Posts from julho, 2013

Da arte de cantar

 

           Annibal Augusto Gama

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 Quem canta, seus males espanta. Onde o galo canta, janta. E a galinha também canta. Cantam os passarinhos

Minhas madamas e meus senhores, vou propor-me a ensinar-vos a arte de cantar. Não para que torneis um Passarotti ou uma Callas, mas para que possais cantar no banheiro, ou em alguma festinha íntima e fazer boa figura.

Antes eu ia ensinar aos cavalheiros a arte de cantar a mulher do vizinho. Com a devida cautela, quando o vizinho está ausente, de viagem. Fica para depois.

Para cantar, é preciso antes ter voz. Os mudos não têm, ou quase não têm voz, por isso não cantam. São tristonhos e desconfiados. No entanto, há muito cantor por aí, com mil CDs gravados, que não tem voz, mas canta. Há aparelhos que podeis encostar na boca, como se fôsseis engoli-los, para que tenhais um vozeirão, desses de rebentar os copos de cristais na cristaleira e fazer voar as moscas para fora da janela. Tenho visto, ou ouvido, sujeitos e sujeitas que, festejados em todos os canais de televisão e nos palcos dos festivais, em vez de verdadeiramente cantar, se sacolejam. O que vale é o sacolejo, ter uma mola nos quadris e atirar as pernas, os pés, para todos os lados, e os braços, como num ataque de convulsão epilética. E a platéia urra diante deles, berrando: “É o maior! É a maior!” Basta que tenham os macacos ou as macacas de auditório para os aplaudir.

Não importa que a voz seja roufenha ou de taquara rachada. Se for roufenha, melhor para cantar um tango argentino. Para isto, convém também enrolar um cachecol no pescoço. Aí, é só cantar o “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida” ou o “Mi Buenos Aires querido…”

Tratai, pois, de ir em frente.

Um violão para acompanhar a cantoria, enfiado debaixo do sovaco, é também conveniente. Ainda que mal saibais dedilhar-lhe as cordas e fazer apenas tum-tum, tum-tum. O décor é tudo. Acrescentai antes a isso um pedido ao maestro: “Maestro, dê aí um dó menor.” Isto demonstra que o cantor, ou a cantatriz, entende do riscado.

Como somos do país do samba e do Carnaval, aconselho-vos a cantar o samba, movendo os pés para diante e para trás, acompanhado de um gingado. O êxito será garantido. Se as madamas e os cavalheiros forem mais modernosos, dedicai-vos à bossa-nova. Para ela, quanto menos voz se tiver, melhor. Basta sussurrar, inclinado naquele buraco do violão, como se estivésseis contando um segredo que não deve ser escutado por ninguém.

Não desprezai a moda de viola. Se a adotardes, melhor é que arranjeis um companheiro ou uma companheira. E não esqueçais de dar nome à dupla, Zico e Zuca, por exemplo, ou Taco e Tica. O chapéu de palha, esfiapado, na cabeça, e a camisa de risicadinho complementarão a indumentária. E, nos pés, as alparcatas, com a unha grossa e suja do dedão. Cantai então: “Quando bateu aquela portera, e deixei a casinha com seu oitão e a janela, meu coração se esfarelou, já de sodade dela…” E daí para frente.

Aos que apreciam a música norte-americana, são imprescindíveis o pistão de vara, o saxofone e a bateria. Um piano para ser martelado ajuda. E nem é necessário saber o inglês. As palavras da canção podem ser estropiadas ou cuspidas de qualquer jeito. Cantai “New York, New York’’, com aquele jeitão de Frank Sinatra. E revirai os olhos para cima, cismadoramente. Enquanto isso, ide bebendo o uísque, num copo alto pousado em cima do piano. Ou experimentai o rock. Neste caso, não deixeis de vos desbundar.

O fado, com sotaque alfacinha, chorando pela mãe, vai fazer correr as lágrimas dos ouvintes. Porque todos têm a sua mãezinha, coitada, olhando pela janela, com o xale aos ombros.

A canção italiana, esta é para dar o dó de peito. E a francesa vos assegurará muitas palmas, desde que sejais convenientemente fanhosos, cantando pelo nariz. No vosso repertório, não dispenseis o “La vie em rose”.

Cantai a todos os pulmões, ainda que o enfisema vos ataque. Um cigarro torto pendurado no beiço, ajudará a compor-vos no palco ou na sala. Cantai de madrugada, esgoelando, para que o vizinho chame a polícia. E, se for no banheiro de uma pensão, não importa que outro pensionista esmurre a porta.

Em nosso país, temos vinte milhões de cantores e cantoras. E cada dia surge mais um. Sede mais um, ou uma. Cantai no coro da igreja, no botequim, na esquina, no teatro, nos corredores, e no curral da avó.

A vida é uma canção. Cansa, mas é uma canção. Cantai, sobretudo na orelha da mulher amada, e de vez em quando lambendo-a.

 

cantor