Posts from novembro, 2014

Fragmentos

 

 Annibal Augusto Gama

Annibal e Pichorro 3

 

 

 

 

 

 

 

 

Assim como há homens gordos ou mulheres magras, cavalheiros de conspícuas calvas, viúvas de olheiras e verrugas na asa do nariz, há almas rotundas ou magérrimas, almas que perderam os cabelos, e outras de nariz torto.

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Três ovos no ninho do pássaro, mas um deles ia gorar: o silêncio, o nada, mais enigmáticos que o projeto da cor, do voo, do canto.

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O muro era tão solitário que nunca se viu sobre ele passar um gato.

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As flores imarcescíveis da retórica: não murcham porque são de papel.

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Romeu e Julieta: vejo-os casados, com filhos que também já se casaram e lhes deram netos. Aos domingos, a mamma faz uma bela macarronada, Romeu bebe vinho demais, embriaga-se e xinga Frei Lourenço. A tragicomédia que Shakespeare não escreveu.

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Lentamente, a mocinha passou de modelo a dançarina, de dançarina a call girl, de call girl a prostituta, de prostituta a marafona e cafetina, Mas sempre que se registra nos hotéis se qualifica com a profissão de sua primeira carteira de identidade: modelo. Modelo de virtudes.

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Todas as vezes que lhe batiam na porta abria apenas uma fresta e dizia que não queria absolutamente nada, e que não tinha mais nada para dar, livrando-se assim dos vendedores e dos pedintes. Morto, à porta do céu, ficou com receio de que São Pedro lhe respondesse do mesmo modo. Não bateu na porta. Sentou-se ali, e ali ficou durante séculos. E as outras almas batiam, abriam-se-lhes a porta, ou eram enxotadas. E ele ali. Até que São Pedro perdeu a paciência. “Que é que o senhor quer?” “Não quero nada”. Com um pontapé, São Pedro botou-o para dentro. Mas havia muitas outras portas fechadas, infinitas portas de infinitas moradas. Diante de cada uma delas, ele sentava-se e continuava esperando. Mais outros séculos, e era posto para dentro a pontapés. Jamais saberá quantas portas lhe restam e quantos pontapés.

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Projeto de suicídio: Raspou todos os rótulos das garrafas de bebida e numa delas, vazia, despejou cianureto. Misturou-as. Noites e noites, bebia de uma das garrafas, e apenas se embriagava ligeiramente. Uma a uma, as garrafas foram consumidas, sem que se envenenasse. Restou a última, certamente a de cianureto. Olhou-a longamente. Chegou a hora. Mas ao invés de lhe beber um trago, comprou mais duzentas garrafas de bebida, retirou-lhes os rótulos e misturou-as com a de cianureto. Continua bebendo.

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Para meu gosto, o poeta Laforgue (L´Imitation de Notre-Dame la Lune, Les Complaintes et les premier poémes), que conseguiu aquele belo verso, “oh, que la vie est cotidienne!”, tem “oh, ah, ô” demais em seus poemas, helas! “Ô vision du temps ou l´être trop puni…” , “Oh! monter, perdu, m´étancher à même. “Ô pilule des léthargies finales”, “Ô Diane à la chlamyde trés-doriques”, “Ah! d´um trait inoculant l´être optere,” “Des nuits, ô Lune d´Immaculée-Conception”, “Ô Radeau du Nihil aux quais seuls de nos nuits”, etc…. As exclamações estouram como bolhas de sabão.

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No silêncio da madrugada, o médico de branco e mascarado desliza pelo corredor do hospital como um ladrão asséptico.

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As borboletas quando pousam fecham as asas; as borboletas noturnas, mais conhecidas como bruxas, pousam de asas abertas. Como as mulheres que sentam de pernas fechadas ou abertas, umas são pudicas e outras não.

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 Os anjos não sentam, estão sempre de pé, porque suas asas são impraticáveis no encosto das poltronas e das cadeiras.

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