Posts from maio, 2013

O morto e o vivo

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 

Quando foi buscar na paróquia a sua certidão de batismo, para casar-se na Igreja, ficou surpreso. Era irmão gêmeo, e o seu irmão havia falecido. Constava, porém, nos registros paroquiais, que o morto era ele, e não o outro. O mesmo aconteceu no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Diante de tal problema, devia procurar uma retificação daqueles registros. Isto demandava tempo, advogado, e o mais. 

Sua noiva achou que ele estava era a protelar o casamento. O advogado consultado lhe disse:

— O melhor seria você continuar morto. Morto não tem responsabilidade. Pode fazer o que quiser, e não será punido. Além disso, você pode amigar, ou amancebar-se, que é melhor do que casar. A Constituição atual equipara a amigação ao casamento.

A noiva, porém, repeliu tal sugestão. Queria casar-se de papel passado e vestida de noiva.

Intervieram então o futuro sogro e a futura sogra.

— Olhe aqui — exigiram — você trate de honrar o seu compromisso. Senão, rua! 

As ruas não admitem defuntos passeando por elas. Querem-nos enterrados no cemitério.

A prova de que se está vivo, dá-a os médicos. Mas estes, muitas vezes, se enganam. Que é estar vivo? Há tão variados modos de viver que até hoje não se deu uma explicação conveniente do que é viver.

Seus pais também não puderam dar solução ao caso. Disseram-lhe: 

— Você e o seu irmão eram tão parecidos que às vezes um mamava duas vezes e o outro ficava sem mamar. 

Ele lembrava-se de que quem ficava sem mamar era ele, porque chorava muito, a despeito de se propalar que quem não chora não mama. 

Pareceu-lhe ainda que seus pais preferiam o outro, que não mais lhes dava despesa.

 O noivado rompeu-se.

E como oficialmente continuava morto, foi vivendo sem compromisso nenhum.

A lição é esta.

Viva sem compromissos, sem horários nem honorários. Vá para onde quiser, ou fique, que tudo dá na mesma.

Afinal, de um modo ou de outro, você morre.

O caso dele, contudo, era singular: se morresse, não havia como passar-lhe o atestado de óbito, porque já morrera muito antes.

Ora, ora, viver ou morrer não é a mesma coisa?

Vivos ou mortos, somos todos defuntos. E defunto não tuge nem muge.

defunto 

 

 

 

Liquidificador

 

 

 

                                                Pegue tudo o que eu lhe disse

                                                misture bem

                                                com tudo o que você me disse.

 

                                                Pique.

                                                Repique.

                                                Triplique.

 

                                                Retire os caroços

                                                (nossos).

 

                                                Leve ao liquidificador

                                                (gelo e pimenta a gosto).

 

                                                Triture.

                                                Liquidifique

                                                (a dor).

                                                Liquide

                                                (e fique).

                                        

liquidificador 

 

 

O su su su do sax

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

Brenno e o violão

 

 

 

                                   SAXOFONE AO CAIR DA TARDE

 

                                                                                                  Brenno Augusto Spinelli Martins

 

                                   A tarde cai

                                   como um desmaio…

                                   Ao fundo um som de sax.

 

                                   E a lua vai,

                                   por entre os galhos,

                                   mostrando a sua face.

 

                                   Num brilho breve,

                                   quase invisível,

                                   o espocar de um flash.

 

                                   Num sopro leve,

                                   quase inaudível,

                                   o su su su do sax.

 

 

 

Mandei e-mail pra você (via YouTube), contendo um poema (Saxofone ao cair da tarde), acompanhado de um vídeo como sugestão para a ilustração musical do mesmo.

Trata-se da canção do Ary Barroso “Pra machucar meu coração”, com o João Gilberto e o Tom, e o sax tenor do Stan Getz num improviso genial, que retrata a idéia do poema.

Tenho essa gravação em outras edições (LPs e CDs), mas me despertou a lembrança a reedição dela no sexto volume da coleção do Tom, da Folha, que você também está colecionando, com certeza.

O vídeo do YouTube é meio abafado, mas ouça num aparelho bom, bem equalizado e curta os sopros chiados nos tons baixos do sax do Stan Getz, fazendo su su su…

Nas outras faixas do disco também tem su su su, mas nessa faixa é exemplar.

 

 

stan getz e joao gilberto

  

 Para Machucar Meu Coração – Getz Gilberto

 ”Para machucar meu coração” (Ary Barroso), com João Gilberto e o su su su do sax de Stan Getz

 

 

A poltrona

  

     Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Era tarde quando se levantou da poltrona favorita. Assistira a um belo filme francês, cuja trilha incluía Core Ngrato, música que adora, lera um pouco, recostara-se entregue a borboletas.

Interessante é que nunca saía dela sem uma grande decisão. Como agora, quando resolvera aproveitar o silêncio da casa, todos dormiam, e preparar crepes árabes de nozes e amêndoas para o café da manhã, receita com que o pai beirava o divino, e ela sempre errava a mão.

Quem sabe acertaria assim, à noite, na companhia de Chopin, das boxers, dos fantasmas amigos a olharem-na de soslaio…

Enquanto media o fermento, recordava a história daquela poltrona que atravessava décadas, mudanças, reformas, cores tantas, sem jamais ser mero objeto de cenário, mas palco de uma vida, no centro de um feixe de luz.

No primeiro ato, seus pais escolhem o melhor lugar para colocá-la na casa nova, a pequena bailarina dança sobre o forro de veludo (um pito) ou se esconde dos irmãos espremida entre o encosto e a parede (mais pito); a mãe se acomoda para ouvir suas sonatas ao piano; namora nela, e uma noite vê o galã levantar-se com uma caixinha nas mãos e um pedido no céu da boca…

Segundo ato, a jovem mãe ali amamenta os meninos, corrige provas e inventa palavras de encantar criança; sente o tempo mudar com as marés, as gaivotas e a floração dos jasmins; recosta-se e chora um tantinho com saudade dos rapazes, que foram morar fora, e – hélas – abraça a mãe idosa, memória ausente, sentadinha à espera de proteção.

Para o próximo ato, em pleno ensaio, antevê a vó palhaça, feita de gato e sapato (sem pitos), contando histórias para os netos na bagunça do seu coração.

Os crepes ficaram deliciosos. Quase os ‘verdadeiros’, disseram.

Pena que quando se acerta na vida o ponto do doce, tantos já não estejam mais ali para saboreá-lo conosco… – pensou enquanto observava o fio da calda de flor de laranjeira que, lentamente, vertia no prato.

 

 

A árvore siamesa

 

      Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                                                                       A ÁRVORE SIAMESA

 

                                                           O amor começa pelo pé.

                                                           Pela raiz,

                                                           segura-se o vento

                                                           e abana-se

                                                           o tempo que paralisa

                                                           a perna

                                                           da cadeira a esfinge

                                                           mostra a direção,

                                                           a paraplégica roda

                                                           indica o fundo,

                                                           a cisterna,

                                                           onde a árvore submerge.

 

                                                           E sobe.

 

 

                        L’ARBRE SIAMOIS

 

L’amour commence par le pied,

                        par la racine

                        on rattache le vent

                        et on évente

                        le temps qui paralise

                        la jambe,

                        de sa chaise le sphinx

                        montre la direction,

                        la roue paraplégique

                        montre le fond,

                        la citerne,

                        ou l’arbre submerge.

 

                        Et monte.

 

árvores siamesas 3 (2)

 

 

 

Sobre a Virada

 

                   Bell Gama

bell (bandeira do Brasil)

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre a Virada… não sei se a minha opinão sobre a Virada Cultural importa muito. Mas tô um pouco engasgada. Vou ao evento desde a primeira edição. Apoio toda e qualquer iniciativa que levante o centro de cidade — local que escolhi para viver. Tenho amigos queridos (guerreiros) que trabalham nessas iniciativas. Por outro lado, já trabalhei também em veículos de comunicação de massa e sei como são feitas as coberturas. Há também jornalistas amigos (guerreiros) no meio. Já fui pauteira. Mandam-se os repórteres para os hospitais, postos policiais… Publica-se a foto de um show e buscam-se dados. Em meio de comunicação de massa, a linha é simples e a ênfase nos dados da violência é explicada da seguinte maneira: conte as estatísticas, dê fatos. Estatísticas são simplistas. Contam-se acidentes, mortes, assaltos. Não se contabilizam sorrisos. É assim e ponto 

Por outro lado (e há sempre um outro lado), há a cobertura feita pelas redes sociais (que ninguém mencionou). Acompanhei durante o tempo todo a cobertura no Twitter e no Instagram através das hashtags. O que vi nas redes foi uma Virada Cultural de gente feliz e ocupando o centro. Quem acompanhou a Virada Cultural por aí, viu uma virada diferente do que está sendo noticiada.

Diante da discrepância de opiniões, a minha é a seguinte: não dá para resolver os problemas de uma metrópole na Virada Cultural. Quem anda pelo centro, sabe o perigo que corre e não é porque é Virada Cultural que os problemas simplesmente somem. E para mim, a Virada existe para isso. Para tirar pessoas como eu, meu pai e minha irmã de suas casas e observar de perto como o centro está e como pode ser. Claro, fiquei com muito medo em alguns momentos. Assim como vi cenas lindas, vi cenas tristes. Mas, sinceramente, sabia que seria assim. Sei a cidade que moro e ao ir a Virada descobri mais um pouco dela. Para mim, a Virada serve para pôr foco em algo que muita gente não vê (ou finge que não). Por isso, a Virada Cultural é de suma importância e não pode ser analisada de maneira simples. Acho injusto jogar nas costas da Virada as críticas de toda uma cidade. Por isso, em relação a Virada, os questionamentos válidos são:

A segurança do evento pode melhorar? Todo mundo sabe que sim. É fácil fazer a segurança de um evento de 4 milhões de pessoas que quase nunca têm acesso a cultura, shows gratuitos, transporte 24 horas? Não.

A programação foi boa? Para mim, foi o melhor de todas as edições. Eclética, de qualidade, para todos.

O transporte durante o evento funcionou? Para mim sim, mas acho que ainda faltam bolsões com opção de táxi.

Falta sinalização? Muita. E essa é uma das maiores falhas da Virada. É difícil se localizar, chegar no outro palco, achar o caminho mais próximo, encontrar opções de banheiro, restaurantes, alternativas. 

Crítica ao que é da Virada. Aproveite o resto que você conheceu, para questionar a sua cidade e seus próximos prefeitos.

 

Bell Gama

 

 

viradacultural 2013