo como aqueles que sentam, mergulham na leitura, e só se mexem na hora de descer? Tsc…tsc… Claro que sempre houve um livro, um jornal aberto “entre meus olhos e os olhos dela, como vento enciumado batendo a janela”, já escrevera o poeta. Apenas que fingíamos ler.
Bons tempos. A fila andava (catraca seletiva!), dávamos um passinho à frente, seguíamos o fluxo… Sem pressa de chegar ao ponto final. Por entre secretas miradas e paisagens outras, eram mais delicados os percursos.
Selma Barcellos