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Trocando passos

 

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

Lindalva tremia só de imaginar que pudesse ser um estorvo na vida dos filhos. Daí que vivia sem desperdícios, esticando como podia a modesta pensão que Inércio lhe deixara, guardando o dinheiro que ainda entrava da venda das toalhas pintadas à mão, barrinhas de crochê, tudo muito caprichado, by Linda. Achava tão chique assinar assim…

Anos a fio e a tinta, encomendas dobrando nos dias das mães e natais, Lindalva seguia batalhando, tecendo seu pé-de-meia e, na casa própria que a duras penas ajudara a pagar (Inércio não era chegado a um batente), ainda encontrava forças para receber filhos e netos para a lasanha dos domingos.

O falecido fora um bom pai. Nada faltou aos meninos, é certo. Mas, para Lindalva, a tal vida a dois não passara de um filme de quinta, uma fita esquecida na máquina de um embolorado cinema, rodando ininterruptamente.

Lindalva adorava dançar. Vivia cantarolando “um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”, esperando que Inércio a tirasse para dançar, ao menos uma vez, na cozinha que fosse, ao som mesmo daquele rádio horroroso em cima da geladeira, bandeirinha do time presa na antena fazia anos.

Jogo jogado, prorrogação quase, Lindalva começou a cobrar um pouco mais da vida. Deu de se olhar no espelho, restinho de vaidade pulsando tal qual as tantas veias que insistiam em lhe tatuar as pernas. E resolveu tirá-las do mapa. Vaidade ou não, merecia. Tanto sacrifício, privação, noites em claro para dar conta das encomendas, poupando, guardando… Marcara dia e hora. Avisara aos filhos.

Mas havia um sonho no meio do caminho. Um desejo sublimado que aquela poupança de tantos anos tinha por obrigação realizar, sob pena de arrependimento sem volta. Até porque não haveria tempo hábil para recomeçar do zero, amealhar tudo de novo. Pensou. Pesou. Decidiu.

Deu-se de presente uma festa. O acalentado baile de seus 70 anos. Mandou florir o salão do pequeno clube do bairro, convidou poucos e bons amigos. À meia-noite fez um sinal para o músico, colocou-se no centro da pista. Sob aplausos, com um partner de aluguel,  dançou aquele tango tantas vezes ensaiado na solidão do quarto. Flor vermelha nos cabelos, vestido bordado, sandálias altas. Tudo muito caprichado, by Linda.

Num único instante, ainda que as pernas não estivessem lá essas maravilhas, dançou por uma vida inteira. Resgatando todas as festas e prazeres que o destino implacavelmente lhe negara, Lindalva nunca foi tão feliz.

 

P.S.: A personagem é real e vai bem, obrigada. Não mexeu até hoje nas veias bailarinas, mas aquela festa com direito a tango ficou na história. Se lhes interessa, o vestido dela era verde como seus olhos, já nasceu o primeiro bisneto, e tudo me foi relatado por uma de suas amigas presentes. Apenas o nome do falecido é ficção. Pelo conjunto da obra, merecido. (novembro/2008)

 

Para Lindalva, pelos 74 recém-completados. A menina ainda dança.

 

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=F2zTd_YwTvo&list=LPNBdv1pJ3lHo&index=6&feature=plcp[/youtube]

 

 

Soneto sessentano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                   Aos sessenta, que maldizem de melhor idade,

                                   o homem se senta na cadeira de balanço

                                   e se abalança a fazer um balanço:

                                   o futuro caducou.

 

                                   Restam-lhe o passado e o presente,

                                   sobretudo aquele de quando somava

                                   menos quarenta, que se não se engana

                                   dá vinte (o que é quase um acinte).

 

                                   Aos vinte, o homem não se senta

                                   anda por todo lado e fala pelos cotovelos,

                                   sem tempo de ser ouvinte.

 

                                   Aos sessenta, quando é todo ouvidos,

                                   se sente meio surdo de tudo

                                   e lhe zumbem todos os olvidos.

 

 

Meu tempo é hoje

 

 

No esplêndido documentário “Meu tempo é hoje” (a que tornei a assistir ontem) Paulinho da Viola fala bastante sobre o tempo, mas diz não ter saudade, nem viver no passado: “Meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado, o passado vive em mim”

E se o passado, tudo aquilo que nos toca e sensibiliza, as coisas boas, que passamos ou de que apenas sabemos, levamos conosco, vivem com a gente, então é presente.

Paulinho, na sua majestosa singeleza, completa setenta anos, e o presente é nosso de ser presente com ele.

 

 

[youtube]https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=z4Iq01eom-I[/youtube]

 

 

 P.S. O outro Paulinho, amigo amigo, do poema abaixo, também é assim. Leva consigo o passado e dele faz presente a ele e a nós.

 

 

O anjo caído

 

 

    Selma Barcellos 

selma_couri_barcellos

 

 

O dia fatídico da profecia dos maias se aproxima,

mas para o cirurgião amigo da Selma, tanto faz…

 

 

 

 

Era 2012 ou nunca, buzinaram-lhe os maias. Desfilaria na Sapucaí.

Amigo querido, cirurgião renomado, incumbiu o anestesista da equipe de escolher a escola e a fantasia, frisando que “só não queria aquela que homenageava iogurte com alas de bactérias que organizam o intestino.”

Chegado o dia, ansioso, coração “batendo mais que as maracas, descompassado de amor”, partiu para se arrumar na casa do colega folião, repassar o samba, tomar um uisquinho desinibidor…

Porém, ai, porém. O anfitrião avisou que não ia beber por “questão de  segurança”. Concordou. Longe dele bancar o chato. A sunga (branca!) de seu Anjo veio trocada, tamanho P. Se puxava na frente, faltava atrás. Sentiu-se praticamente um Gabeira de cache-sex. Os pés até entraram nas sapatilhas. Mas os velhos e torturantes joanetes, não. Pisou na avenida, quebrou-lhe a asa esquerda e o maldito ferrinho da armação começou a feri-lo “à altura da escápula”. Passou o desfile  inteirinho apoiando a traquitana. Na moral. Como assim, a escola perder pontos em fantasia e adereços por causa dele?

Escola evoluindo, um componente bebum resolveu crocodilar sua mulher e “evoluir” ao redor dela. Fingiu que não viu, fazer o quê. Deselegante um arranca-rabo diante da multidão e das câmeras. Como assim, a escola perder pontos em evolução por causa dele?

Na dispersão, já a caminho da condução fretada, passou por uma área estranha com gente esquisita e ouviu dos rapazes alegres: _ Beleza de reguinho! Acelerou o passo. Bufava. Derretia.

_ Caríssima, que tal minha estreia na avenida? – pergunta traumatizado.

Tento filosofar, dizendo-lhe que são dores e delícias do carnaval como, de resto, da vida. Conto sobre nosso carro novinho abalroado por trás por um gringo bêbado, sem carteira e sem condição de descer para dialogar, o que nos obrigou a fazê-lo com sua acompanhante, uma afroMinnie gigantesca – a visão do inferno – , igualmente bêbada. A criatura só balançava o laçarote de bolinhas sobre a cabeleira progredida e dizia: “Xês – hic! – podem me telefonar que – hic! –  tudo será resolvido.”

_ Obrigado, Selminha, mas nada se compara a desfilar com os joanetes doendo, a asa quebrada e a bunda de fora. E a escola caiu, sabia?

Ô dó.

 

 

 

 

 

Braço forte, pé de barro

 

 

 

 

 

Embora não seja a única, nem a mais confiável, a versão disseminada sobre a origem da Maratona remete ao ano de 490 a.C., quando soldados atenienses marcharam até a Planície de Marathónas para combater os persas, na batalha que fazia parte das Guerras Médicas.

Os persas haviam jurado aos gregos que, caso vencessem, invadiriam Atenas, violariam suas mulheres e matariam seus filhos. Temendo tal violência, os gregos combinaram que as mulheres matariam os filhos e cometeriam suicídio, caso não tivessem noticia sobre a vitória dentro de 24 horas.

Como os atenienses venceram, após uma longa e difícil batalha, Pheidippides foi incumbido pelo comandante Milcíades de correr todo o Vale de Maratona até Atenas, numa distância aproximada de 40 km, para levar a notícia e impedir a desgraça. Ao chegar, exaurido, Pheidippides só teve fôlego para dizer uma única palavra antes de cair morto: “Vencemos”.

O esforço desumano, e fatal, de Pheidippides já se afigura muito pouco diante das novas modalidades de Ultramaratona, Ironman, Triatlo, outras extravagâncias  e exorbitâncias que ninguém haverá de me convencer que sejam benéficas à saúde e ao bem-estar dos praticantes. Os chamados atletas de ponta ou de alta perfomance excedem e desafiam os limites do corpo em busca de desempenhos sempre mais espetaculares, não raro recorrendo a variados e cada vez mais sofisticados tipos de doping. A grande maioria encerra a carreira em estado lastimável, com o físico e até a mente seriamente avariados, a negar a máxima mens sana in corpore sano.

 

 

Como é doloroso ver o grande Muhammad Ali, outrora falastrão ― a bailar pelo ringue com a graça de uma borboleta e a picar os adversários como uma abelha, segundo ele próprio dizia ―,  agora cambaleante e trêmulo, com a voz quase inaudível.

 

 

 

 

 

 

Não é menos emblemático o rumoroso desfecho do caso envolvendo o cultuado Lance Armstrong, vencedor de nada menos do que sete Tours de France, e que após superar um câncer nos testículos ainda voltou a ganhar aquela prova. A investigação empreendida concluiu não apenas que ele se dopava, mas que montara um complexo esquema de produção e uso de doping, o que resultou no seu banimento para sempre do ciclismo e a cassação dos títulos. “Armstrong”, que pode ser traduzido como “braço forte”, infelizmente tinha o pé de barro, como tantos outros heróis de dantes e de agora.

 

Esses atletas, e também os grandes astros pops ((Michael Jackson e Amy Winehouse, apenas para lembrar dois exemplos mais recentes) constituem-se na representação contemporânea dos heróis ou semi-deuses da Mitologia Grega, como Aquiles, Hércules, Teseu, Perseu, Agamenon, Ajax, Édipo, entre outros, personagens que estavam numa posição intermediária entre os homens e os deuses. Possuíam poderes especiais superiores aos dos homens comuns (força, inteligência, velocidade), porém eram mortais e apresentavam alguns dos defeitos humanos (psicológicos e corporais). Seus destinos quase sempre são trágicos, punidos impiedosamente por ousarem desafiar ou contrariar os deuses.

Tenho especial predileção pela saga do titã Prometeu, que rouba o fogo divino (para muitos, símbolo do saber), ludibriando os deuses, para proporcionar à raça humana um elemento que lhe garantiria a supremacia sobre os demais seres vivos. Em razão dessa afronta, Zeus decidiu puni-lo decretando ao ferreiro Hefesto que o prendesse em correntes no alto do monte Cáucaso, por 30 mil anos, durante os quais ele teria o fígado diariamente bicado e dilacerado por uma águia ou abutre. Como o órgão se regenerava, o ciclo de sofrimento e destruição se reiniciava a cada dia. Esse mito inspirou a célebre tragédia  “Prometeu Acorrentado”,  escrita pelo poeta grego Ésquilo, no século V a.C.

Não seremos todos nós, com todos os nós, Prometeus acorrentados?

E quantas outras tragédias ainda estarão por ser escritas sobre os grandes heróis e mitos dessa nossa sociedade do espetáculo?

 

 

Leia o poema “Prometeu” no post abaixo.

 

 

 

Canção do dia de ontem

 

 

A poesia de Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

(by Dennis Stock)

 

 

 

                                  Deste cais

                                  De revoos

                                  E migração

                                  Dos sonhos,

                                  Sob sol e azul

                                                  Em deslimite,

                                  O poema,

                                                   Em vertigens,

                                  Insiste.

 

 

                                  Anoiteço ali,

                                                  Em silêncio,

                                  Alumiando candeias.

                                  Ainda

                                  À espera

                                  De que versos

                                  Jorrem-me das veias

                                  E celebrem esta ânsia como finda.

 

 

Itacoatiara, primavera de 2011

 

 

 

 

Parceria em foco

 

 

 

 

 

 

 

Ele é bem mais velho do que eu.

Nasceu no mês de agosto de um longínquo ano…

Eu, no mês de novembro!

Natural, pois, que a catarata o pegasse primeiro (se bem que a dele foi causada por uma pancada que sofreu).

Mas isso pouco importa. 

O que importa (com ou sem catarata) é que desde os verdes anos observamos as mesmas estrelas, ainda que de navios diferentes (com sua licença, Aldir).

 

 

 

Em homenagem aos seus novos focos,

permita-me que lhe dedique novamente

esses flocos

de poesia:

 

 

                                      DEJÀ-VU

 

 

                                    De olho no olho que não vê

                                    já vejo tudo.

                                   Como um dejà-vu constante,

                                   tenho registrado cada instante

                                   de um tempo antecedente,

                                   quase oculto,

                                   por detrás das cataratas

                                   e das corredeiras.

                                   Onde ordeiras baratas

                                    e satânicos colibris

                                    faziam seu festim macabro…

                                    acabo já-já com esse passado!

                                    levado embora

                                   pela impávida aspiração

                                   que seca a neblina,

                                   que embaça a nitidez

                                   da paisagem cristalina.

 

                                    Mas as cortinas já se abrem

                                   para o segundo ato

                                   e o fato se submete

                                   ao enredo teatral.

 

                                   E a verdade aparece na revista

                                   mesmo vista

                                   com olho artificial.

 

 

(mas um pouco de miopia é bom, porque permite não se ver as coisas como de fato são…

 e deixa ver outras como gostaríamos que fossem. Lembra?)

 

                                                                                                                                                                                       Brenno Augusto Spinelli Martins

 

 

 

 

 

 

 

Desfocado

 

 

 

 

 

 

            Nunca antes na história deste país houve tanta gente focada.

            Os jogadores de futebol, nem se diga. Além do “grupo fechado”, estão sempre focados no próximo jogo, no campeonato, na busca da classificação e do título de campeão, na convocação para a seleção. Mas, como se sabe, o futebol é uma caixinha de surpresas, algumas vezes se ganha, outras, não.

            Os jornalistas e repórteres também estão sempre focados, mesmo aqueles que já não são focas. Focados na matéria que publicarão, na investigação e no furo que darão, na pauta que haverão de cumprir para satisfação do patrão.

            O povo em geral vive focado em sobreviver, ganhar a cada dia o pão, no mensalão e na eleição (menos), na Carminha e no Tufão, no Mengão e no Curingão (muito mais).

            Pagodeiros e sertanejos universitários (seja lá o que isso signifique), de cavaco e violão na mão, focam no CD ou DVD que lançarão, na próxima apresentação, no sucesso da canção, no Domingão do Faustão. 

            Políticos e governantes nunca perdem o foco em construir uma grande nação, combater a corrupção, acabar com a inflação, melhorar o transporte, a segurança, saúde e educação.

            Pastores e bispos, de sacolinha na mão, focam na salvação, nos demônios que expulsarão, nos templos que edificarão, no novo canal de televisão que comprarão ou ganharão.

            Eu, da minha parte, se não desde que nasci, mas assim que me tornei petiz, tenho sido um desfocado na vida, de óculos no nariz, que nunca sabia onde pôr.

            Depois de muito tropeção, um oculista de devoção, desses que nos tiram da sombra, de uma só cajadada me livrou da catarata e corrigiu a visão: “Vai, Antonio! ser focado na vida”.

            Não chega a ser um homônimo. Nem sei se será uma solução.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=UqtfjsvrptI[/youtube]