Euclides Rossignoli
Quando menino, eu acreditava no céu e no inferno. Era um pavor. O céu, lugar de mil delícias, eu não conseguia imaginar uma figuração mais concreta. Mas o inferno, esse me atormentava como lugar de inefáveis sofrimentos. Eram os fogos, as trevas e os ferros mais apavorantes que a mente humana pode imaginar, fustigando dia e noite nossas pobres carnes e mentes. E, no comando de tudo, horrorosos demônios chifrudos e rabudos que se divertiam e se inebriavam com a nossa dor.
Mas havia algo ainda pior do que o tormento em si. Algo com que minha cabeça de criança nunca pôde concordar, mas que era meu terror permanente. Para mim, pior do que o tormento, pior do que todos os suplícios, era a ideia da condenação eterna. Jamais pude aceitar que a danação ao inferno fosse eterna, fosse pra sempre, pra nunca mais acabar. Nunca. Uma vez condenado à suprema degradação era o sofrer e sofrer, pela eternidade, para o sempre que jamais termina.
Esse pavor do inferno me fazia um menino medroso. Tinha medo doentio da morte. Mas um dia o seu Abilinho disse para minha mãe que era capaz de curar meus medos. Era capaz de curar a ponto de me tornar, depois, um sujeito abusador. O seu Abilinho era um caboclinho esperto e bem falante, dado a orações curativas e benzeduras. Era compadre de dona Albina, a nossa vizinha, que tinha cinco filhos e um marido que bebia muito. O seu Abilinho estava tentando curá-lo da bebida.
Tudo o que seu Abilinho precisava para me curar era que eu fosse com ele ao cemitério. Não achei graça nenhuma na proposta, mas acabei concordando. Fomos. Minha mãe, dona Albina e dois dos filhos dela foram juntos. No cemitério, o seu Abilinho nos levou para passear por entre os túmulos, parando aqui e ali, quem sabe para nos acostumar com a morte. Depois de um bom tempo, pediu para que os outros esperassem e que eu o acompanhasse a um certo lugar. Esse certo lugar, logo descobri, era nada mais nada menos do que o ossuário, um poço largo onde eram lançados os restos finais daqueles que já haviam passado pela vida. Ali, o seu Abilinho me fez olhar demoradamente dentro do poço. Eram tíbias, fêmures, úmeros e crânios, destacando-se dos ossos menores em decomposição. Uma espécie de lixão dos mortos.
Antes de abandonarmos o local, o seu Abilinho abaixou a cabeça e emudeceu numa longa oração lá sua. Quando terminou disse:
— Agora, vamos embora.
Ainda hoje, passado mais de meio século, quando acontece de eu me mostrar descrente em relação às coisas do outro mundo, minha mãe, que é muito religiosa, diz:
— Bem que o seu Abilinho falou que você ia ficar abusante.
Inferno, quadro anônimo português, possivelmente de 1520