Fez-me descer até a garagem para mais uma de suas surpresas. Gosta de surpreender e de nos ver sorrir, a mim e ao pai.
E voilà, cobertos por um lençol, aguardando serem desvendados, literalmente, a branca tela no cavalete, as tintas, os pincéis e um livro para iniciantes com sugestões de pinturas e passos para realizá-las.
Da mesma forma que, um dia, aprendendo a andar de bicicleta, soltei suas mãos e disse “Vai, filho!”, aquele presente pareceu devolver-me o desafio: “Agora é com você!”
Algum dom sempre cultivei para desenho, bem sei. Porém, para pintura, dominava apenas a básica noção de mistura de cores aprendida no longínquo primário.
Passados alguns meses, vendo-o partir em viagem, decidi ir às tintas e colorir o tempo de ausência.
Escolhi uma foto do painel de seu quarto – um entardecer em Itacoatiara, local da infância e dos primeiros anos de juventude, reserva do coração.
Insegura em minhas pinceladas iniciais, consolava-me saber que, mesmo não surgindo dali nenhuma obra-prima, em algum canto do quarto ele a penduraria. Afinal, a pintura lhe seria dedicada.
Tudo caminhava razoavelmente, até que esbarrei na dificuldade do chamado primeiro plano: uma enorme folha de palmeira que se impunha, soberba, na paisagem.
E sobreveio o desastre. A folha da amadora resultou em algo indecifrável, misto de imenso pássaro negro, nuvem de tempestade, avião queimado no céu. Não havia como esconder, não havia conserto possível. Não ao meu alcance.
A autocrítica foi demolidora. Resolvi desfazer-me do quadro, sem sequer assiná-lo.
Coloquei-o no alley, estreita passagem localizada atrás das casas americanas, onde os moradores têm por hábito deixar suas traquitanas, esperando que alguém as resgate.
Tanto é assim que, ao retornar de breve caminhada, o quadro se fora.
Ato contínuo, assolaram-me a curiosidade, a dúvida, o arrependimento. Por onde andaria meu quadro? De quem aquela paisagem fizera a alegria? Quem acreditara naquela folha de palmeira?
O delírio levava-me ainda mais longe. E se, belo dia, de tanto errar, eu acabasse acertando e ficasse famosa? E se me deparasse com o quadro sendo leiloado pela Sotheby’s por milhões e assinado por outra pessoa?
Durante semanas, ao passar pela discreta vizinhança, tão típica daqui, lançava um olhar sorrateiro pelas janelas, na esperança de vê-lo. Nada.
Contando aos amigos, o remorso aumentava. “Você deveria tê-lo guardado para verem a evolução de sua pintura!”. “Já pensou, daqui a gerações, sua família expondo a relíquia?”.
Não hesitei. Arregacei as mangas, recoloquei o avental. Adiei aquela paisagem para quando minha arte estivesse mais madura e decidi começar um novo quadro, o meu “primeiro” quadro. Afinal, desistir e decepcionar são palavras que nos apequenam.
Assim foi que, ao retornar o filho, retribuí-lhe a surpresa. Na sala, igualmente coberta por um lençol, estava a pintura. Ao lado, um cartão de agradecimento pelo que ele representa de estímulo em nossas vidas, belíssimo ser humano que é. Instigante, inquieto, propulsor.
Verdadeiramente, naquele instante, com o sorriso que me deu, percebi que minha obra acabara de receber o mais valioso dos lances. Já tinha preço a minha realização.
Ei-la, enfim: uma reprodução do quadro de Douglas Tharalson, “Malibu Mermaid”, meio sereia, meio mulher, meio maga encantando os pescadores.
Tal qual me sinto agora, meio pintora, meio poeta, meio cronista. E, de alguma forma, também buscando encantar.
Veja o quadro original de Douglas Tharalson AQUI
Não mandou muito bem a nossa artista?