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MOLIÈRE E LUMIÈRE, ESTÁ DIFÍCIL…

 

      Selma Barcellos

Selma (perfil)

 

 

 

 

 

 

Não faz muito, Keith Jarett abandonou o palco da Sala São Paulo desculpando-se com os que não o fotografaram, mas havia sido expressamente pedido que não o fizessem. Fernanda Montenegro, tentando inovar, substituiu as três tradicionais batidinhas de Molière por três pedidos seguidos para que desligassem o celular. No último deles, até simpático, perguntava: “Vocês têm certeza de que desligaram?”. Perguntem se tocou algum.

É impressionante como a arrogância, a esperteza e a incivilidade de certos idiotas conseguem estragar nosso prazer. Outro dia, no cinema, fui vítima do “golpe da poltrona”. Com o assento previamente escolhido – sempre na ponta por causa das pernas compridas – , eis que o jovem casal vizinho me pede para trocar porque a moça estava enjoada e, se precisasse ir ao banheiro, não iria me incomodar. Concordei apiedada. Não é que a criatura não se levantou nem uma vez e ainda gargalhou o filme inteirinho? E eu ali, enlatada.

De outra feita, assistindo a um drama longo, denso, cheio de avanços e recuos na narrativa, não consegui me concentrar. Saí sem saber “quem matou Odete Roitman”, acreditam? Criatura ao lado passou os 138 minutos saboreando lentamente seu gigapacote de pipoca. A cada unidade que garimpava no saco, o papel fazia barulho. A cada engolida, ela se contorcia para pegar e recolocar o refrigerante naquele maldito buraco no braço da poltrona. Ao acabar, ainda ficou um tempão amassando as embalagens. O acompanhante? Dormia. Roncava! Como um temporizador, ela o cutucava. E eu estremecia.

Queridos, esta adoradora da telona e do escurinho do cinema joga a toalha.

Aquele “em breve, numa sala perto de você” será ao pé da letra. Sala de casa mesmo.

 

cinema (Selma) 

 

 

Play it again, Sam!

 

 

Parafraseada pela Selminha no post abaixo, a frase “Play it again, Sam!”, talvez a mais lendária da História do Cinema, jamais foi dita, seja por Ingrid Bergman, seja por Humphrey Bogart, no cultuado “Casablanca”. Ilsa (Bergman) fala ao pianista: “Play it, Sam. Play As Time Goes By”. E depois, quando Rick (Bogart) manda que Sam toque também para ele a mesma música, diz: “You played it for her, you can play it for me.”

Nos idos de 70, Wood Allen escreveu o roteiro (a direção não é dele, mas de Herbert Ross) do filme “Play it again, Sam” (cujo indigente título em português é “Sonhos de um sedutor”), no qual interpreta um crítico de cinema que tem idolatria por “Casablanca e, depois de abandonado pela mulher, tenta conquistar a mulher do melhor amigo (Diane Keaton) seguindo os conselhos de um imaginário Humphrey Bogart. O filme é uma delícia! Vale dar um play again… Em “Casablanca” também!

 

 

http://www.youtube.com/watch?v=zaAqze81y4Y

 

 

 

 

Parece mentira

 

           Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Tem coisas que eu nem gosto de contar porque parece mentira. Mas eu vou contar.

Era o ano de 1966 ou 1967. Meu amigo Roberto Pellegrino, o italiano, morava aqui em Ourinhos, mas namorava a Maria Inês — com quem veio a se casar —, que também morou aqui, mas havia mudado para Campinas, de modo que, de vez em quando, o Roberto tinha que ir a Campinas para namorar.

Uma vez, lá em Campinas, como parte do namoro, o italiano e a Maria Inês resolveram ir ao cinema. E foram. Era o Cine Carlos Gomes. Famoso. Importante.

Chegaram, compraram ingressos e entraram. Viram dois lugares bem localizados, foram lá e sentaram. O Roberto achou que estava um pouco quente e tirou o paletó. Não passou muito tempo, veio lanterninha e dirigiu-se ao italiano:

— O senhor, por favor, queira vestir o paletó. Não é permitido ficar sem paletó.

O Roberto já se dispunha a atender, quando viu ali perto um sujeito sem paletó pelo qual o lanterninha passara sem se incomodar. Falou:

— Mas olha ali aquele senhor, também sem paletó!

Aí o funcionário fulminou-o com o seguinte argumento:

— É, mas aquele rapaz já veio sem paletó. O senhor, não. O senhor veio de paletó. O senhor não pode ficar sem paletó. Não é permitido.

Foi assim.

 

Anos 60 do século passado. O Cine Ourinhos, único cinema da cidade na época, foi todo reformado. A plateia ganhou cadeiras novas. O balcão ganhou poltronas e se tornou chique. Nele, estabeleceram os proprietários, os homens só podiam entrar trajando paletó.

No início ocorreram alguns desencontros e mal-entendidos. Houve quem quisesse entrar no balcão sem paletó e quem imaginasse precisar ir de paletó para ingressar na plateia. Era novidade também para as bilheteiras e porteiros.

Uma bela noite, o professor Luiz Cordoni resolveu ir ao cinema. Foi, comprou ingresso para a plateia e se apresentou ao porteiro para entrar.

— O senhor não pode entrar.

— Por que não? Para a plateia, que eu saiba, não precisa paletó!

— É, mas o senhor está de suspensório.

De fato, o professor Luiz Cordoni usava suspensório.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=AY62QByUYJQ[/youtube]

 

 

Ela faz cinema

 

                         Bell Gama

bell gama

 

 

 

 

 

 

 

 

Fade in.

A primeira vez em que ela o viu foi pelo view finder. A inglesa e rara Bell-Howell Super8 encontrada em um bazar despertou seu sonho antigo. Sempre quis ser cineasta. Agora, com a câmera nas mãos fazia seu primeiro filme. Ele era o protagonista.

Depois de muito mexer na câmera para tentar fazê-la funcionar, ela desistiu. Definitivamente não era cineasta mas a beleza da peça a contagiou. Não resistiu. Empunhou a câmera, repousou delicadamente seu olho no pequeno orifício e como num susto acabou fazendo uma panorâmica. Apesar de rápido, o movimento foi suficiente para que ela analisasse todas as quinquilharias expostas ali. Muitas pareciam ter sido retiradas de sua memória, da infância que parecia tão distante quanto o seu sonho em fazer um filme.

Ao final do movimento, ele. Tilt. Estava vestido de calça jeans, uma camiseta branca e um tênis despojado. Bastava. Achou bonito de costas. Gostou mais quando ele virou lentamente e mostrou seu rosto. Ela descobriu o zoom.

Ficou surpresa com aquela figura naquele lugar tão abandonado quanto a sua vida nos últimos tempos. Procurou tanto aquele physique du role e agora nem havia precisado fazer casting. Ele simplesmente circulava olhando atentamente cada um dos objetos expostos. Brincava focando e desfocando. Ele, o objeto. O objeto, ele. Ele pegou um ferrorama antigo. Acariciou a caixa.  Certamente também se lembrava de sua infância.

Quando já estava completamente encantada com o jeito que ele olhava para o trenzinho, sentiu sua mão escorregar e bater em um gatilho. A câmera disparou fazendo aquele barulho inconfundível de cinema. Seu coração disparou quick motion. Flash Foward.

Transportou seu pensamento para onde gostaria que fosse o clímax daquele filme. Pensou nele. Em seu apartamento. Lusco fusco. Seus olhares cruzando em slow motion. Sua boca em close up. A boca dele em close up. As duas bocas em close up. Precisava de BG? Desnecessário. O ruído da câmera girando o carretel embalaria o filme mudo dando a dramaticidade necessária para um momento como aquele.

Corte. Voltou em pensamento para o bazar. Perdeu a continuidade. Ele já estava dobrando a esquina. Um halo deixava o andar dele ainda mais bonito, mais poético. Long Shot. Ele, a rua, a tarde, a cidade. Seu filme.

Fade out.

 

“Ela faz cinema” (Chico Buarque), com ele

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cGxtihukKiI[/youtube]

 

 

O rato que urge

 

 

 porquinhodaindia

 

 

Kim-Jong 2

 

O menino Manuel Bandeira sofreu a sua primeira desilusão amorosa com um porquinho-da-índia que só queria estar debaixo do fogão e não fazia nenhum caso das suas ternurinhas.

O menino ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, parece um porquinho-da-índia, mas se comporta ao contrário daquele do menino Manuel. Em vez de só querer estar debaixo do seu fogão, põe-se a esbravejar, ameaçando tocar fogo no mundo, louco para receber uma ternurinha. 

O teatro de guerra de Kim Jong-un me fez lembrar de um grande filme, verdadeiro clássico, “O Rato que Ruge” (“The Mouse that Roared”), em que o magnífico Peter Sellers, como costumava fazer, protagoniza diversas personagens.

O minúsculo ducado de Grand Fenwick, que ainda vive na era da espada e do arco e flecha, atravessa uma grave crise financeira porque seu único produto de exportação, um vinho fino, é vendido mais barato por uma companhia norte-americana. Seus governantes, a Duquesa e o Primeiro Ministro (ambos interpretados por Peter Sellers) têm então a brilhante ideia de declarar guerra aos Estados Unidos, na certeza de que, depois vencidos, passarão a receber ajuda para se recuperar.

Acontece, porém, que ao invadirem Nova Iorque vestidos e apetrechados como cavaleiros medievais, os bravos soldados do ducado, sob o comando de outro personagem vivido por Peter Sellers, encontram as ruas vazias por causa de uma simulação de ataque aéreo, capturam por acaso um cientista com a nova e poderosíssima arma por ele desenvolvida (uma bomba com o formato da bola oval de futebol americano, que de vez em quando estridula ameaçadoramente) e assim acabam por ganhar a guerra, com a capitulação incondicional dos Estados Unidos!

O filme tem um final feliz, mas resta saber se Kim Jong-un é apenas um rato gordo que ruge ou um rato louco que urge.

 

o rato que ruge 2

 

 

 

Eu me recordo…

 

 

 Fellini (livro)

Fotografia de um dos meus “altares” tirada com o iPhone, na noite insone.

(e que até deu um efeito interessante).

 

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=jutCDasyJxU[/youtube]

 

Essa sequência de “Amarcord’ é para mim a síntese perfeita do cinema, com todos os seus ingredientes eternos.

 

 

De pai para filho (a)

 

 

Para Bell

 

Aos cinco ou seis anos, o menino passou uma temporada de férias na casa dos avós paternos, na Franca do Imperador.

A cidade ainda era calma, mas ele apenas tinha permissão para ir sozinho até a esquina, a uns vinte metros, sempre pela calçada e jamais, jamais atravessar a rua.

No ponto final da sua grande aventura, bem na esquina, ficava o bar do Seu Tomás, que vendia sorvetes, pastéis, balas, pirulitos, e onde se comprava a garrafinha de guaraná permitida no almoço de domingo.

Era lá no Seu Tomás que o menino sempre ouvia um vozeirão entoando uma música diferente, que bulia com ele, às vezes o deixava alegre e saltitante, outras vezes, com uma tristeza entranha.

Um dia quis saber:

― Seu Tomás, quem tá cantando?

― Oxente, é o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, o maior cantor do Brasil!

E Seu Tomás foi buscar a capa do disco para lhe mostrar, com aquele sujeito vestido de vaqueiro, um sorrisão na cara, empunhando uma sanfona branca. Vaqueiros para ele eram os caubóis de que tanto gostava, mas Seu Tomás lhe explicou que aquela era a roupa dos vaqueiros do sertão do Brasil, coisa bonita de se ver.

Nunca mais se esqueceu daquela figura e daquelas canções. Luiz Gonzaga foi seu primeiro ídolo musical.

Tempos depois, o menino já era um moço, começava a faculdade, queria derrubar a ditadura, odiava os milicos, escrevia uns poeminhas envergonhados, compunha algumas canções com os amigos, tocavam, cantavam, participavam de festivais, queriam mudar o mundo.

Um novo Gonzaga surgiu na vida dele então, e suas canções de protesto, depois as românticas e os sambas o botavam comovido como o diabo. Explode coração!

Era um rapaz magrinho, barbudo, de cara fechada, sempre com um cigarro na mão ou na boca. Ficou conhecido como Gonzaguinha, filho do outro, o Gonzagão, que andava sumido.

Soube então que pai e filho tinham uma relação complicada, distante, com mágoas recíprocas do passado. Até que um dia os dois passaram a se apresentar juntos e a percorrer todo o Brasil, reconciliados, fazendo um sucesso estrondoso.

Gonzagão deve ter partido feliz. Cerca de dois anos após, Gonzaguinha também se foi, num acidente de automóvel.

De repente, tudo aquilo  ― e muito mais ― estava ali, vivificado na tela do cinema em São Paulo, numa tarde de sábado.

O menino, o moço, o pai e avô ao lado da filha do meio, ambos emudecidos e engasgados com o que assistiam.

Quando o filme acabou e as luzes se acenderam, ela não se importou de exibir os olhos vermelhos e ainda lacrimejantes.

Ele colocou os olhos escuros para disfarçar (que bobagem…).

Saíram juntos de mãos dadas para a noite que caía e para a vida que os esperava.

Era bom saber que nunca estiveram distantes, mas estavam cada dia mais próximos.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=63Na62E0LZk[/youtube]

 

 

 

Num tempo da delicadeza

 

 

 

            Ontem à noite fui assistir, finalmente, ao filme “O Artista”.

            Saí do cinema literalmente sem palavras, com vontade apenas de sorrir um largo e contagiante sorriso, de dançar, sapatear, ter um cãozinho fiel e companheiro, um mordomo querido (que nem se importa em receber o salário), render-me, por fim, à sedução de uma pintinha no canto da boca (por incrível que possa parecer — e que deliciosa coincidência — uma das primeiras canções, se não a primeira, que Brenno e eu fizemos juntos chama-se “Cantiga para ninar menina com pintinha no canto da boca”, e nasceu logo após termos conhecido a encantadora dona dessa pintinha).

            O filme nos transporta para a época de ouro do cinema, e de um tempo da delicadeza que tanto falta faz, dos prazeres mais simples e essenciais.

            Como eram lindas as roupas das mulheres — e insinuantemente sensuais, com decotes fundos, franjas e aberturas, os vestidos já acima dos joelhos —, os chapéus! Com que elegância e charme se trajavam os homens!

            O roteiro reúne todos os clichês do cinema mudo — e tinha de ser assim —, mas sem cair jamais na caricatura ou no pastiche. Muito pelo contrário, além da fotografia (foi rodado em cores e convertido para preto e branco), da iluminação e dos enquadramentos primorosos, há diversas tomadas antológicas, como o pesadelo sonoro do astro George Valentin (que além da referência óbvia a Rodolfo Valentino, tem muito de Charles Chaplin e Errol Flynn, que igualmente penaram na transição do cinema mudo para o sonoro), o encontro dele, já no início da derrocada, com a nova estrela em ascensão Peppy Miller numa escadaria vazada, como um cenário de teatro, enquanto várias pessoas descem e sobem; ele em plena decadência, quase um vagabundo, visualizando-se vestido com o fraque da vitrine e a aproximação do guarda implicante (puro Chaplin); o final maravilhoso, com as câmeras abrindo para o estúdio, a revelar a realidade mágica do cinema (lembrou-me Fellini em “E la nave va”, e Truffaut, em “La Nuit Américaine”).

            Ah, a arrebatadora química de Jean Dujardin (George Valentin) e Bérénice Bejo (Peppy Miller)!

            Quando as luzes se apagavam para o início da sessão, contei exatamente doze expectadores, incluindo-me, na sala.

            Depois de alguns trailers barulhentíssimos — meu bom Deus, como as atuais salas tecnológicas têm o som ensurdecedor! —, foi reconfortante mergulhar no mundo onírico do cinema mudo, em que a música (na época executada por orquestras ao vivo) conduz a trama e o sonho.

            No final, tive a pachorra de voltar a contar: havia, comigo, vinte e oito gatos pingados. Parecia o filme fracassado de George Valentin, “Tears of Love”.

            Quem haverá de se interessar por delicadezas nestes tempos de grosserias e espertezas? (Aliás, um sujeito sentado próximo a mim passou o tempo todo teclando e afagando o precioso smartphone, o que me fez mudar para outro assento da sala vazia).

 

                         

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Truffaut e Doinel

 

 

 

            Alguns dias de férias (tão poucos!) proporcionam isso.

            Pouco mais de 11 horas da manhã, deparo num canal a cabo com o início de Domicílio Conjugal (1970) de Truffaut, e posso me refestelar na poltrona para continuar a assisti-lo até o final.

            Domicílio Conjugal é o quarto filme da trajetória de Antoine Doinel, tido como alter ego de Truffaut.

            Os filmes anteriores traçam a adolescência traumática (Os Incompreendidos, 1959, vencedor do prêmio de direção em Cannes), os primeiros amores (Amor aos 20 Anos, em que se acha inserido o curta Antoine e Colette, 1962) e o despontar da vida adulta com suas desilusões (Beijos Proibidos, 1968) de Doinel, sempre interpretado por Jean-Pierre Leáud na mesma faixa etária do personagem (e que me parece muito mais expressivo quando jovem, nos dois primeiros filmes, tornando-se um tanto caricato depois).

            Consta ter sido Henri Langlois, o célebre fundador da Cinemateca Francesa, quem estimulou a sequência ao comentar com Truffaut após uma sessão de Beijos Proibidos, que termina com Doinel fazendo juras de amor a Christine (Claude Jade), a curiosidade em vê-los casados e constituindo família.

            Truffaut entendeu, porém, que Doinel não poderia seguir um padrão acomodado às regras sociais, e em Domicílio Conjugal o representou como um tipo empenhado em se ajustar, mas ainda à margem, como refletem seus trabalhos incomuns de tingir flores e controlar o tráfego de navios em miniatura numa maquete.

            Nessa tentativa de se adaptar à vida burguesa, e depois do nascimento do filho Alphonse, Doinel sucumbe à sedução de uma jovem japonesa (Hiroko Berghauer) e põe a perder o casamento, que depois tenta desesperadamente recuperar. Enquanto isso, frequenta bordéis e se comporta como se fosse solteiro, a demonstrar sua insegurança e imaturidade.

            Tudo isso, contudo, transcorre numa atmosfera leve e poética, que explora o aspecto de crônica do cotidiano, entremeada de memórias afetivas e observações sobre a vida, tão características de Truffaut.

            Além de Doinel, outros personagens são inspirados em lembranças do diretor, que quando criança observava fascinado em sua rua um tingidor de flores. Uma tia de Truffaut, assim como Christine, ensinava violino, e até mesmo o homem misterioso conhecido como O Estrangulador — que depois se revela humorista na TV — foi inspirado no amigo de infância e comediante Claude Vega.

            Apesar de todos os filmes protagonizados por Antoine Doinel terem sido feitos a intervalos regulares, a série nunca foi concebida como tal por Truffaut, que sempre pensava não mais voltar ao personagem.

            Mais do que qualquer outro, Domicílio Conjugal deveria ser o último, entretanto Truffaut ainda faria O Amor em Fuga (1979), este sim a conclusão da vida cinematográfica de Doinel (Truffaut morreria em 1984, ano profético da obra de George Orwell).

            Numa das muitas cenas deliciosas de Domicílio Conjugal, Doinel comenta com um vizinho sobre a dificuldade de encontrar um bom título para o livro que está escrevendo, travando-se o seguinte diálogo:

J’aimerais trouver un titre à mon livre.

— Il y a des tambours dans votre livre? 

— Non.

— Des trompettes?

  Non.

— Alors appelez-le “Sans tambour ni trompette” (que, por sinal, é um ótimo título).

            Em O Amor em Fuga, Doinel afinal lançaria — e com sucesso — o seu projetado romance autobiográfico, com o duvidoso título de Les salades de l’amour.

 

 

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