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“Noite dos Mascarados”, Chico Buarque / Elis Regina

 

 

Deus lhe pague

 

 

 

 

                                   ─ Dá uma moeda pra comprar um pão?

                                   Dou-lhe.

                                   E lá vai ele com o tostão furado

                                   comer o pão que o diabo amassou.

 

 

 

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A arte do encontro V

 

              

 

Texto de Aldir Blanc, lido por José Wilker na última edição do Prêmio da Música Brasileira:

 

 

“Quando conheci João Bosco, fiquei fascinado com um ponto comum na imensa variedade de seu repertório ainda sem letra — sambas, toadas, canções, algumas cujo gênero não era, e não é até hoje, fácil de definir: havia nelas o uivo barroco da solidão de Ouro Preto, cidade onde João estudava engenharia e compunha, em silêncio, uma revolução musical.

Já éramos, por temperamento e destino, uma parceria indissolúvel. Tínhamos, como nos orgulhamos de ter até hoje, inesgotável vontade de trabalhar. Lembro do João, começo dos anos 70, quando já morava no Rio, pegando o violão no começo da tarde. Muitas vezes outro dia raiaria, e apesar dos uísques e cervejas, nós estávamos inteirinhos, atentos, João tocando na pontinha da cadeira, eu em frente, ligadaço, como no minuto em que havíamos começado a canção, na tarde anterior, até ficarmos satisfeitos e trocarmos um sorriso cifrado: mais uma no balaio.

João é um forte. Sofreu incompreensões e até maldades difíceis de suportar, a menos que o artista tenha um objetivo implacável. Compúnhamos em táxis, butecos, aviões e de madrugada, em hotéis, quando voltávamos dos shows, incansáveis. Fizemos músicas em pé, de ressaca, na beira da calçada. Fizemos música sonhando, fizemos música sofrendo muito. Esse é o maior orgulho da parceria: sempre ralamos com afinco, com a maior garra.

Estivemos afastados vinte minutos, vinte séculos – e esse tempo foi igual a observar as mesmas estrelas de navios diferentes, sentindo a água e o vento que nos reuniria.

Se hoje, paradoxalmente, as dificuldades são maiores, também fomos claros sobre isso: “Glória a todas as lutas inglórias!”.”

 

 

               Como João e Aldir, temos uma parceria indissolúvel, por temperamento e destino.

             Como Aldir e João, ficamos algum tempo afastados  — “a observar as mesmas estrelas de navios diferentes” —, por contingências da vida, sem nunca ter brigado.

               Como João e Aldir, um dia nos reaproximamos e apenas prosseguimos a conversa interrompida na proa do velho barco, como acontece com os verdadeiros amigos.

               Ele e eu sempre adoramos Aldir e João. Um dos momentos mágicos da minha vida foi quando, já amanhecendo o dia  (“eu gosto quando alvorece porque parece que está anoitecendo…”) e após deixá-lo no prédio em que morava, ao sair com o meu fusca começou a tocar no rádio uma canção ainda desconhecida, interpretada por Elis Regina, que imediatamente me despertou todos os sentidos e todas as emoções. Voltei a estacionar, o coração aos saltos, para ouvir com mais atenção, e ao final os olhos teimavam em vazar.

                Era o “O bêbado e a equilibrista”. Que sufoco! Queria voltar, dar um jeito de repetir a música para mostrar a ele. Mas eram outr os tempos, duros tempos de ditadura, sem celular, sem internet, sem as facilidades de hoje.

            No dia seguinte, contei-lhe o acontecido, além do título, consegui reproduzir alguns trechos esgarçados da melodia e da letra, falei do arranjo com o som do realejo no início, deixando-o ainda mais ansioso e louco da vida para conhecer a canção, até que alguns dias depois  — muitas vezes mais e até hoje — escutamos juntos.

               Outro momento precioso e parecido foi quando ouvimos juntos pela primeira vez, à porta de uma loja de discos da Guarujá das “meninas descalças”, a canção “Apesar de você”, de Chico Buarque, que acabava de ser lançada.

               E todos aqueles tantos momentos em que trocamos “um sorriso cifrado: mais uma no balaio” (que podia ser uma nova canção ou qualquer outra coisa, apenas a súbita percepção de uma sintonia plena).

               Lembra disso, Brenno?

               Feliz aniversário,  meu jovem ancião.

               Ainda temos muitas penúltimas a fazer e beber, “tanto faz, se é noite ou se é dia”

 

 

               P.S.  Pô, quando é que você vai tomar (ou perder a) vergonha e mandar aquela sua canção para o João?

 

 

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Me dá a penúltima (João Bosco e Aldir Blanc)

 

Eu gosto quando alvorece

porque parece que está anoitecendo

e gosto quando anoitece que só vendo

porque penso que alvorece

e então parece que eu pude

mais uma vez, outra noite,

reviver a juventude.

Todo boêmio é feliz

porque quanto mais triste

mais se ilude.

Esse é o segredo de quem,

como eu, vive na boemia:

colocar no mesmo barco

realidade e poesia.

Rindo da própria agonia,

vivendo em paz ou sem paz,

pra mim tanto faz

se é noite ou se é dia.

 

 

 

A arte do encontro II

 

 

 

© Foto de Fernando Duarte. Tom Jobim e Elis Regina. Los Angeles, 1974.

 

 

          Em 1974, o fotógrafo Fernando Duarte registrou em filme o histórico encontro entre Tom Jobim e Elis Regina em Los Angeles, durante a gravação do disco “Elis & Tom”, nos estúdios da MGM. Ao lado de Mário Carneiro, Fernando Duarte é considerado um dos mais importantes fotógrafos do cinema brasileiro, um dos responsáveis pela inovação da fotografia que predominou no Cinema Novo.

          Não existe uma só faixa do disco que não seja antológica:

 

1.       Águas de Março

2.       Pois é

3.       Só tinha que ser com você

4.       Modinha

5.       Triste

6.       Corcovado

7.       O que tinha de ser

8.       Retrato em branco e preto

9.       Brigas, nunca mais

10.     Por toda a minha vida (Exaltação ao amor)

11.     Fotografia

12.     Soneto de separação

13.     Chovendo na roseira

14.     Inútil passagem

 

          Tenho até hoje, e conservo como relíquia, o LP de vinil original.

 

 

 

 

          No vídeo abaixo, apesar da precariedade das imagens, dá para sentir o astral que reinava nos ensaios e no estúdio, além de alguns trechos das gravações, de que só participaram feras, como Aluisio de Oliveira (produtor), César Camargo Mariano (então casado com Elis), Bill Hitchcock, que aparecem no vídeo.

          

 

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É preciso aprender a ser só (ou a só ser)

 

 

 

 

               Há trinta anos ficamos sós, sem a presença, às vezes doce, às vezes apimentada, de Elis Regina.

               Lá pelos meus verdes vinte anos, tive a graça de conhecê-la na casa dos irmãos Penha, Altamir e Edinho, músicos excepcionais, onde costumava se hospedar (ou pelo menos visitava) quando vinha a Ribeirão Preto e região para se apresentar.

               Levou-me um amigo mais velho, Caio Próspero, que desfrutava da intimidade dos Penha e me recomendou cuidado e discrição perto de Elis, que a qualquer momento podia se zangar e mandar a mim, ou qualquer outro, para um lugar pouco aprazível.

               Comecei então aquela noite de sonho um tanto ressabiado, mantendo-me a certa distância e a olhando de soslaio. “Olhos de águia, ouvidos de elefante e boca de siri”, eis outro velho e bom conselho recebido no passado que sempre trato de seguir, com ótimos resultados. 

               Mas com o decorrer das horas, bebidinhas rolando ao som de canções e interpretações de arrepiar, fui me entusiasmando e soltando, até que de repente, não mais que de repente, estava sentado quase ao lado dela, que me encarou e sorriu duas ou três vezes. Arrisquei mesmo alguns comentários que foram bem recebidos, sem destoar do que se conversava e do clima de intimidade reinante. Enfim, comendo pelas bordas, acabei por entrar na roda de música e encantamento. Elis, ao contrário do que temia, foi gentilíssima com todos até o final da noitada.

               Para minha alegria houve um repeteco meses depois, quando cheguei a ganhar beijinhos no rosto ao cumprimentá-la e ao me despedir.

               Costumo dizer que sempre tivemos cantoras extraordinárias, e continuamos a ter, mas para mim Elis Regina foi, e ainda é, a síntese de todas elas, reunindo em si as melhores qualidades de cada uma de nossas grandes damas.

               Numa daquelas noites, presenciei Elis cantar o lindo samba-canção dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, “Eu preciso aprender a ser só”, que ela havia gravado. Quando já se achava consagrada, disse em várias entrevistas que a partir daquela interpretação é que começou a ter o respeito da crítica e do público. Talvez ela tenha alcançado então outro patamar de reconhecimento do seu talento, mas muito antes, desde suas primeiras aparições, já era reverenciada como grande cantora e intérprete.

               “Eu preciso aprender a ser só” tornou-se tão marcante que anos mais tarde Gilberto Gil respondeu com o não menos inspirado “Eu preciso aprender a só ser”, sobre o qual o ouvi contar ou li em alguma parte que compôs e gravou para conseguir se livrar da canção dos irmãos Valle que não lhe saía da cabeça e o estava impedindo de fazer outras coisas.

               Aqui vão as duas canções que me despertam tantas lembranças e provocam imensa emoção sempre que ouço.

               Em seguida, um vídeo do meu querido e talentoso amigo José Marcio Castro Alves que dá uma amostra da maestria de Altamir e Edinho Penha (e de como eram as noitadas e os saraus na casa ou na chácara deles).

 

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