Posts from julho, 2013

“The Mermaid”

 

             Selma Barcellos

 Selma no Jardim de Luxemburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

Fez-me descer até a garagem para mais uma de suas surpresas. Gosta de  surpreender e de nos ver sorrir, a mim e ao pai.

E voilà, cobertos por um lençol,  aguardando serem desvendados, literalmente, a branca tela no cavalete, as tintas, os pincéis e um livro para iniciantes com sugestões de pinturas e passos para realizá-las.

Da mesma forma que, um dia, aprendendo a andar de bicicleta, soltei suas mãos e disse “Vai, filho!”, aquele presente pareceu devolver-me o desafio: “Agora é com você!”

Algum dom sempre cultivei para desenho, bem sei. Porém, para pintura,  dominava apenas a básica noção de mistura de cores aprendida no longínquo primário.

Passados alguns meses, vendo-o partir em viagem, decidi ir às tintas e colorir o tempo de ausência.

Escolhi uma foto do painel de seu quarto – um entardecer em  Itacoatiara, local  da infância e dos primeiros anos de juventude, reserva do coração.

Insegura em minhas pinceladas iniciais, consolava-me saber que, mesmo não surgindo dali nenhuma obra-prima, em algum canto do quarto ele a penduraria. Afinal, a pintura lhe seria dedicada.

Tudo caminhava  razoavelmente, até que esbarrei na dificuldade do chamado  primeiro plano: uma enorme folha de palmeira que se impunha, soberba, na paisagem.

E sobreveio o desastre. A folha da amadora resultou em algo indecifrável, misto de imenso pássaro negro, nuvem de tempestade, avião queimado no céu. Não havia como esconder, não havia conserto possível. Não ao meu alcance.

A autocrítica foi demolidora. Resolvi desfazer-me do quadro, sem sequer assiná-lo.

Coloquei-o no alley, estreita passagem localizada atrás das casas americanas, onde os moradores têm por hábito deixar suas traquitanas, esperando que alguém as resgate.

Tanto é assim que, ao retornar de  breve caminhada, o quadro se fora.

Ato contínuo, assolaram-me a curiosidade, a dúvida, o arrependimento. Por onde andaria meu quadro? De quem aquela paisagem fizera a alegria? Quem acreditara naquela folha de palmeira?

O delírio levava-me ainda mais longe. E se, belo dia, de tanto errar, eu acabasse acertando e ficasse famosa?  E se me deparasse com o quadro sendo leiloado pela Sotheby’s por milhões e assinado por outra pessoa?

Durante semanas, ao passar pela discreta vizinhança, tão típica daqui, lançava um olhar sorrateiro pelas janelas, na esperança de vê-lo. Nada.

Contando aos amigos, o remorso aumentava. “Você deveria tê-lo guardado para verem a evolução de sua pintura!”. “Já pensou, daqui a gerações, sua família expondo a relíquia?”.

Não hesitei. Arregacei as mangas,  recoloquei o avental. Adiei aquela paisagem para quando minha arte estivesse mais madura e decidi começar um novo quadro, o meu “primeiro” quadro. Afinal, desistir e decepcionar são palavras que nos apequenam.

Assim foi que, ao retornar o filho, retribuí-lhe a surpresa. Na sala, igualmente coberta por um lençol, estava a pintura. Ao lado, um cartão de agradecimento pelo que ele representa de estímulo  em nossas vidas, belíssimo ser humano que é. Instigante, inquieto, propulsor.

Verdadeiramente, naquele instante, com o sorriso que me deu, percebi que minha obra acabara de receber o mais valioso dos lances. Já tinha preço a minha realização.

Ei-la, enfim: uma reprodução do quadro de Douglas Tharalson, “Malibu Mermaid”, meio sereia, meio mulher, meio maga encantando os pescadores.

Tal qual me sinto agora,  meio pintora, meio poeta, meio cronista. E, de alguma forma, também buscando encantar.

 

 

 

Veja o quadro original de Douglas Tharalson AQUI

Não mandou muito bem a nossa artista?

 

 

 

Querelas do Brasil

 

 

 

“Querelas do Brasil” (Maurício Tapajós / Aldir Blanc), com Elis Regina

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=PEAADKhkMww[/youtube]

 

 

O Brazil não conhece o Brasil

O Brazil nunca foi ao Brazil

 

Tapir, jabuti, liana, alamandra, alialaúde

Piau, ururau, aqui, ataúde

Piá, carioca, porecramecrã

Jobim akarore Jobim-açu

(Oh, oh, oh)

 

Pererê, camará, tororó, olererê

Piriri, ratatá, karatê, olará

 

O Brazil não merece o Brasil

O Brazil ta matando o Brasil

 

Jereba, saci, caandrades

Cunhãs, ariranha, aranha

Sertões, Guimarães, bachianas, águas

E Marionaíma, ariraribóia,

Na aura das mãos do Jobim-açu

(Oh, oh, oh)

 

Jererê, sarará, cururu, olerê

Blablablá, bafafá, sururu, olará

 

Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

 

Tinhorão, urutu, sucuri

O Jobim, sabiá, bem-te-vi

Cabuçu, Cordovil, Caxambi, 

Madureira, Olaria e Bangu, 

Cascadura, Água Santa, Acari, Olerê

Ipanema e Nova Iguaçu, Olará

 

Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

 

 

 

Querela

 

         Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

                                                                       QUERELLE

 

                                                           Rasant les murs,

                                                           entre les actes,

                                                           le fait,

                                                           le chat,

                                                           le miasme du jour.

 

                                                           Le prix correct,

                                                           les intérêts perçus,

                                                           l’avertissement exposé

                                                           avec sagesse et fierté

                                                           la querelle termine.

 

                                                           La dette caduque,

                                                           les parties intéressées

                                                           se séparent

                                                           dans un coffre

                                                           sans fond.

 

 

 

querela1

 

 

 

QUERELA

 

Rente entre as paredes.

entre os atos

fato

gato

miasma do dia.

 

O preço justo,

juros cobrados.

A tacha segura o aviso

com siso e brio,

a contenda termina.

 

A dívida caduca,

divide as partes

interessadas

num baú sem fundo.

 

 

 

Da arte de cantar

 

           Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 Quem canta, seus males espanta. Onde o galo canta, janta. E a galinha também canta. Cantam os passarinhos

Minhas madamas e meus senhores, vou propor-me a ensinar-vos a arte de cantar. Não para que torneis um Passarotti ou uma Callas, mas para que possais cantar no banheiro, ou em alguma festinha íntima e fazer boa figura.

Antes eu ia ensinar aos cavalheiros a arte de cantar a mulher do vizinho. Com a devida cautela, quando o vizinho está ausente, de viagem. Fica para depois.

Para cantar, é preciso antes ter voz. Os mudos não têm, ou quase não têm voz, por isso não cantam. São tristonhos e desconfiados. No entanto, há muito cantor por aí, com mil CDs gravados, que não tem voz, mas canta. Há aparelhos que podeis encostar na boca, como se fôsseis engoli-los, para que tenhais um vozeirão, desses de rebentar os copos de cristais na cristaleira e fazer voar as moscas para fora da janela. Tenho visto, ou ouvido, sujeitos e sujeitas que, festejados em todos os canais de televisão e nos palcos dos festivais, em vez de verdadeiramente cantar, se sacolejam. O que vale é o sacolejo, ter uma mola nos quadris e atirar as pernas, os pés, para todos os lados, e os braços, como num ataque de convulsão epilética. E a platéia urra diante deles, berrando: “É o maior! É a maior!” Basta que tenham os macacos ou as macacas de auditório para os aplaudir.

Não importa que a voz seja roufenha ou de taquara rachada. Se for roufenha, melhor para cantar um tango argentino. Para isto, convém também enrolar um cachecol no pescoço. Aí, é só cantar o “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida” ou o “Mi Buenos Aires querido…”

Tratai, pois, de ir em frente.

Um violão para acompanhar a cantoria, enfiado debaixo do sovaco, é também conveniente. Ainda que mal saibais dedilhar-lhe as cordas e fazer apenas tum-tum, tum-tum. O décor é tudo. Acrescentai antes a isso um pedido ao maestro: “Maestro, dê aí um dó menor.” Isto demonstra que o cantor, ou a cantatriz, entende do riscado.

Como somos do país do samba e do Carnaval, aconselho-vos a cantar o samba, movendo os pés para diante e para trás, acompanhado de um gingado. O êxito será garantido. Se as madamas e os cavalheiros forem mais modernosos, dedicai-vos à bossa-nova. Para ela, quanto menos voz se tiver, melhor. Basta sussurrar, inclinado naquele buraco do violão, como se estivésseis contando um segredo que não deve ser escutado por ninguém.

Não desprezai a moda de viola. Se a adotardes, melhor é que arranjeis um companheiro ou uma companheira. E não esqueçais de dar nome à dupla, Zico e Zuca, por exemplo, ou Taco e Tica. O chapéu de palha, esfiapado, na cabeça, e a camisa de risicadinho complementarão a indumentária. E, nos pés, as alparcatas, com a unha grossa e suja do dedão. Cantai então: “Quando bateu aquela portera, e deixei a casinha com seu oitão e a janela, meu coração se esfarelou, já de sodade dela…” E daí para frente.

Aos que apreciam a música norte-americana, são imprescindíveis o pistão de vara, o saxofone e a bateria. Um piano para ser martelado ajuda. E nem é necessário saber o inglês. As palavras da canção podem ser estropiadas ou cuspidas de qualquer jeito. Cantai “New York, New York’’, com aquele jeitão de Frank Sinatra. E revirai os olhos para cima, cismadoramente. Enquanto isso, ide bebendo o uísque, num copo alto pousado em cima do piano. Ou experimentai o rock. Neste caso, não deixeis de vos desbundar.

O fado, com sotaque alfacinha, chorando pela mãe, vai fazer correr as lágrimas dos ouvintes. Porque todos têm a sua mãezinha, coitada, olhando pela janela, com o xale aos ombros.

A canção italiana, esta é para dar o dó de peito. E a francesa vos assegurará muitas palmas, desde que sejais convenientemente fanhosos, cantando pelo nariz. No vosso repertório, não dispenseis o “La vie em rose”.

Cantai a todos os pulmões, ainda que o enfisema vos ataque. Um cigarro torto pendurado no beiço, ajudará a compor-vos no palco ou na sala. Cantai de madrugada, esgoelando, para que o vizinho chame a polícia. E, se for no banheiro de uma pensão, não importa que outro pensionista esmurre a porta.

Em nosso país, temos vinte milhões de cantores e cantoras. E cada dia surge mais um. Sede mais um, ou uma. Cantai no coro da igreja, no botequim, na esquina, no teatro, nos corredores, e no curral da avó.

A vida é uma canção. Cansa, mas é uma canção. Cantai, sobretudo na orelha da mulher amada, e de vez em quando lambendo-a.

 

cantor

 

 

 

Palavrorgia

 

 

 palavras parto

 

 

                                                 PALAVRORGIA

 

 

                                       A poesia,

                                       Breton dizia,

                                       é a mais fascinante orgia

                                       ao alcance do homem.

 

                                       No leito insone

                                       palavras rompantes

                                       a mim me consomem

                                       com furor uterino

 

                                       enquanto a aurora

                                       branca bacante

                                       urde no ventre

                                       a insaciada manhã.

 

 

 

Palivres

 

 Brenno Augusto Spinelli Martins

 Brenno e o violão                                               

 

 

 

 

 

 

 

                                                 PALIVRES

 

                                       No pensamento

                                       todas as palavras

                                       (até mesmo as inventadas)

                                       presas, trancadas num quarto.

 

                                       No escrevimento

                                       portas abertas

                                       as palavras libertadas

                                       o atrevimento do parto.

 

palavras saindo do livro