Posts from outubro, 2013

Minha terra tem palmeiras

 

 

Do BLOGHETTO SELMA BARCELLOS, Barquinho e Estrelinha,  parceirinhos queridos, como Vinicius gostava de dizer.

 

 

barquinho e estrela

 

 

O amor de Vinicius pelo RIO DE JANEIRO…

 

Vejo de minha janela uma nesga do mar verde-azul de Copacabana e me penetra uma infinita doçura. Estou de volta à minha terra… A máquina de escrever conta-me uma antiga história, canta-me uma antiga música no bater de seu teclado. Estou de volta à minha terra, respiro a brisa marinha que me afaga a pele, seu aroma vem da infância. Retomo o diálogo com a minha gente. Uma empregada mulata assoma ao parapeito defronte, o busto vazando do decote, há toalhas coloridas secando sobre o abismo vertical dos apartamentos, dá-me uma vertigem. Que doçura!

Sinto borboletas no estômago, deve ter sido o tutu com torresmo ontem misturado ao camarão à baiana de anteontem misturado à galinha ao molho-pardo de trasanteontem misturada aos quindins, papos-de-anjo, doces de coco do primeiro dia. Digiro o Brasil. Qual canard au sang, qual loup flambé au fenouil, qual pâté Strasbourgeois, qual nada! A calda dourada da baba-de-moça infiltra-se entre as papilas, elas desmaiam de prazer, tudo deságua em lentas lavas untuosas num amoroso mar de suco gástrico…

– É a brazuca! – disse-me Antônio Carlos Jobim balançando a cabeça com ar convicto, enquanto empinava o seu VW em direção ao Arpoador.

Há uma semana e meia atrás, pelas cinco da manhã, eu tocava violão para uns brasileiros e espanhóis da terceira classe, no Charles Tellier, que me trazia da Europa. De repente, um clarão lambeu o navio e todo mundo correu para a amurada. Era um farol de terra, possivelmente o de Cabo Frio. Havia entre nós um padre que regressava depois de quatro anos de estudos em Roma e Paris, um bom padre mineiro cheio de zelo pela nova missão de que vinha investido. Juro que vi o velho palavrão admirativo, o clássico palavrão labial de assombro formar-se em sua boca sem que ele sequer desse por isso.

Domingo passado fui almoçar na casa materna. Muito mais que as coisas vistas, os sons é que me emocionaram. Lá estava na parede o velho quadro de Di Cavalcanti, representando um ângulo da rua Direita pouco depois do antigo Hotel Toffolo, em Ouro Preto, mas o que me chegou foi o tinir das ferraduras dos burrinhos nas velhas pedras do calçamento, de mistura ao soar dos sinos e à voz presente de minha filha Luciana chamando-me: “Pai… iê!” para que eu fosse ver qualquer coisa. Depois, o sussurrar de vozes se amando baixinho no escuro de um beco, sob a luz congelada de estrelas enormes…

– Você gosta de mim?

– Gosto.

– Muito?

– Muito!

Minhas artérias entraram em constrição violenta, o peito doeu-me todo e eu me levantei e fui até a rua para respirar. Sei que morrerei um dia de uma emoção assim. Mas não adiantou. Lá estava o capim brotando de entre os paralelepípedos, lá estava a ladeira subindo para o verde úmido do morro, ali à esquerda ficava um antigo apartamento onde eu morei. Naquele tempo eu ganhava novecentos mil-réis por mês e estudava para o concurso do Itamaraty. Dava apertado, mas dava.

Por que será que só no Brasil brota capim de entre os paralelepípedos, e particularmente na Gávea? Existe por acaso um sorvete como o do seu Morais às margens do Ródano? Vêem-se jamais as silhuetas de Lúcio Rangel e Paulo Mendes Campos numa cervejaria em Munique? Quem já viu passar a garota de lpanema em Saint-Tropez?

Adeus, mãe Europa. Tão cedo não te quero ver. Teus olhos se endureceram na visão de muitas guerras. Tua alma se perdeu. Teu corpo se gastou. Adeus, velha argentária. Guarda os teus tesouros, os teus símbolos, as tuas catedrais. Quero agora dormir em berço esplêndido, entre meus vivos e meus mortos, ao som do mar e à luz de um céu profundo. Malgrado o meu muito lutar contra, eis que me vou lentamente tornando – logo eu! – num isolacionista brasileiro.

 

 

 

Semana Vinicius de Moraes (Poema dos olhos da amada)

 

 

“Poema dos olhos da amada” (Vinicius de Moraes / Paulo Soledade)

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=sz8CrFTgHLs[/youtube]

 

 

“Oh, minha amada

Que olhos os teus

 

São cais noturnos

Cheios de adeus

São docas mansas

Trilhando luzes

Que brilham longe

Longe nos breus

 

Oh, minha amada

Que olhos os teus

 

Quanto mistério

Nos olhos teus

Quantos saveiros

Quantos navios

Quantos naufrágios

Nos olhos teus

 

Oh, minha amada

De olhos ateus

 

Quem dera um dia

Quisesse Deus

Eu visse um dia

O olhar mendigo

Da poesia

Nos olhos teus

 

Oh, minha amada

Que olhos os teus”

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=yPmz0NMVvBY[/youtube]

 

A canção e a letra-poema são tão lindas que não pude deixar de incluir esta versão com o próprio Vinicius cantando, e muito bem!

Merece o bis.

Aliás, há uma versão com o final diferente e não menos belo da letra-poema, que teria sido modificada para não alongar em demasia a canção.

A partir da estrofe que termina com “Quantos naufrágios / Nos olhos teus”, prossegue assim:

 

“Ó minha amada

Que olhos os teus

 

Se Deus houvera

Fizera-os Deus

Pois não os fizera

Quem não soubera

Que há muitas eras

Nos olhos teus

 

Oh, minha amada

De olhos ateus

 

Cria a esperança 

Nos olhos meus

De verem um dia

O olhar mendigo

Da poesia

Nos olhos teus”

 

 

O nascimento do poeta

 

vinicius (logo centenário)

 

Nasce, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro de 1913 , no antigo nº 114 (casa já demolida) da rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, ao lado da chácara de seu avô materno, Antônio Burlamaqui dos Santos Cruz. São seus pais d. Lydia Cruz de Moraes e Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, este, sobrinho do poeta, cronista e folclorista Mello Moraes Filho e neto do historiador Alexandre José de Mello Moraes.

 

 

Vinicius bebê 

[…]

 

“E assim pelo ciclo negro da pálida esfera através do tempo 
Ao clarão imortal dos pássaros de fogo cruzando o céu noturno 
As mulheres, aos gritos agudos da carne rompida de dentro 
Iam se fecundando ao amor puríssimo do espaço. 

E às cores da manhã elas voltavam vagarosas 
Pelas estradas frescas, através dos vastos bosques de pinheiros 
E ao chegar, no feno onde o homem sereno inda dormia 
Em preces rituais e cantos místicos velavam. 

Um dia mordiam-lhes o ventre, nas entranhas – entre raios de sol vinha tormenta… 
Sofriam… e ao estridor dos elementos confundidos 
Deitavam à terra o fruto maldito de cuja face transtornada 
As primeiras e mais tristes lágrimas desciam.

Tinha nascido o poeta. Sua face é bela, seu coração é trágico 
Seu destino é atroz; ao triste materno beijo mudo e ausente 
Ele parte! Busca ainda as viagens eternas da origem 
Sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência.

 

(“O nascimento do homem”, Vinicius de Moraes, excerto)

 

 

“Dele disse Carlos Drummond de Andrade: “Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural”. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”. Otto Lara Resende assim o definiu: “Manuel Bandeira viveu e morreu com as raízes enterradas no Recife. João Cabral continua ligado à cana-de-açúcar. Drummond nunca deixou de ser mineiro. Vinicius é um poeta em paz com a sua cidade, o Rio. É o único poeta carioca”. Mas ele dizia nada mais ser que “um labirinto em busca de uma saída”.