Posts from fevereiro, 2013

Retalhos

 

 

Carnaval (Portinari) 

 

O carnaval passou, ou ainda não, pois que em Salvador e Recife a festa continua pelo menos até o próximo domingo, e no sábado haverá o desfile das Escolas campeãs no Rio de Janeiro. 

Há algum tempo o desfile das Escolas de Samba do Rio deixou de ser festa autenticamente popular para se tornar mais um espetáculo desta nossa sociedade do espetáculo. Com rara exceção, os autênticos foliões foram substituídos pelos famosos e turistas que se fazem de foliões, e os tais enredos patrocinados são mais malucos do que o “Samba do Crioulo Doido”, do inesquecível Sérgio Porto (cavalo mangalarga marchador? Façam-me o favor!). Por isso fiquei muito contente com a vitória de Vila Isabel de Noel, botando água no feijão e enfeitiçando com o samba-enredo antológico dos mestres Martinho da Vila e Arlindo Cruz (parece que também houve patrocínio, mas pelo menos o enredo e o seu desenvolvimento foram no velho estilo).

Afora o maravilhoso trevo pernambucano e alguns outros gêneros locais, o auge do carnaval como festa popular se alimentava da sua canção símbolo, as deliciosas marchinhas. Além de perfeitas para se brincar o carnaval, com variações rítmicas que fazem os foliões ora pular, ora deslizar languidamente. As marchinhas com suas letras fáceis de decorar, irônicas, maliciosas, críticas ou românticas, sempre politicamente incorretas (“O teu cabelo não nega, mulata […] mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero o teu amor”; “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é?”)  refletiam o próprio espírito libertário do carnaval, a irreverência da voz do povo, hoje ensurdecida pelo aparato estrondoso dos trios elétricos, que são para mim um verdadeiro flagelo.

As origens do carnaval se perdem no tempo. Segundo os estudiosos, remontam às orgias pagãs do Egito e da Grécia, ou às bacanais de Roma. No Brasil, o carnaval foi introduzido pelos portugueses, com seu entrudo grosseiro e agressivo. Pouco a pouco, o nosso carnaval foi ganhando feições próprias, mais doces e marotas, da mesma forma que colocamos açúcar na ríspida pronúncia lusitana.

No começo, a trilha sonora do nosso carnaval foram as polcas e valsas abrasileiradas, as cantigas e quadrilhas, o xote e até mesmo trechos de ópera, que passaram a conviver com o desabusado maxixe, do qual teria se originado o samba. 

A célebre Pelo Telefone, primeira canção a ser gravada com a designação de samba — na verdade um maxixe com diversas variantes, apropriado e glosado por Donga (Ernesto dos Santos) —, foi o grande sucesso do carnaval de 1917. Naquela mesma época também se formaram as primeiras sociedades carnavalescas, que mais tarde se transformariam nas Escolas de Samba.

Antes disso, porém, em 1899, a pioneiríssima Chiquinha Gonzaga já havia composto a marcha-rancho Ó Abre Alas, para o cordão Rosa de Ouro, que é cantada até hoje e tida como o marco das canções feitas especialmente para o carnaval, com letra e melodia simples e fáceis de cantar.

As marchinhas propriamente ditas começaram a se disseminar a partir da segunda década do século XX e alcançaram o seu apogeu nos anos 30, 40 e 50. Declinaram paulatinamente nos anos 60, até serem eclipsadas por outros gêneros, entre os quais os sambas-enredo, que foram ganhando espaço e ligeireza, na mesma proporção em que perderam qualidade. Daí para a praga da axé-music foi um pulo ou um furo, que redundou no carnaval redundante e pasteurizado de hoje.

Os nossos maiores compositores, todos eles, compuseram canções carnavalescas inesquecíveis: Noel Rosa, Wilson Batista, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Herivelto Martins, Adoniran Barbosa, até mesmo Chico Buarque e Caetano Veloso, para citar apenas alguns. Mas os dois grandes craques da marchinha foram sem dúvida Lamartine Babo (A,E,I,O,U; Cantores de Rádio; Grau Dez, Joujoux e Balangandãs; Linda Morena; O teu cabelo não nega) e Braguinha, o João de Barro (As Pastorinhas ― em parceria com Noel; Pirata da perna de pau; Chiquita Bacana, Touradas de Madri; Yes! Nós temos banana; Balancê, Vai com jeito; Linda loirinha). Não se pode esquecer João Roberto Kelly que também foi um grande compositor de marchinhas (talvez o último dos moicanos), e emplacou vários sucessos (Rancho da Praça 11 ― em parceria com Chico Anysio; Mulata iê iê iê; Cabeleira do Zezé). 

As marchinhas sobrevivem e ganham novo fôlego graças aos blocos de rua do Rio de Janeiro, que têm aumentado extraordinariamente a cada ano, alguns arrastando um milhão de pessoas pelas ruas (o que também já é demais), numa demonstração inequívoca do fascínio que os velhos carnavais ainda exercem sobre os verdadeiros foliões.

Na minha memória afetiva, as duas últimas grandes canções de carnaval foram as marchas-rancho Máscara Negra (de Zé Keti e Pereira Mattos, clique no título para ouvir), que ficou com o 1º lugar na premiação promovida em 1967 pela Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro e tem a maestria de alternar o andamento da marcha-rancho (Quanto riso! Oh, quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão) com o bulício da marchinha (Vou beijar-te agora / Não me leve a mal / Hoje é carnaval), e Bandeira Branca (de Max Nunes e Laércio Alves, idem), o canto do cisne da grande estrela Dalva de Oliveira e também o grito agônico dos carnavais de outrora, que se foram para nunca mais.

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=hVUUYiINSe0[/youtube]