Da arte de olhar pela janela

 

             Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Provavelmente, você tem quatro ou cinco janelas na sua casa. A menos que você viva debaixo da ponte, ou de um viaduto, cujo vão se abre para a direita e para a esquerda. E você costuma, de vez em quando, olhar lá fora, através das janelas. Faz isto, mas são muito poucos aqueles que sabem a arte de espiar pelas janelas. Tentarei ensiná-la.

Para olhar pela janela você precisa primeiramente correr a cortina, seja ela de pano grosso, ou dessas lâminas de plástico que sobem e descem, puxadas por um cordão. Estas últimas cortinas não são fáceis de ser manejadas, porque geralmente enguiçam. É hora então de você soltar um palavrão. Se a cortina for de filó, você consegue espiar lá fora, através dela. Mas antes, é claro, você tem de abrir a janela e, melhor ainda, descer a vidraça. Sem fazer isso, nada feito.

Bem, depois de alguma dificuldade, você conseguiu arredar a cortina, abrir a janela e descer a vidraça. Então, você está pronto para dar uma olhada lá fora.

Mas para que você quer olhar lá fora, se pode olhar aqui dentro mesmo, e principalmente dentro de você mesmo? Não discutamos isso, já que você optou por olhar lá fora, o que é um direito seu.

Para que você olha para fora da janela? Para ver se chove, se faz sol. E, sobretudo, para ver se vai passar na calçada aquela loira boa, de vestido curto, exibindo as coxas, ou com a bunda apertada nas calças jeans, muito justas. Está na hora de ela passar. E você disfarça, se sua mulher lhe pergunta: que é que você está fazendo aí, olhando pela janela? A resposta deve ser: estou olhando as árvores e a paisagem… Mas que paisagem, ó meu? Diante de você está é o paredão de um edifício de vinte pavimentos. Ou um bruto outdoor, que o impede até de ver o céu.

Bem, você viu a loiraça que passou lá embaixo. E até lhe acenou a mão, e ela sorriu. Um dia ainda te pego, prenda minha. Saia então da janela, antes que sua mulher se irrite.

Mas você também pode ser um janeleiro de quatro costados, que não tem o que fazer, e sua mulher já se conformou com esse hábito seu. Fica o dia inteiro, e parte da noite, debruçado na janela, olhando de um lado para outro. Já está até com calo nos cotovelos. Peça à sua mulher que faça uma almofadinha, para você apoiar os cotovelos. Ela faz, coitada. Em compensação, vá lhe dizendo tudo o que se passa na rua ou na calçada: “Seu Osório, hoje, está atrasado… Vem vindo aí a perua das pamonhas… O cachorro Faísca, de Dona Vitória, fugiu de casa e está mijando no poste… Tem um sujeito discutindo com outro, na esquina… Olha lá, a pobre da Dinorá está barriguda de novo… O farmacêutico Seu Messias, com a sua maleta, entrou na casa de seu Felipe… Vai ver que Dona Olga está gripada de novo e vai tomar uma injeção na bunda… O Padre Messias vem vindo lá de cima, com o guarda-chuva aberto… Parou diante da porta da viúva Biondina, fechou o guarda-chuva e entrou… Neste mato tem coelho…”

A cidade tem muita coisa para ver e contar. E há janeleiros e janeleiras aqui e ali, que trocam informações uns com outros.

Pode ser também que você more num apartamento. E, de um lado e outro, há outros edifícios de apartamentos. Compre um binóculo, para espiar aquela moça que se despe, ali em frente, com a janela aberta. Você vai descobrir que ela tem uma pinta preta, do lado direito da barriga. Mas você deve ter cuidado, e espiar apenas por uma fresta da janela, escondido atrás da cortina.

Quando eu digo olhar pela janela, digo também escutar dali os ruídos e rumores que vêm de fora. O ronco dos automóveis, o matraquear das solas dos sapatos nas calçadas, os gritos, a sirene do carro do hospital, as buzinadas e derrapadas dos carros, as músicas estrondosas que vêm de dentro deles… É muito complexa esta arte de espiar através das janelas. E note que você também está sendo espiado por outros janeleiros. Um desaforo.

A vida é muito engraçada. Há quem espie, quem seja espiado e comentado, quem ande de um lado para outro feito barata tonta, quem para, e quem vai. Somos todos espiões uns dos outros.

 

janela indiscreta

 

 

 

4 comentários

  1. André
    28/04/14 at 20:26

    Gama, já estou começando a minha semana mais curta de feriado prolongado com um brilhante texto do seu pai, que foi escrito (mais uma vez) com grande inteligência e eloquência.
    Abraçaço.

    PS: Mais uma vez, obrigadíssimo pela gentileza quanto aos livros. Nem sei como agradecer. Estou muito feliz.

  2. 28/04/14 at 22:04

    Vou te contar. Como pude demorar tanto para vir espiar o mestre hoje… Minhas únicas risadas do dia nesta Niterói de balas traçantes que nos impedem de chegar à janela.
    Lembrei-me de ‘Urbano, o aposentado’, tirinha que amo. Ele vive no parapeito observando a vida alheia e tomando chuva de broncas da Maria, rolinho na cabeça…
    Lembrei-me de Aldir Blanc contando que foi visitar Caymmi, Stella adoentada, e o baiano o conduziu direto à janela: “Eu tinha receio de vir morar no Rio, estava acostumado com as coisas da Bahia, mas cheguei e vi… vi… vi as moças… as moças…”

    Beijocas, Dr. Annibal!

  3. 28/04/14 at 22:21

    A foto é um desacato. E tenho dito.

  4. Lúcia Helena Vieira Dibo
    29/04/14 at 10:20

    Ah, esse fantástico Dr. Annibal!
    Delicioso texto sobre nosso voyeurismo.

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