Posts from novembro, 2013

A voz do povo…

 

               Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

O dito popular que sentencia “A voz do povo é a voz de Deus” é conversa mole. A voz do povo, prestem atenção caros leitores, serve muito frequentemente é para veicular a maldade, a injúria, a impiedade, ficando bem mais próxima da voz do diabo.

Vejam, por exemplo, o que faz a voz do povo no campo da alcunha. O apelido, uma verdadeira praga nas cidades pequenas, quase sempre surge carregado de maldade por associação à aparência física da pessoa, a atividade que ela exerce ou às suas habilidades e inabilidades. O grau de malignidade varia muito, mas a regra é que o apelido tenha a carga negativa do ridículo, do feio ou, no mínimo, do desagradável.

Quando jovem, eu soube de pessoas que tinham apelidos tão feios que nem podiam saber, embora a cidade de Ourinhos inteira soubesse. Tinha, por exemplo, lá na Vila Margarida, o João Quati, assim chamado porque de fato se parecia com aquele carnívoro da família dos prociônidas. Tinha o Zé Encrenca, que ficou assim conhecido simplesmente por ser esquentado. Tinha o Zé do Sino, um professor de história que era o primeiro a chegar às missas. Tinha o Zequinha Mortadela, que trabalhava como entregador de embutidos. Tinha o Chico Bucheiro, que vendia nas ruas, com uma carrocinha, miúdos de boi e de porco. Tinha o Tufik Cinco Por Cento, que atuava no campo da agiotagem. Tinha a Maria Galinha, mulher casada mas bem danada. Tinha o Jonas Relho, que nem posso falar porque tinha esse apelido. Tinha a Maria Bigodinho, morena bonita, mas dona de um buço marcante. Tinha o Hélio Cateto, um professor cuja compleição lembrava o porco-do-mato caititu. Tinha também o Jacaré, o Zé Apavorado, o Zé Toicinho, o Paulo Cuié, o Orelha de Pau, o João Geladeira, o Mauro Boca de Gaveta, o Tamancada. 

Agora me lembrei de muitos outros. Tinha o João Kilovate, que trabalhava na empresa de força e luz lendo o consumo nos relógios das casas. Tinha a Luzia Cadillac, que topava uma voltinha com todo mundo. Tinha o Zé Protocolo, assim apelidado porque trabalhava no serviço de protocolo da prefeitura. Tinja o Miltinho Alicate, um sujeito das pernas tortas. Tinha o Nelson Cachorro e o Jaime Peru. Tinha o motorista Tatu e o Ermenegildo Vaca. Tinha o Zé Diarreia e o Osmar Penico. Tinha a Maria Canecão, o Zé Cadelinha e o Sílvio Bagunça. Tinha o Zé Boi, o Leitão e o Antoninho Cabeça de Passarinho. Tinha o Capeta, o Ticanha, o Mané Pega Tudo, o Joel mico, o Lamparina e o Boca de Égua.

São apelidos, todos eles, muito desagradáveis. Mas nenhum ganha em ridículo e maldade daquele que a voz do povo reservou ao pobre que era dono do laboratório de análises clínicas da cidade. Como naquela época o exame mais comum e mais solicitado pelos médicos era o de fezes, o cidadão ficou conhecido como Zé da B…

 

PS: Esta crônica já estava acabada quando recebi correspondência de Curitiba, apontando lacunas. Vítimas da voz do povo, lembra o missivista, eram também o odontologista Diógenes Baratinha e o professor Mário Preto. Este Mário Preto, além de não ser afrodescendente, era branco até no nome: Mário de Oliveira Branco Filho, o Marinho. Veja o que não faz a voz do povo!

 

 

NOTA DA REDAÇÃO

 

“Euclides Rossignoli nasceu em 1939, na Fazenda Santa Clara, no município de Santa Cruz do Rio Pardo. Veio para Ourinhos com um ano de idade e foi criado na Vila Margarida, onde passou a infância e boa parte da juventude. Em 1959 mudou-se para a capital, onde estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). De volta a Ourinhos, foi professor de sociologia e de estudos sociais em escolas de ensino médio. Foi vereador de 1983 e 1988.”

Essa a singela apresentação de Euclides, que consta da orelha do seu delicioso livrinho, “Ourinhos Histórias e Memórias”, publicado pelo autor com o prêmio obtido no “Concurso de Fomento a Produções Culturais e Oficinas Criativas” da Secretaria Municipal de Cultura de Ourinhos.

Adverte ele, modestamente, que “Embora haja neles muita história, os escritos que o leitor encontrará neste livro não constituem textos de História. O autor não é historiador nem realizou pesquisa alguma para escrevê-los. Usou apenas a memória e sabe que, muitas vezes, propositadamente ou não, registrou a versão mais do que o fato”.

Quem o lê, porém, logo se dá conta de que histórias ou estórias ele as conta com a graça e o talento de um belo escritor. Cada um guarda em si uma Recife de Bandeira, uma Itabira de Drummond, uma Macondo de García Marquez, uma Buenos Aires de Borges, uma Belo Horizonte de Pedro Nava, uma Istambul de Orhan Pamuk, uma Rio de Janeiro de sempre de Paulinho Lima, uma Guaxupé de Annibal Gama. Todas elas, assim como a Ourinhos de Euclides Rossignoli, são únicas e são a mesma, pois como diz Pessoa “A terra é semelhante e pequenina / E há só uma maneira de viver.”

Euclides vem rebrilhar a constelação de craques do Estrela Binária.

 

 

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