Posts from dezembro, 2013

Parece mentira

 

           Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Tem coisas que eu nem gosto de contar porque parece mentira. Mas eu vou contar.

Era o ano de 1966 ou 1967. Meu amigo Roberto Pellegrino, o italiano, morava aqui em Ourinhos, mas namorava a Maria Inês — com quem veio a se casar —, que também morou aqui, mas havia mudado para Campinas, de modo que, de vez em quando, o Roberto tinha que ir a Campinas para namorar.

Uma vez, lá em Campinas, como parte do namoro, o italiano e a Maria Inês resolveram ir ao cinema. E foram. Era o Cine Carlos Gomes. Famoso. Importante.

Chegaram, compraram ingressos e entraram. Viram dois lugares bem localizados, foram lá e sentaram. O Roberto achou que estava um pouco quente e tirou o paletó. Não passou muito tempo, veio lanterninha e dirigiu-se ao italiano:

— O senhor, por favor, queira vestir o paletó. Não é permitido ficar sem paletó.

O Roberto já se dispunha a atender, quando viu ali perto um sujeito sem paletó pelo qual o lanterninha passara sem se incomodar. Falou:

— Mas olha ali aquele senhor, também sem paletó!

Aí o funcionário fulminou-o com o seguinte argumento:

— É, mas aquele rapaz já veio sem paletó. O senhor, não. O senhor veio de paletó. O senhor não pode ficar sem paletó. Não é permitido.

Foi assim.

 

Anos 60 do século passado. O Cine Ourinhos, único cinema da cidade na época, foi todo reformado. A plateia ganhou cadeiras novas. O balcão ganhou poltronas e se tornou chique. Nele, estabeleceram os proprietários, os homens só podiam entrar trajando paletó.

No início ocorreram alguns desencontros e mal-entendidos. Houve quem quisesse entrar no balcão sem paletó e quem imaginasse precisar ir de paletó para ingressar na plateia. Era novidade também para as bilheteiras e porteiros.

Uma bela noite, o professor Luiz Cordoni resolveu ir ao cinema. Foi, comprou ingresso para a plateia e se apresentou ao porteiro para entrar.

— O senhor não pode entrar.

— Por que não? Para a plateia, que eu saiba, não precisa paletó!

— É, mas o senhor está de suspensório.

De fato, o professor Luiz Cordoni usava suspensório.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=AY62QByUYJQ[/youtube]

 

 

Ponto a ponto, mano a mano

 

         Brenno Martins

Brenno (miniatura)

 

 

 

 

 

 

 

                                       Quero ficar junto a ti

                                       como juntas ficam as reticências…

                                       porque uma reticência só

                                       é só um ponto.

                                       Final.

 

                                       Diferente dos dois pontos:

                                       que esperam uma explicação

                                       e o amor não se explica…

                                       é só amor.

                                       Ponto final.

 

 

reticencias 

   

          Tom Gama

 Eu (preto e branco)

 

 

 

 

 

 

 

 

                              Com quantas linhas se escreve um conto?

                              Com quantos pontos me conto?

                              Em que ponto dessa tortuosa linha

                              paralela do infinito me encontro?

 

                              Só quando saio da linha

                              e salto fora da pauta

                              é que sinto o sobressalto da vida

                              ao compasso de mim mesmo.

 

                              Passo a passo me repasso

                              traço a traço me escrevo

                              até que a linha se apague

                              e acabe o conto sem ponto final

 

 

 “Desencontro” (Chico Buarque), com ele e Toquinho

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=yRckNmA05JI[/youtube]

 

“Sobrou desse nosso desencontro

Um conto de amor

Sem ponto final”

 

 

Rio – Lisboa

 

         Selma Barcell0s

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

Entre troca de fraldas e colo ao netinho, tempo para ler os mestres e me exibir em minha língua-vó.

Ora bem, penso que estou óptima. Capricho na entonação e pontuo as frases com um charmoso ‘não é?’, digo ‘mais pequeno’ e ‘muita fácil’ sem medo de perder o diploma, já não pergunto onde é o banheiro, a menos que procure o salva-vidas, tampouco se vendem broches; entendo quando se referem às aldrabices dos corruptos; escapo de convites com ‘tenho uma catrefada de coisas a fazer’; aqui e ali salpico um algures, primo bonito do alhures, e lá vou eu.

Não mais arregalo os olhos quando me oferecem um creme para a cara e já ouço com alguma naturalidade as expressões equivalentes a bunda, injeção e – céus! – criança. Gosto imenso de uma famosa propaganda de fraldas que diz “rabinho seco, rabinho são”. Muita boa, não é?

Aprendi que k é capa e que se algo está OK, está ocapa. Lindo pedir uma água lisa, um lume, dizer que determinado tempero sabe a mar, ouvi-los perguntar ‘estou a magoar?’. Tudo bem que uma certa tristeza – nostalgiazinha básica – está na essência dos sentires e cantares portugueses, assim como do indefectível adeus ao se despedirem. Não dizem tchau, até logo, até já. Contam-me que as cangalhas, os carros funerários, além de vários bancos para a família acompanhar o caixão, têm (tinham?) as laterais de acrílico para todo mundo ver. E sofrer junto.

Enfim, ando a fazer progressos. Inclusivamente (sim, aqui se usa) no vocabulário de berço do Cadu: já sei de chuchas, bibrões, traversinas…

No mais, como registrou Saramago, é seguir adiante. A viagem não acaba nunca. Paisagem e língua serão sempre novas.

 

Camões

 

 “Nem às paredes confesso” (Artur Ribeiro / Ferrer Trindade), com António Zambujo

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Q6FnndViPmA[/youtube]

 

 

 

Contradição

     

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                                                           CONTRADIÇÃO

 

 

                                                           interior

                                                           calor

                                                           bolor

 

                                                            exterior

                                                            calor

                                                            oloroso

 

                                                            interior/exterior

                                                            eu e vocês

                                                            eu e tudo

                                                            nós

 

                                                           se alguma coisa escapa

                                                           outra aparece.

 

contradição

 

 

 

Da arte de pentear os cabelos

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Em primeiro lugar, para pentear os cabelos é preciso ter cabelos, salvo se você for calvo como um ovo; então, você pode pentear a sua cabeleira postiça. Pode-se pentear com os dedos, com um pente ou com a escova. Se você for rico, prefira um pente de marfim. Se for remediado, ou pobre, um pente de qualquer massa de plástico serve. Ah, há também o pente fino, geralmente preto, para pentear os cabelos de quem está com piolhos neles ou na cabeça. As mulheres de antigamente eram muito prevenidas porque, depois de penteadas, feito um coque atrás, deixavam nele, fincado, um pente.

Não é usual pentear os cabelos dos sovacos, porque o costume é depilar os sovacos, e sovacos sem pelos como é que poderiam ser penteados?

Não sei se também se penteiam os pentelhos, mas acho que sim. O difícil é pentear os petelhos, porque eles são sempre sujeitos desgrenhados.

É claro que também se pode pentear a barba. Convém, não obstante, penteá-la depois de a botar de molho. Os que usam apenas um bigodinho, como eu, devem penteá-lo com um pentinho; já os sujeitos com bigodões, com um pente de bom tamanho.

Penteia-se melhor mirando-se no espelho. Então, o cara pode repartir os cabelos bem no meio da cabeça, ou num dos lados, numa risca certa. Sem espelho, todavia, o sujeito ou a sujeita conseguem pentear-se. E há as mulheres que trazem, na bolsa, um espelhinho, para isso. Aqui em Ribeirão Preto, onde há muitas poças dágua nas ruas, que são viveiros de pernilongos, consegue-se pentear abaixando-se e olhando a sua imagem refletida numa poça.

Quando o ônibus estaciona num ponto da estrada, isto é, diante de um grande restaurante, os passageiros saem depressa dele, e correm para o que chama de toalete, e ali, depois de verter água e aliviar-se, podem lavar as mãos e pentear-se diante dos espelhos na parede. E é claro, as mulheres também. O que não aconselho é o motorista, dirigindo o carro, ao mesmo tempo pentear-se, olhando para o espelho retrovisor do veículo. Mas há quem o faça, e esbarronda o carro na traseira de um caminhão. Neste caso, vai em seguida pentear-se no quinto dos infernos, ou no céu.

Para pentear-se, depois de lavada a cabeça, enxugados e secados os cabelos, convém usar um fixador qualquer, brilhantina, gumex, glostora, laquê, ou coisa semelhante. Goma arábica não é indicada.

Atualmente, as moças não se penteiam. Ao contrário, metem os dedos na cabeleira e a afofam, de tal modo que se tornam ninhos de guaxo.

O que também se usava antes, para manter os cabelos no lugar, era uma redinha. E as mulheres usavam papelotes, e agora bóbis. Uma mulher de papelotes ou de bóbis, fica parecendo um extra-terrestre. E talvez seja.

Havia cabeleiras de mulheres (e ainda há, creio) que caiam até os pés. Não era fácil para elas pentearem tais cabeleiras. Elas chamavam as mucamas, que então as penteavam muito bem, e ainda lhes faziam cafuné. Uma delícia.

Eu não sou mulher, mas tenho a minha mucama. Chamo-a:

— Josefa, vem pentear os meus cabelos e fazer-me cafuné.

Ela vem.

Lamento se você não tem uma mucama. Trate de arranjar uma.

E vá penteando-se, até que não lhe reste nem um fio de cabelo.

 

 Millôr

Ontem hoje e amanhã

O homem o cabelo parte

Parte o cabelo com arte

Até que o cabelo parte.

(Millôr Fernandes)