Posts from fevereiro, 2011

Trilogia Millennium

 

 

 

Para a Carolina, neste seu dia em que me tornou pai.

 

 

 

 

                        De livros policiais ou de mistério há os que gostam e os que detestam.

                        Dos que gostam, há os que leem esses livros por mero divertimento, sem levá-los a sério, e os que lhes reconhecem a importância como gênero literário.

                        Há, ainda, os que gostam dos livros que dão ênfase à ação, e os que preferem a abordagem psicológica e a solução  racional do mistério, com o predomínio da massa encefálica sobre os músculos. Nos EUA, na tradição de Dashiell Hammett, Raymond Chandler, entre outros, os autores costumam adotar a primeira fórmula. Os ingleses e europeus em geral, na esteira de Agatha Christie, Arthur Conan Doyle e Georges Simenon, são da segunda vertente. O mestre de todos e praticamente o criador do gênero, Edgar Allan Poe, também.

                        Sou um leitor contumaz e voraz de livros policiais, de suspense ou mistério. Mais do que a história em si, creio que um bom livro dessa natureza sustenta-se, sobretudo, pelo ambiente, pela atmosfera que cria e nos aprisiona às suas páginas, que avidamente devoramos e nos custa interromper a leitura.

                        Acabamos entranhados nessa ambiência de tal maneira que ela nos acompanha no dia a dia, nos intervalos das tarefas cotidianas, não nos sai da cabeça até que retomamos a leitura. E lamentamos ao chegar ao desfecho e cerrar o livro com seus segredos desvendados.

                        Além dos grandes mestres acima citados, aos quais poderiam ser acrescidos vários outros, para os aficionados é uma delícia descobrir novos autores do seu agrado. Nos últimos tempos isso ocorreu comigo em relação ao norte-americano John Dunning, na linha da chamada série negra, com seu truculento detetive, Cliff Janeway, que abandonou a polícia para se tornar livreiro de obras raras, mas sempre acaba se envolvendo em confusões, pancadarias e crimes relacionados com livros, e ao nosso compatriota Luiz Alfredo Garcia-Rosa, com o seu Delegado Espinosa, que conseguiu a proeza de ambientar com grande talento a novela policial no Brasil (o que muitos consideravam impossível), mais especificamente no Rio de Janeiro e numa decadente Copacabana.

                        A mais recente descoberta devo à minha filha Carolina que, não bastasse me agraciar a vida com a Manuela (e nada supera isso), apresentou-me a uma série de novelas policiais escritas e passadas na modelar e gélida Suécia!

                        Trata-se da Trilogia Millennium, que já se tornou cult, de autoria de Stieg Larsson, protagonizada por um jornalista econômico investigativo, Mikael Blomkvist (um alter ego do autor, também jornalista, ativista político e dono de uma revista na Suécia, como o personagem) e uma tão estranha quanto apaixonante garota, enganosamente frágil, punk e hacker infernal, Lisbeth Salander (se a máxima de House é que todos mentem, a dela é que todos têm segredos), que acabam por se aliar em circunstâncias inesperadas.

                        Millennium é o nome da revista de que Mikael Blomkvist é um dos proprietários, e os três romances da trilogia são, na sequência: Os homens que não amavam as mulheres (título infeliz que a versão brasileira, acompanhando a francesa, deu ao original Os homens que odeiam as mulheres, muito mais representativo); A menina que brincava com fogo e A rainha do castelo de ar.

                        Acabo de ler o primeiro volume, que se fundamenta numa variação de um dos temas clássicos das novelas de mistério, o enigma do quarto fechado, engendrado por Poe, na célebre novela Os crimes da rua Morgue. Aliás, o romance de Stieg também se abebera na fonte de outra novela de Poe, O mistério de Marie Rogêt (continuação de Os crimes da Rua Morgue).

                        No caso, o ponto de partida é um provável homicídio sem cadáver ocorrido há quase 40 anos numa ilha que se encontrava isolada na ocasião, em virtude de um grave acidente de trânsito na única ponte de acesso ao continente. Outras tramas se intercalam, porém, escândalos, conflitos e segredos escabrosos de uma família da velha elite sueca, a que a vítima desaparecida pertencia.

                        A impressão que se tem da Suécia, de um país plácido, desenvolvido e civilizado desmorona diante do que tomamos conhecimento ao longo do romance. Lá como cá grassam agressões e violações a mulheres (segundo informa o livro, na Suécia 46% das mulheres já sofreram violência de um homem!), golpes financeiros, corrupção, imprensa marrom e tendenciosa.                            

                        O que nos reporta ao que diz Pessoa pelos versos de Álvaro de Campos  (Opiário):

 

                                                         “Eu acho que não vale a pena ter

                                                         Ido ao Oriente e visto a índia e a China.

                                                         A terra é semelhante e pequenina

                                                         E há só uma maneira de viver.”

 

                        A tradução da edição brasileira deste primeiro romance da trilogia é de Paulo Neves, feita a partir da edição francesa. As traduções no Brasil do inglês para o português costumam ser rebarbativas, típicas de quem conhece a primeira mas ignora as sutilezas da nossa língua, que, ao contrário do inglês, dispensa o uso de pronomes, quando não se afiguram necessários à clareza do texto. O que se tem então é uma tradução literal do inglês, repleta de inúteis e destoantes “eu”, “ele”, “ela”, “meu”, “seu”, “sua”, etc. Paulo Neves parece ter se contaminado desse vício, e mesmo traduzindo do francês, perpetra frases como esta: “Tudo porque o acaso fizera um ex-colega seu jornalista (?), na época relações-públicas da prefeitura […]”.

                        Mesmo com a tradução tacanha, o livro flui agradavelmente e nos prende ao longo de suas mais de 500 páginas, em especial pelas tramas envolventes, que se entrelaçam, pela força das personagens muito bem delineadas. E também pela curiosidade de conhecer aspectos da cultura sueca e dos seus costumes liberais.

                        Muito melhor do que eu, resumem Luiz Alfredo Garcia-Roza e Contardo Calligaris, na contracapa do livro:

 

                        “Em Os homens que não amavam as mulheres a riqueza dos personagens, a narrativa ágil e inteligente e os surpreendentes desdobramentos da história formam um conjunto magnífico que revela Stieg Larsson como um grande mestre da literatura de suspense” (Luiz Alfredo Garcia-Roza)

 

                        “O problema com Larsson é que, se agente se aventura e entra na história, está perdido, não tem como largar o livro. Talvez seja porque os protagonistas são animados por uma paixão parecida com a que motiva a curiosidade de todos nós: os dois, o jornalista bem-sucedido e a adorável jovem hacker (punk de corpo e espírito), são indivíduos sem família (ou quase), decididos a desvendar, justamente, um segredo de família.” (Contardo Calligaris).

 

                        Estou ansioso para ler os outros dois volumes da trilogia, que infelizmente não passará disso: Stieg Larsson, pouco depois de entregar aos editores os três romances, em 2004, sofreu um enfarte fulminante em casa e morreu com apenas 50 anos, sem nem mesmo ver os livros publicados e desfrutar do sucesso retumbante de crítica e de público da sua obra. Desde o lançamento em 2005, a trilogia vendeu quase três milhões de cópias somente na Suécia, tendo sido publicada em outros 35 países. Além disso, os três livros já se transformaram em filme, o primeiro deles lançado na Europa em 2009, colhendo um grande público e muitos elogios da crítica  (não há previsão de lançamento no Brasil, mas pode ser assistido em DVD).

 

 

 

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