Porque era sábado havia a perspectiva do domingo, e ainda do feriado na segunda-feira.
Estava tão animado e ansioso que chegou mais cedo no bar do Mineiro, pouco antes das dez horas da manhã. O pessoal costumava chegar apenas por volta das onze horas.
Mas não se importou. Foi até ao freezer, com a liberdade de freguês velho e de confiança, apanhou a garrafa de cachaça branca de alambique que o Mineiro não dizia a ninguém de onde trazia, enregelada por fora, mas com o líquido leitoso, e se serviu de uma dose generosa. Apesar do horário, a bebida era para limpar a serpentina e ajudá-lo a repassar o plano que há dois dias costurava na cabeça desocupada.
Sentado à mesa de costume do boteco, bebericou prazerosamente à espera dos amigos, que um a um foram chegando.
Quando todos estavam lá, e as primeiras conversas e brincadeiras silenciaram por um instante, tomou da palavra e procurou falar em tom solene:
— Meus camaradas, alguém ainda se lembra de Ruy Barbosa, o Águia de Haia?
— Jogava em que time? Com esse apelido devia ser grande cabeceador, como o Dadá Maravilha, o Beija-Flor, aparteou Brenno, seu amigo mais antigo e o maior gozador da turma.
— Deixa de ser besta. O grande Ruy Barbosa, de Oração aos Moços…
— Ah, então é pastor ou bispo dessas novas igrejas, insistiu o amigo.
— Não enche, Brenno Augusto. Outro dia, com as manifestações crescendo a cada dia pelas ruas das cidades, a meninada sonhando em construir um novo país, acabei folheando as obras completas do Ruy, à procura daquele famoso pronunciamento no Senado Federal, “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça …”, etc. etc. Foi aí que me saltou a ideia que agora apresento a vocês. Por que não fundamos um novo partido político, diferente de tudo o que já existiu e anda por aí?
— Tá ficando maluco ou a senilidade chegou de vez? Aliás, desde que você virou avô anda meio tonto, pisando os astros distraído, como naquela velha canção, interveio Antonico.
— Não é nada disso. Mas talvez tenha mesmo a ver com nossa responsabilidade diante desse despertar das novas gerações. Vocês esqueceram de como a gente era no tempo da faculdade, das brigas políticas no centro acadêmico, dos nossos sonhos, da vontade de mudar o mundo?
— Pois é. Foi bom enquanto durou. O sonho acabou, como já disse John Lennon. O nosso tempo se esgotou e fracassamos redondamente. Eles passaram, ficaram e continuam por aí, resmungou Nestor, com seu azedume costumeiro
— Me escutem antes de decidir. Não sou idiota nem demente para achar que temos condição de criar um partido, e muito menos de chegar ao poder. O meu propósito é outro. Chamar a atenção, fazer barulho, zoar e assim — quem sabe? — chamar a atenção dos mais jovens para a “Realpolitik”. Sempre fomos bons nisso. Se a gente fazia e acontecia com um mimeógrafo, imaginem só do que somos capazes com a internet. Pensei em criar um site ou uma página no Facebook e lançar um manifesto. Pelo menos vamos nos divertir e agitar um pouco.
À medida que os copos de cerveja se esvaziavam, as ideias começaram a pipocar, de início na base da galhofa, mas pouco depois estavam todos realmente empenhados, com os rostos sanguíneos, esbravejando e trocando farpas como nos bons tempos, cada qual querendo impor sua opinião
— Acho que o partido deve adotar como símbolo o jegue, que representa a miséria e a força do nosso sertão. Além disso, tem sido vítima de grande injustiça social, abandonado e trocado por bicicletas, motos e automóveis, produtos da sociedade consumista, berrava um.
— Que jegue nada. Vai parecer que plagiamos o burrinho do partido democrata americano, discordava outro.
— Minha proposta é de que o bicho símbolo seja o canguru, que é da Austrália, o Brasil que deu certo. E já vem com bolsa para agasalhar apaniguados e esconder dólares, evitando que sejam enfiados na cueca, atalhava um terceiro.
— Pode ser também o ornitorrinco, o bicho mais estranho e improvável que existe.
Ninguém voltou para casa em tempo de almoçar, e os celulares tocaram incessantemente com as broncas das mulheres.
No final da tarde, chegaram ao consenso definitivo de que o Mineiro seria o presidente de honra, um acordo provisório sobre o nome e a sigla do partido, e o texto do primeiro manifesto, redigido ali mesmo na mesa do boteco, que segue abaixo, sujeito a correções.
PRIMEIRO MANIFESTO DO
PARTIDO ME ENGANA QUE EU GOSTO
(PMENG)
Nosso partido cumpre o que promete.
Só os tolos podem crer que
Não lutaremos contra a corrupção.
Porque, se há algo certo para nós, é que
A honestidade e a transparência são fundamentais.
Para alcançar nossos ideais
Mostraremos que é grande estupidez crer que
As máfias continuarão no governo, como sempre.
Asseguramos sem dúvida que
A justiça social será o alvo de nossa ação.
Apesar disso, há idiotas que imaginam que
Se possa governar com as manchas da velha política.
Quando assumirmos o poder, faremos tudo para que
Os marajás e as negociatas terminem.
Não permitiremos de nenhum modo que
Nossas crianças morram de fome.
Cumpriremos nossos propósitos mesmo que
Os recursos econômicos do país se esgotem.
Exerceremos o poder até que
Compreendam que
Somos a nova política.
P.S. Caso o partido chegue ao poder, basta ler o manifesto de baixo para cima.
P.S. do P.S. O texto do manifesto (apenas ele) é um daqueles que rolaram na rede e me foi enviado há algum tempo por um amigo, sem identificação da autoria.